domingo, 19 de maio de 2013

Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica



A narrativa de Deus nas religiões não monoteístas: um olhar sobre a Escola de Kyoto
Faustino Teixeira - PPCIR-UFJF

Introdução
Em instigante artigo, Scott Randall Paine desenvolve a complexa questão do desafio do Oriente para a filosofia ocidental. Argumenta em favor de novas perspectivas de abordagem que possam contemplar a "vasta paisagem do fenômeno religioso" que floresce em outras fronteiras, para além do domínio conhecido ocidental. Lança a proposta de um saber filosófico que seja "autenticamente global", sensível e aberto às abordagens sapienciais do Oriente, distintas das fontes da racionalidade grega.
Não há como restringir o campo da reflexão teórica aos trabalhos de "micro-filosofia". Há hoje desafios interdisciplinares que são essenciais, incluindo nesse campo o desafio da relação com a transcendência e o diálogo com as religiões mundiais. Na visão de Randal Paine, "os filósofos ocidentais, porém, pronunciam-se, tipicamente, sobre o mundo, o ser e o conhecimento humanos sem se orientar sobre o imenso fato que é a realidade étnica, cultural, religiosa e sapiencial do Oriente"[1].
Foi com base nessa provocação de Scott Randal Paine que nasceu a idéia de uma pesquisa sobre a Escola de Kyoto. Foi a porta de entrada escolhida para a reflexão sobre a narrativa de Deus nas religiões não monoteístas. Embora não muito estudada no Brasil, a Escola de Kyoto traduz um momento novo na história das idéias. Trata-se de um grupo de filósofos que fornece "a primeira contribuição firmada e original do Japão à filosofia ocidental", e numa perspectiva especificamente oriental[2]. Entre seus representantes, podem ser sublinhados: Nishida Kitaro (1870-1945), Tanabe Hajime (1885-1962), Nishitani Keiji (1900-1990) e Ueda Shizuteru (1926-). O pensador mais criativo e comentado dessa escola de pensamento foi Nishida Kitaro. Foi com ele que essa escola se firmou e ganhou notoriedade. Na dinâmica de sua reflexão, Nishida proporcionou um singular alargamento da perspectiva zen. Mesmo tendo deixado a prática do zen budismo aos trinta e cinco anos de idade, não deixou jamais de se apropriar criativamente desse caminho experiencial. Até suas últimas obras, manteve acesa a convicção de que sua filosofia era um "desdobramento do zen dentro de si mesmo, como uma manifestação nova do espírito zen"[3]. Os outros filósofos da Escola de Kyoto mantiveram essa mesma relação de liberdade com o zen. Há que sublinhar também, no processo de delineamento da reflexão da Escola de Kyoto, a afinidade com o pensamento existencialista e com a tradição mística cristã, em particular Meister Eckhart.
Talvez o ingrediente decisivo para a afirmação e divulgação da Escola de Kyoto em âmbito mais amplo foi o destaque dado à questão de Deus e da religião, mas sempre em chave de grande singularidade e originalidade. Identifica-se aí o traço mais significativo da reflexão filosófica empreendida pelos seguidores dessa Escola. Mas também desconcertante, pelo fato de surgir de pensadores que estavam, de certa forma, mergulhados na perspectiva do budismo zen. Na verdade, o que se buscava não era simplesmente a criação de um corpo de pensamento budista ou japonês, mas a abordagem de "questões universais fundamentais no que eles viam como a linguagem universalmente acessível da filosofia"[4]. Segundo James Heisig, "a idéia de Deus parece servir como um tipo de metáfora que aponta para a unidade essencial da experiência da consciência com a realidade tal como é, e isto é feito precisamente como uma idéia ou imagem que opera na mente daqueles que crêem em Deus"[5].

1. A questão de Deus no budismo
Qualquer tentativa de aproximação e avaliação do budismo deve ser feita com extremo cuidado e delicadeza. Há que sublinhar, em primeiro lugar, que não existe um budismo, mas muitos budismos, que se desdobram em caminhos diferenciados: theravada, hinayana, mahayana, vajrayana e outros. Ao se tratar a questão de Deus no budismo há que estar consciente dessa complexidade. Muitas foram as opiniões cunhadas pelos estudiosos ocidentais para definir o budismo, tratando-o como panteísta, politeísta, ateu, nihilista, agnóstico ou simplesmente pragmático[6]. É problemática certa percepção, presente no âmbito do catolicismo, que define o budismo como um "sistema ateu", ou que busca relativizar o alcance de sua perspectiva mística[7]. O caminho mais pertinente para abordar essa questão vai na linha do apofatismo. São bem mais profundas as razões que envolvem o respeitoso silêncio sobre Deus que anima a perspectiva de Buda. Como assinala Panikkar, "o apofatismo budista pretende levar a inefabilidade ao interior mesmo da realidade última e afirmar que esta mesma realidade é inefável, inexprimível, incomunicável não só para nós, mas enquanto tal, quoad se, porque o seu logos, a sua expressão não pertence mais à ordem da realidade última, mas de sua manifestação"[8].
O dharma essencial do budismo ganhou sua melhor formulação no clássico sermão de Benares, ocorrido logo após a iluminação de Buda, onde ele relata as Quatro Nobre Verdades:
A vida é cheia de sofrimento; o sofrimento é causado pelo anseio compulsivo pelas coisas da vida; o sofrimento pode ser interrompido por meio da renúncia desse anseio; e há um caminho que conduz à cessação do sofrimento, isto é, o Caminho Óctuplo das concepções corretas, da intenção correta, da fala correta, da conduta correta, do modo de viver correto, do esforço correto, da atenção correta, da concentração correta[9].
Nesse ensinamento de Buda estão presentes alguns traços importantes da experiência libertadora proposta pelo budismo, que envolvem a superação do desejo egocêntrico, que acompanha a noção de eu; a busca de superação do que é transitório e intransparente, pela dinâmica do esvaziamento, bem como o caminho da "experiência pura" como meio para a libertação total. Delineia-se também o que é essencial para a espiritualidade budista, ou o silêncio místico que envolve essa tradição, que é a perspectiva de um caminho de superação do apego (tanha) que aprisiona o sujeito em anseios compulsivos de poder e posse, que estão na base de tantos transtornos e conflitos que maculam a história.
O silêncio de Deus praticado por Buda não traduz ateísmo ou ausência de religiosidade, mas consiste "na forma mais radical de preservar a condição misteriosa do último, o supremo, a que toda religião aponta". Pode-se falar, com acerto, da negação como "cifra da transcendência". O fato de calar sobre Deus, de não se pronunciar sobre sua existência ou ausência, revela, antes, a recusa de uma palavra supérflua a seu respeito. Na verdade, para o budismo, a pergunta por Deus "é incorreta, indevida, lesiva à transcendência da realidade referida". Trata-se de uma "presença" que só pode ocorrer de forma alusiva, sob forma de ausência, e que só pode ser dita com o silêncio[10].
Abordando a perspectiva do zen budismo sobre a questão de Deus, Suzuki assinala que essa tradição não nega nem afirma Deus, nem se apega a qualquer entrave dogmático da teia religiosa. O horizonte de sua busca envolve a ultrapassagem de toda lógica, na busca de uma afirmação mais profunda. Para que isso ocorra é necessário ter a mente livre e desobstruída, também com respeito às idéias de totalidade ou unidade. O que ocorre é um misticismo peculiar, a seu "próprio modo". Como assinala Suzuki, o zen "é místico no sentido de que o sol brilha, que uma flor desabrocha". Trata-se de uma mística que "treina sistematicamente o pensamento para ver isso. Abre os olhos do homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o coração para que ele abranja a eternidade do tempo e o infinito do espaço em cada palpitação e faz-nos viver no mundo como se estivéssemos andando no Jardim do Éden"[11]. Na perspectiva do zen, a verdade está bem próxima do cotidiano, basta saber ver. Não é necessário perder-se em "abstrações verbais e sutilezas metafísicas" para alcançar o seu significado. A verdade "se acha realmente nas coisas concretas de nossa vida diária"[12].
O que ocorre com o zen budismo é a busca de uma liberdade absoluta, mesmo com respeito a Deus. O que predomina e determina a reflexão é a consciência de que nada permanece de forma duradoura. Não há lugar para apegos, representações ou figuras de retórica. Os nomes são todos imperfeitos e limitados. Rejeita-se mesmo o apego a Buda, como sinalizado na conhecida expressão: "Se encontrares o Buda, mate-o"[13].

2. A reinterpretação da Escola de Kyoto
Grandes pensadores europeus, como Martin Heidegger, tiveram um interesse esporádico ou instrumental para com o pensamento japonês ou oriental. Há, de fato, um "limite" oriental no pensamento ocidental, que acabou por desconhecer a dignidade filosófica que acompanha a produção dos pensadores orientais[14]. O mesmo não aconteceu com os pensadores japoneses da Escola de Kyoto, que dedicaram grande atenção ao pensamento ocidental. São pensadores que souberam articular de forma criativa, traços desse pensamento com a riqueza da história cultural do Japão, tendo como horizonte um caminho singular de abertura da mente à natureza da realidade imanente. Para Nishida, o grande pioneiro dessa reflexão,"o objetivo do empreendimento filosófico era o autodespertar: ver os fenômenos da vida claramente, pelo resgate da pureza original da experiência, articular racionalmente o que foi visto e reavaliar as idéias que governam a história e a sociedade humanas com a razão, assim, iluminada por meio da realidade"[15]. A fidelidade à vida era um dos pilares de sua reflexão. Em anotação de seu diário, em 1902, manifestava essa preocupação: "Ao fim e ao cabo, a erudição é para a vida. A vida vem primeiro; sem ela a erudição é inútil"[16].
Numa de suas primeiras obras, Nishida aborda o evento da consciência pura. Para ele, o ponto de partida do despertar filosófico está na percepção do caráter trivial da experiência, que antecede a distinção entre sujeito e objeto. Trata-se da consciência imediata do mundo, que antecede a intencionalidade cognitiva e volitiva: Na visão de Nishida, "fazer a experiência pura significa conhecer o real concreto assim como é", sem qualquer acréscimo do discernimento reflexivo. Para expressar sua idéia, menciona o átimo que envolve o ser humano na experiência das cores e do som. Não há ainda pensamento, mas uma presença que é "pura" e imediata, precedente a qualquer juízo a seu respeito. Nesse modo "puro" de experiência, o sujeito e o objeto estão completamente unificados[17]. Mais que ter uma experiência, o indivíduo é tomado por ela. Não é o sujeito que vê uma árvore, mas é essa que se mostra à sua vista.
A sintonia com a perspectiva zen budista é bem clara. Como assinala Suzuki, viver o zen é simplesmente viver. É algo simples e ordinário, mas requer atenção[18]. A mudança que ocorre é na vida interior. Num clássico dito do pensamento zen afirma-se:
Antes que eu penetrasse no zen, as montanhas nada mais eram senão montanhas e os rios nada a não ser rios. Quando aderi ao zen, as montanhas não eram mais montanhas nem os rios eram rios. Mas, quando compreendi o zen, as montanhas eram só montanhas e os rios, só rios[19].
A experiência pura traduz um refinado fenômeno de consciência, que afirma a prioridade ontológica do mundo face ao sujeito. Lendo uma vez as Confissões de Agostinho, Nishitani ficou comovido com a seguinte passagem: "Por ele vemos que é bom tudo o que de qualquer modo existe (...)" (Confissões, Livro XIII, 31). Com base nessa citação, sinaliza a positividade que se inscreve na verdadeira natureza de todas as coisas, e justamente por terem sido criadas por Deus[20].
O "originalmente puro" diz respeito ao que é incondicionado e indiferenciado. Pode ser relacionado com o estado de "não-mente", ou com o vazio, na medida em que não existe ainda a oposição entre sujeito e objeto. Mas é um vazio "carregado de vitalidade"[21]. No evento da consciência pura experimenta-se uma unidade que é "infinitamente ativa", traduzindo uma inusitada abertura ao infinito[22]. Na raiz desse constituir-se da realidade, encontra-se uma atividade de unificação, que Nishida identifica com Deus[23]. Ele não vacila em identificar Deus como o fundamento dessa atividade infinita, mas não um Deus superior e fora do universo, mas um Deus que fundamenta a atividade no universo e possibilita a "captação profunda da vida"[24].
Já insinuada na reflexão sobre a experiência pura, aparece outra idéia fundamental no pensamento de Nishida, que é a subjetividade elemental. Trata-se da subjetividade que emerge com a ruptura ou morte do eu-egocentrado, típico da modernidade moderna. Essa modernidade concebeu o eu como um em-si separado e destacado das coisas. O despertar do eu verdadeiro exige, necessariamente, a suspensão do desejo egoísta, do apego compulsivo e o sentimento de posse. Nada mais falso do que essa noção de eu, que é produtora de orgulho e arrogância: "a solidão dos que têm razão". Há um complexo e árduo caminho que vai do eu ao si-mesmo. O que Nishida propõe é simplesmente retomar esse eu verdadeiro, tão proclamado pelos místicos de distintas tradições. É o que no zen budismo vem identificado com o satori, ou seja, o despertar para o si-mesmo carente de eu; o despertar para a consciência daquele "pontinho no qual a alma se volta sobre si mesma, encontra a si mesma e sabe que ela própria é uma criatura"[25].
Como bem mostrou Thomas Merton, o ponto de arranque da reflexão de Nishida é sun ergo cogito (existo, logo penso). É, porém, um existir que vem banhado pelo sunyata (vazio); que está consciente do vazio primordial que habita todas as coisas[26]. Só o eu elemental é capaz de captar a realidade fundamental e acolher a vida de forma profunda, sua "naturalidade elemental", ou ainda melhor, a "outra borda desse mundo mesmo"[27].

3. A transpersonalidade de Deus
Na perspectiva aberta pela Escola de Kyoto, sobretudo na reflexão de Nishitani, a religião vem percebida como a "consciência da realidade", ou ainda, a "real consciência da realidade"[28]. O acesso a tal consciência vem favorecido quando mudanças substantivas acontecem na dinâmica existencial humana: quando se supera a percepção ordinária, onde as coisas e os eventos estão destacados do sujeito. Há que pensar, ao contrário, o mundo como um evento "dentro de nós"; ser capaz de visibilizar o mundo "prenhe de Deus". Como indica Nishitani, as coisas mais banais e cotidianas podem tornar-se focos peculiares de atenção e concentração, revelando dimensões completamente diversas e possibilitando um sentimento único do real. Um tal olhar é capaz de desocultar a ordem mística que irmana todas as coisas do universo, despertando "o profundo sentimento das coisas cotidianas"[29]. Quando as coisas são vistas em sua gratuidade, para além da esfera egocêntrica do eu, elas desvelam sua real realidade e acendem caminhos singulares de simpatia. O olhar é capaz de se perder nelas, e mesmo transformar-se nelas. Ao se perceber separado das coisas, o sujeito humano acaba por se distanciar de si mesmo, fechando-se num mundo de mônadas sem janelas. Exige-se um caminho distinto caso se queira captar a vida como uma "ligação vivente".
Não há como entender a existência humana sem a dimensão religiosa. É o que sinaliza Nishitani. A religião é para ele um dado necessário, revelando o que há de mais profundo na alma humana. Não pode ser concebida como algo separado da vida: identifica-se com a necessidade da vida mesma, presidindo a dinâmica de sua unificação mais profunda[30]. Em descontinuidade com o divórcio operado no Ocidente entre filosofia e religião, bem como entre busca científica e busca religiosa, Nishitani sublinha a inseparável presença da dimensão religiosa na existência humana. Na linha de sua reflexão, "a ciência será sempre um empreendimento humano a serviço de algo mais, mas quando se sacrifica o elemento existencial à busca da certeza científica, ´o que chamamos vida, alma e espírito – inclusive Deus – encontram seu lar destruído`"[31].
Embora rechaçando a tradicional idéia ocidental de uma transcendência divina, os pensadores de Kyoto não descartam a idéia de Deus ou a possibilidade de uma transcendência. Na reflexão pioneira de Nishida, Deus aparece como "a cifra do dinamismo da vida do mundo". Deus é, para ele, simultaneamente transcendente e imanente. O que é infinito não pode rejeitar o finito. Na verdade, o infinito habita no âmbito do finito[32]. Imaginar um Deus separado de tudo é desvencilhar-se de seu verdadeiro significado: "Um Deus que fosse simplesmente transcendente e auto-suficiente não seria um verdadeiro Deus"[33]. Não há como descartar a dimensão kenótica de Deus, que se esvazia de sua condição absoluta para envolver-se no domínio do humano. Deus se faz absoluto "não por sua independência do mundo, mas porque seu ser se relaciona com ele absolutamente"[34]. Para expressar essa relação de proximidade e diferença entre Deus e o humano, Nishitani recorre a Daito Kokushi: "Separados por uma eternidade, e nem um só instante distantes; face a face o dia todo, e jamais vizinhos um só instante"[35].
A reflexão de Nishitani vai em direção semelhante, reconhecendo a presença de Deus em toda a criação. A seu ver, reconhecer que Deus é onipresente significa abrir a possibilidade de encontrá-lo em toda parte do mundo[36]. Encontra, porém, dificuldade com a ênfase dada pela tradição cristã no aspecto pessoal de Deus. Sua proposta vai numa linha de sintonia com o budismo e a mística eckhartiana, com o acento dado no aspecto impessoal ou transpessoal de Deus. Como assinala James Heisig, o que Nishitani reivindica urgentemente para o cristianismo é a recuperação da imagem de Deus como um "amante ´impessoal`, no sentido mais nobre da palavra"[37]. Com o aporte da reflexão de Eckhart, Nishitani reapropia-se da idéia de um "Deus mais além de Deus", do "Deus vazio de todas as coisas"[38], ou seja, da deidade, enquanto uma divindade elemental. Como indica Nishitani, o que assegura a plausibilidade da idéia de Deus é encontrar "uma impersonalidade mais fundamental por trás da personalidade de Deus"[39]. É o que havia defendido Eckhart num de seus sermões alemães, com a idéia de Deus como "Um simples", que não existe "no modo e na ´propriedade`de suas pessoas"[40]. A retomada dessa imagem de Deus é, para Nishitani, condição essencial para o rejuvenescimento das imagens de Deus em curso nas diversas tradições religiosas.

4. O nirvana no âmbito do samsara
Na busca de superação de todos os dualismos, Nishitani propõe o movimento da transcendência para a vacuidade. Entra-se aqui num campo complexo, cuja fecundidade não foi ainda devidamente alcançada na cultura ocidental moderna. No budismo zen trabalha-se com a idéia de "plenitude do nada"[41], de um nada cheio de sentido. A noção de sunyata (vacuidade), na tradição budista, não implica um não-ser ou negação do ser. Na realidade, ela é anterior ao ser e sua condição de possibilidade. E ainda mais, é o que possibilita a liberdade do ser[42]. Para Nishitani, é o caminho do sunyata que responde de forma mais radical ao desafio do nihilismo contemporâneo. É o que possibilita a transcendência para o mundo. O "abismo" do nihilismo encontra na vacuidade "um vale insondavelmente profundo no interior de um infinito aberto", de um infinito que envolve a terra e o ser humano[43]. Trata-se de uma noção que se aproxima da mística advaita, presente na tradição hindu. Para além do monismo e do dualismo, a intuição advaita indica a ausência de dualidade que está na base da realidade. É uma intuição que transcende o pensamento dialético e possibilita o vislumbre do Uno como "Um-sem-segundo"[44].
No desdobramento de sua reflexão sobre a subjetividade elemental, Nishitani destaca que o verdadeiro alcance da unificação mística só acontece quando a subjetividade despoja-se radicalmente de suas amarras egocentradas e se "perde" em Deus. É nesse momento que se alcança o fundo da subjetividade e se alcança o nada absoluto da Deidade[45]. Esse "perder-se em Deus" não significa, porém, deslocamento ou isolamento da realidade. O "nada absoluto" como campo da Deidade não desloca o sujeito de seu cotidiano. O "estar na Deidade" não se reduz ao momento de mera contemplação de Deus, mas envolve, e radicalmente, a realização da Deidade na vida cotidiana concreta[46]. Com razão, Suzuki assinala que "o nirvana deve ser buscado no seio do samsara"[47]. A transcendência para a vacuidade deve acontecer no centro da vida do mundo. Na visão de um dos grandes reformadores da tradição budista japonesa, o mestre Dogen (1200-1253), "aprender a via do Buda é aprender a si mesmo; aprender a si mesmo é esquecer-se de si mesmo; esquecer-se de si mesmo é ser despertado por todas as coisas"[48].
Há na tradição budista uma íntima conexão entre os conceitos de sunyata, não- ego e compaixão (karuna). O mesmo ocorre com a noções de kenosis e sunyata. O exercício da compaixão requer o esvaziamento de si, a ruptura da hybris totalitária e da desmesura. Quando se vive a profundidade da experiência do não-ego, ou da subjetividade elemental, o exercício do amor não-discriminante acontece de forma natural[49]. O traço característico do "eu libertado do auto-apego é um amor indiferenciado para com todas as coisas, como Deus que faz brilhar o sol ou libera a chuva sobre bons e maus, sem nenhuma discriminação"[50]. Esta perspectiva foi captada de forma admirável por Mestre Eckhart, ao tratar a questão de Marta e Maria, no sermão alemão 86. A figura de Marta ganha um lugar de destaque nesse sermão, na medida em que ela exercita o fundo da alma ao extremo. Trata-se de alguém que vive a essencialidade, e de forma muito livre, fazendo com que sua ação no cotidiano ganhe uma fluência singular.

Conclusão
Ao final de sua preciosa obra sobre a Escola de Kyoto, James Heisig assinala algumas perspectivas abertas pela singular reflexão de seus pensadores. Vale mencionar toda a discussão em torno da questão do não-eu como sujeito da eleição moral; da atenção precisa ao real; do questionamento à concepção antropocêntrica da realidade e as originais reflexões sobre o Deus transpessoal. Pistas singulares ocorrem na relação dessa Escola com o budismo, e suas implicações para o diálogo com o cristianismo. Talvez um dos pontos mais substantivos de aporte da reflexão acontecem no campo da mística. Há intuições exemplares na linha de uma mística do cotidiano. Pode-se destacar a convocação a um novo modo de pensar as coisas. Segundo Ueda Shizuteru, um dos últimos representantes dessa Escola, "habitamos um mundo essencialmente limitado, que limita com o ilimitado e no limite está rodeado pelo aberto ilimitado e de algum modo penetrado por ele"[51]. O grande desafio consiste em estar atento para ouvir o canto das coisas. Isso requer uma orientação do ser humano para dentro de si mesmo, de despojamento profundo dos apegos ensimesmadores, de reforço na atenção e simpatia para com tudo.
Publicado no livro eletrônico do Instituto Humanitas: X Simpósio Internacional IHU. Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica, pp. 916-937:

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