quinta-feira, 13 de junho de 2013

A ÉTICA DO SAMURAI


A Ética Samurai no Japão Meiji
Gabriel Pinto Nunes

http://www.academia.edu/1111530/A_Etica_Samurai_no_Japao_Meiji

No final do século XIX, os movimentos conservadores que se proliferavam com o intuito de manter o poder político exaltavam o tradicionalismo dos camponeses como um comportamento necessário para barrar a modernização que destruía o velho sistema de subordinação. Entretanto, o Japão foi um exemplo de país que sofreu um processo de modernização econômico e político mantendo as relações sociais praticamente intocáveis. Foi um exemplo de país que conseguiu abolir o sistema de produção feudal adotando o capitalismo sem abandonar a estratificação social concebida durante os anos de domínio político dos samurais, conhecido como Período Tokugawa ou Edo (1603-1868).
“Teoricamente, era possível conceber uma ‘modernização’ que mantivesse a velha organização social (possivelmente com um pouco de invenção ponderada de tradições), mas fora o Japão, é difícil encontrar outro exemplo de sucesso na prática”. (Hobsbawm, 2008, p. 274)
Até 1852, o Japão utilizou uma política isolacionista (
Sakoku
), fechando seus portos a todos os povos, com exceção dos chineses e holandeses, com quem continuaram a manter laços comerciais por mais de duzentos anos (JANSEN, 2000). Tal isolamento do mundo fez com que o poder político do xogunato e a estrutura social se mantivessem por tanto tempo sem que sofresse nenhum tipo de ataque de movimentos políticos interessados na reestruturação social do país. No Japão, ao contrário da Europa, o comércio que originou o capitalismo como o conhecemos não teve elementos suficientes para surgir, o que justifica ofato de, às portas do século XX, este ser um dos poucos países do mundo no qual ainda resistia um sistema de produção similar ao feudal. Juntamente com a abertura dos portos e a entrada massiva de estrangeiros, chamados de
oyatoi gaikokujin
, para ensinar aos japoneses as novas técnicas ocidentais a serem utilizadas na nascente indústria, houve a propagação de missionários protestantes e ideias que não tiveram um desenvolvimento natural dentro do pensamento nipônico como ocorreu na Europa. Podemos afirmar que a produção acadêmica japonesa no início do século XX foi uma cópia daquilo que era feito na Europa, tanto que muito dos intelectuais que trocaram o confucionismo em favor das filosofias ocidentais as usavam sem muita preocupação, como senão houvesse problemas em utilizar argumentos de escolas antagônicas de pensamento. Isso não ocorria por desleixo ou incompreensão por parte dos japoneses, mas por haver uma ânsia em assimilar o máximo possível de informações e tentar aplicá-las ao mundo em que viviam. Somente com Nishida e a Escola de Kyoto houve uma verdadeira estruturação da pesquisa científica em filosofia no Japão, de maneira organizada baseada principalmente nos estudos de Heidegger. Até então, tínhamos o desenvolvimento de diversas doutrinas de pensamento sem que houvesse continuidade posteriormente. Neste período imediatamente anterior ao de Nishida existiram diversos intelectuais que tentaram utilizar as filosofias ocidentais como sustentação de pretensões governamentais, entre as quais podemos destacar a preocupação de unificação nacional em torno de uma identidade japonesa autêntica. Essa preocupação com a unificação se devia ao fato de o Japão sempre ter sido um arquipélago composto de diversos povos com particularidades culturais que os diferenciavam. A aparente unidade política era mantida por meio de tratados políticos e acordos firmados ao final de guerras, ajudados pela política isolacionista. Rapidamente, os japoneses aprenderam com os europeus a importância da unificação como instrumento de crescimento econômico e
político, principalmente se existiam interesses na ampliação da influência política na região ou na dominação militar de outros territórios. O nacionalismo que pairava sobre a Europa também havia lançado suas garras sobre o Japão, havendo todo um esforço político para o seu sucesso. Desta forma, o Período Meiji (1868-1912) ficou conhecido como a época histórica na qual os japoneses preocuparam-se em reescrever a própria história e reestruturar-se de forma a abarcar o novo nacionalismo baseado nos modelos europeus. Dos processos iniciados no Período Meiji com esse propósito nacionalista, podemos destacar: a elevação do xintoísmo ao patamar de religião oficial do Estado, a releitura do confucionismo para se readequar ao aparato estatal e social divulgado através da educação universalizada, a aplicação das ciências exatas ocidentais com o intuito de modernizar rapidamente o país e o sistema industrial e a extinção da classe dos samurais com a criação de uma imagem heroicizada deles com o intuito de desenvolver uma identidade nacional. Em certa medida, tal pretensão governamental justificava a postura dos primeiros intelectuais nipônicos em realizar uma cópia, mesmo que às vezes confusa, do que era desenvolvido no campo da filosofia na Europa. A famigerada Restauração Meiji (1866-1869),oficialmente, é entendida como a volta do poder político às mãos do Imperador após mais de duzentos anos de domínio político por parte do Xogum, enquanto que na prática foi a adaptação do Japão ao novo modelo econômico-político mundial que privilegiava a continuidade da classe política que já possuía poder político durante os últimos anos do Xogunato

II

A filosofia no Japão antes do Período Meiji era em sua maioria decorrente diretamente do confucionismo chinês. Diversos pensadores desenvolveram trabalhos intelectuais baseados nas vertentes do confucionismo chinês, do qual hodiernamente ainda há resquícios. Confúcio viveu entre 551 a 479 a.C., onde encontra-se a atual China, e dedicou parte de sua vida ao estudo e ensinamentos dos chamados clássicos, livros que continham a base do conhecimento intelectual da época. Aos olhos dos ocidentais, como Hegel, o confucionismo era uma filosofia moral (HEGEL, 2001, p. 182) por não possuir uma parte especulativa. Não podemosnos esquecer de que Hegel pertencia a uma tradição de pensamento focado no pensamento
metódico e científico, sem grandes relações com o pensamento mitológico, enquanto que Confúcio, e boa parte dos pensadores do extremo leste asiático, desenvolveram seus sistemas de pensamento sem a necessidade dessa cisão.
It fell to the lot of Confucius (b.c.551 to B.C. 479), at the end of the Shudynasty, to elucidate and epitomize this great scheme of synthetic labour,worthy of study by every modern sociologist. He devotes himself to therealization of a religion of ethics, the consecration of Man to Man. To him,Humanity is God, the harmony of life his ultimate. Leaving the Indian soultosoar and mingle with its own infinitude of the sky; leaving empiric Europeto investigate the secrets of Earth and matter, and Christians and Semites to be wafted in mid-air through a Paradise of terrestrial dreams — leaving allthese, Confucianism must always continue to hold great minds by the spellof its broad intellectual generalizations, and its infinite compassion for thecommon people. (OKAKURA: 1905, p. 27)
Dentro do confucionismo surge uma concepção que será muito aproveitada durante o Período Meiji, segundo a qual o homem atingiria a sua consagração como divindade se seguisse uma vida harmoniosa baseada na ética. Nas mentes ocidentais essa ideia de homem superior remete imediatamente à obra de Nietzsche, o qual tem em Zaratustra a figura daquele que procura continuamente o homem superior. A presença da ética no pensamento confucionista nos revela uma preocupação com a vida em sociedade, ou seja, parte do princípio de que o homem é por excelência um homem social que se completa no convívio com o outro. Não muito diferente do proposto pelos pensadores da Grécia antiga, como Aristóteles, que entendia o homem como um animal político (
 zoon politikon
). Contudo, a diferença entre o pensamento confucionista e o aristotélico se dá com o uso do mito, enquanto Confúcio enfatizava a conotação deífica que o homem poderia vir adquirir, mais sublime e menos terrestre, Aristóteles preferia o entendimento do homem como animal político, mais terrestre e menos sublime.

2

No Japão, podemos destacar duas correntes do confucionismo que se sobrepuseram as demais desde o Período Tokugawa e que influenciaram profundamente o pensamento ético no Período Meiji: (a)
Chu Hsi
ou
 Zhu Xi
(1130-1200) a qual ficou conhecida no Japão como Sorai por ter sido difundida principalmente por
Ogyû Sorai
(1666-1728) e a (b)
Wang Yang


Ming
(1472-1529) chamada de Ôyômei e difundida no arquipélago por
 Motoori Norinaga
 (1730-1801).
It’s very attitude, that of inquiry, prevents it from crystallizing into anysingle solution of Confucianism. Some of its adherents, like Sorai, go as far as to maintain that Confucius was purely a political philosopher and not ateacher of ethics. Some, on the other hand, like Yamaga-Soko, to whom weowe the development of the Samurai Code on a Confucian basis, found inJapanese institutions the expression of the moral law of the Chinese sage.Yet however they differed individually in their conclusions, they united in being heretical toward the orthodox Tokugawa notions, and all were objectsof disapprobation to the authorities,—Yamaga-Soko, who commanded aconsiderable following, being banished from Yedo to the distant andinsignificant daimiate of Akho. Yet even during his confinement there his personality inspired the well-known Forty-seven Ronins to attempt their memorable feat of loyalty, remarkable not only as revealing a new ideal of samurai-hood, but eloquent in its silent protest against the Tokugawa regime.(OKAKURA: 1904, pp. 72-73)
A corrente confucionista Sorai defendia dois princípios básicos: o
Qi
como força vital e o
 Li
como princípio racional. O desenvolvimento delas se daria a partir da ação do homemno mundo. Por exemplo, a bondade era entendida como inata aos homens e o culto à moral trazia clareza ao
Qi
. Uma atitude humana somente pode ser entendida como boa ou má por meio de um sistema ético. Como visto anteriormente, a ética no confucionismo era algo necessário para a existência do homem que apenas vive e existe em comunidade ou sociedade. Atitudes que resultassem em atos de bondade seriam benéficas ao homem, pois limparia a força vital (
Qi
) de qualquer impureza, aproximando o homem de atingir o seu ideal de homem superior. Nessa vertente era admitido que mesmo os que agissem imoralmente não poderiam ter suas atitudes julgadas como más, pois o princípio supremo regulador é bom, ou seja, por pior que fosse a atitude, o motivado de tudo residia no bem. Para que isso pudesse se concretizar, assumiam que o conhecimento e a ação eram componentes indivisíveis da atividade verdadeiramente inteligente do homem, sendo a ação mais importante. Porém, o conhecimento deveria vir em primeiro lugar na ordem natural das coisas porque a moral aos homens era inata.
Yamaga Soko
(1622-1685) foi um filósofo e estrategista militar japonês que baseou todo o seu pensamento na corrente Sorai. Com o objetivo de possibilitar aos samurais que atingissem a condição de homem superior, acabou por ser o primeiro a ‘compilar’ o primeiro código de normas, ou sistema ético, para a classe dos guerreiros japoneses, que conhecemos hodierna como
bushidô
. Foi mestre de
 Daidoji Yuzan
(1639-1730), autor de uma obra sobre o
bushidô dos samurais na qual encontramos a busca do equilíbrio entre o militar
e a cultura
4
.Foi escrita em uma época na qual os guerreiros poderiam ter sumido por não serem mais necessários, visto que os conflitos haviam quase cessado completamente. Mas Yuzan faz uma abordagem na qual mostrava que a existência dos samurais não se resumia a fins bélicos.Afirma que em tempos de paz o cavaleiro deveria se dedicar ao estudo da caligrafia, aperfeiçoamento das artes bélicas entre outras atividades, abandonando a figura dos primeiros guerreiros japoneses das guerras civis, analfabetos e rudes. Dentro da sua obra, cria duas ordens com duas divisões cada: a primeira ordem se divide em oficiais e soldados e a segunda, em exército e assuntos de batalhas. Notamos haver preocupações marciais,ocupando-se da formação do corpo do exército para depois preocupar-se com a batalha. Yuzan ressalta serem essenciais três qualidades ao guerreiro: a lealdade, a boa conduta e o valor (YUZAN, 2004, p. 31). A obra se resume a um manual com regramento para a classe samurai, não podendo ser chamado de uma compilação ética ou moral. Há grande preocupação com a etiqueta seguida pelos samurais no cotidiano, ou seja, ênfase nas relações sociais e regras de etiqueta, com ausência da exposição de qualquer rito cerimonial específico ou explicação aprofundada dos conceitos usados. Essa característica estritamente prática de pensadores como Yuzan com a postura dos samurais é decorrente da interpretação do confucionismo Sorai no qual a ética seria o caminho para se atingir o homem superior. A ética assume um caráter muito específico de regramento da vida sem a necessidade de dar sentido às coisas ou de ser utilitarista.

The second school, which started at nearly the same time as the first, iscalled the School of Oyomei, from the Japanese pronunciation of Wangyangming, the name of its founder. This remarkable man was a greatgeneral as well as scholar who lived in China at the beginning of thesixteenth century, under the Ming dynasty. He never ceased to discourseeven during the brilliant campaigns in which he was victorious over therebels in Southern China. His philosophy was an advance on the Neo-Confucianism of Shiuki, whose doctrines, however, he accepted in the main.His principal contribution lay in his definition of knowledge. With him allknowledge was useless unless expressed in action. To know was to be.Virtue was real in so far only as it was manifested in deeds. The wholeuniverse was incessantly surging on to higher spheres of development,calling upon all to join in its glorious advance. To realize their teachings itwas necessary to live the life of the sages themselves, to consecrate one'

whole energy to the service of mankind. Thus he brought Confucianismagain into its true domain, that of practical ethics. (OKAKURA: 1904, pp.74-75)

A vertente Ôyômei foi a que mais teve influência no Período Tokugawa tardio e no Período Meiji. Tal corrente de pensamento afirmava que o conhecimento era intuitivo, não racional e inato a todos os homens, ao contrário da corrente Sorai, que afirmava ser a bondade inata ao homem. Isso gera diferenças de interpretação, visto que a Ôyômei admitia uma leitura mais abrangente que a Sorai: o homem não tinha conhecimento apenas da bondade,mas de tudo que fosse pertencente ao campo da moral. Há o reforço do caráter virtuoso doshomens de que todos nasciam conhecendo a diferença entre o bem e o mal, afastando a ideia de que o agir virtuoso fosse algo adquirido pelo hábito. Também afirmavam que o conhecimento e a ação eram duas coisas distintas, mas que deveriam ser entendidas como algo único devido à condição de dependência entre ambas para que pudessem existir, uma consequência direta da condição humana de possuir conhecimento inato. Por tê-lo, o homem sempre seria agente da ação, eliminando a possibilidade de passividade humana. Aquele que não atua no meio social não teria conhecimento, mas como todos têm esse conhecimento desde o nascimento, deveriam agir, sendo impossível encontrar alguém que não agisse e detivesse conhecimento inato sobre o bem e o mal. Nesses termos, os samurais, tendo conhecimento moral, eram obrigados a exercerem atitudes corretas na sociedade, daí o argumento para criticar aqueles que agissem imoralmente ou que cometessem crimes. A moral se baseava na garantia incondicional de que todos sempre procurariam agir corretamente.


III

Durante o Período Meiji, a criação e uso do sistema ético dos samurais no Japão adotou uma finalidade que ia além da sistematização de valores morais como regramento da vida cotidiana, foi também um meio de difusão da política nacionalista que ainda nessa época não apresentava as características fascistas que viria a ter durante o Período Taisho e Período Showa. O bushidô
foi um termo cunhado para representar a ética dos samurais japoneses e podemos assumi-la como releitura de termos como
 shidô
e
kakun
com a finalidade de auxiliar na criação de uma identidade nacional para a unificação de todos os povos do arquipélago
nipônico. O processo de unificação nacionalista do Japão partia de uma imagem idealizada de herói, encontrada no samurai, a qual fornecia uma releitura confucionista dos códigos de condutas desses guerreiros como base da ética seguida pelas pessoas.Houve um processo pelo qual o bushidô deixou de ser apenas o conjunto de preceitos morais seguidos pelos guerreiros, formado por normas e instruções desenvolvidas segundo os interesses e valores dos clãs aos quais pertenciam, para tornar-se a ética do povo japonês independente da classe social que ocupasse. Essa releitura do bushidô fazia parte de um movimento conservador que não propunha mudanças sociais, visto que incentivava a hierarquia social proveniente do sistema feudal, nem fazia referências a qualquer aspecto político. A Restauração Meiji em si foi um movimento conservador tendo em vista que as mudanças no campo político beneficiaram grande parte da classe política existente, concentrando os esforços na substituição do sistema de produção econômico. Por causa da pluralidade de clãs e famílias que tinham samurais prestando serviços,fica difícil afirmarmos qual vertente do confucionismo predominava ao final do PeríodoTokugawa. Autores como
 Inoue Tetsujirô
(1855-1944) adotaram como fundamentação ética o pensamento confucionista Ôyômei, baseado em Motoori Norinaga.
Tetsuro Watsuji
 (1889-1960), como Inoue, era defensor dessa vertente e se contrapunha à interpretação de
 Inazo Nitobe
(1862-1933) sobre o bushidô e o acusava de fazer uso da vertente Sorai, além de inserir muito valores ocidentais e cristãos na sua versão da ética japonesa. A versão de Nitobefoi a primeira a chegar ao ocidente após a abertura dos portos por meio da obra
 Bushido – The Soul of Japan
, publicada em 1899 nos Estados Unidos. As interpretações de Inoue e Watsuji chegaram à Europa posteriormente por publicações traduzidas. Uma das últimas versões do bushidô a ser difundida no mundo foi a tradução e comentários de
Yukio Mishima
 (1925-1970), a obra
 Hagakure
de Yamamoto Tsunetomo, que podemos interpretar como uma reinterpretação ultranacionalista do bushidô de Inoue. Contudo, todos compartilham da mesma ideia de bushidô: como sendo um código de conduta seguido pelos samurais.

Bushido, then, is the code of moral principles which the knights wererequired or instructed to observe. It is not a written code; at best it consists of a few maxims handed down from mouth to mouth or coming from the pen of some well-known warrior or savant. More frequently it is a code unutteredand unwritten, possessing all the more the powerful sanction of veritabledeed, and of a law written on the fleshly tables of the heart. It was foundednot on the creation of one brain, however able, or on the life of a single

personage, however renowned. It was an organic growth of decades andcenturies of military career. (NITOBE: 1972a, p. 25)

Devemos ter em mente que o termo como nos é apresentado, bushidô, é uma construção do Período Meiji, sendo difícil encontrarmos na literatura anterior a essa época noJapão referência explicitas ao termo. A forma mais conhecida era a de
kakun
6
, entendida como preceitos familiares que deveriam ser seguidos por todos os que fizessem parte de determinado clã ou família. Podemos tomar como exemplo as artes marciais japonesas, agregadas como
budô
no mesmo período, as quais um praticante, ao tomar aulas com um instrutor, passava a fazer parte da família, ou seja, a organização por clã ainda era comum no Japão e tal concepção perdurou após o Meiji. A interpretação de Inoue sobre o termo bushidô com influência do confucionismo
Ôyômei
foi utilizada para reforçar o nacionalismo até 1903. Dessa data em diante passou a ter um tom mais agressivo e serviu de apoio ao movimento imperialista japonês. A ética dos samurais foi utilizada por Inoue para pregar a unicidade da cultura japonesa e a superioridade frente às demais, transformando-a em propaganda e incentivando a discussão sobre a ética marcial (BENESCH, 2011, p. 173). Segundo Benesch, a leitura do bushidô de Inoue deve seguir cinco pontos:
Inoue’s
bushidō

theories were marked by five primary elements: a closerelationship with the military as an educator and ideologist; ultranationalismand the emphasis on a unique Japanese spirit; pronounced anti-foreignismframed in the rhetoric of Japanese superiority; aggressive intolerance of other views as a self-appointed defender of “orthodoxy”; and the exaltationof Yamaga Sok
ō
as one of the most important thinkers in Japanese history.(BENESCH: 2011, 177)

A postura de Inoue estava mais próxima das pretensões políticas japonesas da época,diferentemente da versão de Nitobe que propunha a cooperação internacional entre os países


O apoio ao militarismo no Japão era explícito nas obras mais tardias, pois entendia que esse seria o melhor caminho para que o país pudesse buscar novas fontes de energia, tendo em vista que o arquipélago não possui recursos naturais em abundância se comparado aos países vizinhos e continentais. Ele também apoiou o surgimento do ultranacionalismo baseado em uma concepção pura do ser japonês, excluindo qualquer interferência estrangeira, principalmente o cristianismo, que julgava incompatível com a forma de pensar autêntica dos japoneses. Tudo isso ajudava a alimentar um forte xenofobismo, fazendo com que sua interpretação do bushidô se aproximasse do fascismo. Como apontado por Benesch (2011), a postura política de Inoue sempre foi concordante com os objetivos governamentais,exemplificado pela sua postura contrária ao suicídio em meados dos anos 1903, mas até ofinal da década de 1920 mudou completamente, entendendo que o suicídio quando praticado por militares ou civis seriam sinônimos de austeridade e amor quando praticados em benefício da pátria.Vemos o uso instrumental da concepção de ética para Inoue, cujo foco principal é a propaganda nacionalista xenófoba. Nitobe, por sua vez, fez um discurso conciliador, com o intuito de aproximar os países de cultura ocidental com o Japão. Em seus discursos, privilegiava a cooperação internacional e não a imposição de vontade de uma ou outra nação.Enquanto representante do Japão na Liga das Nações, de 1920 até 1926, defendeu seus argumentos sem contar com total apoio do governo japonês, sendo esse um dos principais motivos para o seu desligamento desse cargo. Em textos posteriores, afirmava que o Japão deveria evitar o militarismo e o comunismo, pois tanto um como outro levariam à ruina do país. Entendia que para o Japão se tornar uma potência econômica era necessário estabelecer alianças políticas com as principais potências econômicas mundiais, além de incorporar algumas pequenas mudanças sociais e políticas para facilitar a aceitação do Japão. Notamos que Inoue e Nitobe defendiam posições inconciliáveis, porém, compartilhavam o bushidô como sistema ético.

A versão do bushidô de Nitobe se tornou mais difundida no ocidente, e um dos principais pontos que chamam atenção na obra é a presença da imagem idealizada do samurai como um herói nacional que deveria servir de modelo de identidade nacional a todos os japoneses visando à unificação de todos os povos do arquipélago. Nesse aspecto, temos a aproximação de sua obra com o idealismo romântico de Carlyle, tendo em vista que esse processo de identificação do samurai como um ser iluminado, um homem superior que tem como objetivo atingir a plenitude de caráter ao mesmo tempo em que ilumina todas as boas almas, é comum ao movimento romântico alemão.Outro aspecto da obra de Nitobe são os flertes com a obra Reflexões sobre a Revolução em França de Edmund Burke por haver a defesa do continuísmo da classe aristocrática japonesa por meio da hereditariedade. Temos a defesa da propriedade privada e que por meio da desigualdade entre os homens causada pela existência de uma estrutura social hierarquizada seria o meio de garantir a continuidade da propriedade.
“O poder de perpetuar nossa propriedade em nossas famílias é um de seuselementos mais valiosos e interessantes, que tende, sobretudo, à perpetuaçãoda própria sociedade.” (BURKE: 1982, 83)
Contudo, a ética dos samurais pela visão de Nitobe não seria apenas a defesa de um historicismo conservador, sendo a sociedade algo imutável e cristalizado no tempo. Diferentemente de Inoue, nessa abordagem do bushidô encontramos a influência do evolucionismo social de Herbert Spencer, que atuará de duas maneiras dentro da obra: primeira, as virtudes cultivadas pelos samurais deveriam ser entendidas como indício do
contínuo processo de evolução social inclusive dentro da sociedade industrializada e,segunda, o caráter conservador era fruto direto desse processo de evolução, afastando qualquer interpretação de que a ética como proposta pelo autor poderia assumir aspectos negativos.Assim, podemos resumir que o bushidô de Nitobe propôs uma ideologia construída artificialmente com traços de historicismo conservador e nacionalismo romântico, utilizada para fomentar a criação de uma identidade nacional em todo o arquipélago com o intuito de unificá-lo, surgindo uma nação forte, sem se debruçar aos apelos do fascismo ou do imperialismo. Tanto o bushidô de Nitobe quanto o de Inoue ou de seus contemporâneos nunca tiveram um uso real, ou seja, nunca foram utilizados pelos samurais japoneses durante a era feudal

IV

Vemos que a “ética samurai” desenvolvida no Japão durante o Período Meiji foi uma construção intelectual tendo como base o confucionismo. Dentro do contexto histórico em que surgiu, teve dois papéis: dar regramento à vida dos cidadãos e ser um instrumento para a criação da identidade nacional. Ambos os papéis contribuíram com a política nacionalista desenvolvida pelo governo japonês.A versão do bushidô de Nitobe foi voltada exclusivamente ao público ocidental. As interpolações cristãs e referências ocidentais facilitaram o processo de divulgação dos valores japoneses, favorecendo indiretamente o estabelecimento do contato entre Japão e os países ocidentais, que culminaria com acordos econômicos e políticos. Também foi responsável pela construção idealizada do samurai e do cidadão japonês e ainda tem influência na versão hodierna do indivíduo japonês.Inoue, ao contrário de Nitobe, estava mais preocupado com questões ligadas à política japonesa. Por isso, podemos afirmar que a sua leitura da “ética samurai” expressada pelo bushidô tinha como objetivo principal responder aos anseios da política militarista eimperialista japonesa. No fim da vida, seu discurso ajudou a cunhar o pensamentoultraconservador no Japão, algo que somente findou com a morte de Yukio Mishima.Comparado com Nitobe, Inoue fez uma construção mais artificial e frágil, sendo possívelnotarmos volatilidade dos conceitos usados ao longo de toda sua obra devido às drásticas
mudanças de postura referente a assuntos complexos como o suicídio, defendido nos últimostextos como expressão da grandiosidade de caráter e do espírito guerreiro japonês.
È qui evidente il tentativo di instaurare un dibattito interculturale fra Orientee Occidente sulla base dell’ammissione dell’inferiorità della culturagiapponese nei confronti di quella europea, in pieno acordo con la volontà diconfronto che anima in parte ancora il tardo período Meiji. Il bushidô, le cuivirtù sono tutte di carattere “sociale” è destinato a scomparire in un’epoca incui si è spostato l’accento sul valore dell’individuo, e si sono introdotte lefilosofie che su di esso si basano (principalmente l’utilitarismo e ilmaterialismo empirista di stampo inglese) con le quali soltanto ilcristianesimo, con il suo codice morale “individualistico”, può convivere. Laconvergenza fra gli ideali del bushidô e quelli del cristianesimo è possibile perché esiste una sostanziale “identià moralle della specie umana, nonostantei tentative costantemente fatti per rendere più grande possibile la distinzionefra cristiani e pagani”. Il modo in cui Nitobe intende affrontare il problemadel dibattito interculturale può essere meglio chiarito tramite il ricorso a dueesempi di comparazione fra i costumi giapponesi e quelli occidentali.(MONCERI: 2000, 51)
Nessas versões do confucionismo de um ponto de vista marcial japonês do século XX,temos a construção de uma identidade nacional voltada à unificação dos povos que habitavamo arquipélago nipônico. O samurai é reinterpretado como o herói nacional, aquele que serviráde modelo às gerações futuras, guiando-os em um caminho de rigor moral rumo ao estadomais elevado da condição humana e da vida em sociedade.


Referências Bibliográficas

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São Paulo: Madras, 2004

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