segunda-feira, 10 de junho de 2013

A natureza indomável do paraíso

 
A América se fez á sombra da visão barroca do mundo, inflacionando a polissemia da tradição ibérica. Mas de um barroco particular, distinto do peninsular. No Novo Mundo, o Barroco não apenas reage á perda metafísica da velha noção de espaço medieval ou preservada pelo neotomismo. Ele é a expressão direta de um espaço ampliado, imenso, inapreensível pela antiga imaginação do kósmos, e que nasce sobrecarregado de sonhos, esperanças e utopias. Não é trabalho de uma subjetividade que se vê subitamente em solidão na mesma paisagem que antes derramava sentido sobre a vida, como na Europa. A América é a fronteira em movimento que reclama e materializa uma nova noção de espacialidade, um insólito desafio cosmológico e antropológico.
A reflexão universalista de Vitória e do neotomismo, desalojando as premissas renascentistas e humanistas, oferecia um enquadramento geral e inicial para a aventura ibérica no ultramar e controlava a perplexidade inicial vivida por Colombo e seus mais imediatos sucessores. Mas não respondia a todas as exigências cotidianas enfrentadas pelo europeu recém-chegado, marcado pela consciência de um oceano ás costas e o desconhecido á frente. À medida que os ibéricos controlam a extensão das costas atlânticas, e os espanhóis penetram nos territórios interiores, esta quarta parte do mundo exibe seus pequenos e grandes mistérios, acentuando a precariedade dos quadros conceituais europeus para captura-la com integridade.
Havia em primeiro lugar a natureza, forma imediata da materialidade do espaço. Os ibéricos dela se apropriam na perspectiva do maravilhoso, pela visão onírica que Carpentier continuará adotando com gosto em pleno século XX. Natureza percebida ,com maior clareza do que na produção estética do século XVII europeu, como objetiva, dotada de vida própria, abrigando riquezas e segredos que alimentavam o mito do Eldorado, modulação que o Barroco preservará como obsessão pelo ouro, pela prata e pelas pedras preciosas. O espanto e admiração iniciais prosseguem vivos durante todo o período da conquista espanhola e do movimento mais tardio da expansão portuguesa. Mas associam-se rapidamente á dor, maculando as primeiras imagens. A massa impressionante de cordilheiras e montanhas, a vastidão das planícies, o gigantismo dos rios, próprios de uma natureza arrogante e hiperbólica, é tanto o lugar da aventura messiânica, da sôfrega busca por tesouros, quanto do desenraizamento, da solidão, da morte súbita e besta. Nada parecia obedecer á nada nesta natureza desconhecida, desordenada e dissipadora, espécie de útero aberto que abrigava, na mesma proporção, a crueldade da solidão e as promessas da abundância. Na América, o tema barroco da ‘’soledad’’ encontra nos horizontes infinitos das serras, matas e planícies o palco adequado para sua permanente atualização, como em Martin Fierro nos pampas argentinos do século XIX.
O domínio sobre esta natureza exuberante se desenvolve como luta contra uma potência estranha e misteriosa. E exigia a repetição do gesto adâmico de nomear as coisas, incorporando-as a um repertório prévio de conceitos e idéias da Europa. Tarefa que leva os ibéricos para o reino da metáfora e da analogia, assimilando ainda a contribuição nativa.
(...)Sem duvida esta sociedade nascente desenvolveu técnicas e saberes especiais para viver e crescer , mas a característica básica da relação homem-natureza estará sempre balizada pelos azares do solo ou das águas, sem assistir ao desenvolvimento de uma noção moderna de trabalho como reelaboração produtiva da natureza. Na verdade, as potências criativas do homem estarão imantadas pelo poder e a arte, fracamente empenhadas na subjetivação da natureza.
(...)
A diversidade natural do novo continente se impunha sobre a sociedade dos homens, determinando em parte a pluralidade das formas de organização social, das tecnologias de exploração, das expectativas de prosperidade, oferecendo ainda o material para o sentimento telúrico que irá conformando nas várias regiões americanas o sentido de pátria,numa acepção ainda não nacional. Este aprendizado a que a natureza submete o europeu transforma-se, progressivamente, em capacidade de controle sobre materiais desconhecidos e em sensação de domínio sobre a arrogância da natureza, manifestada mais através da arte do que da técnica e de seu contínuo desenvolvimento.
Para os americanos barrocos, assim como para os de hoje, a natureza nunca foi ou é uma pura matéria, plástica aos desígnios fáusticos e autônomos dos homens. No ‘’Discurso Histórico e Político sobre a Sublevação que nas Minas houve no Ano de 1720'', o autor anônimo e contemporâneo dos fatos não tem dúvidas em vincular, em prosa inexcedivelmente barroca, a índole turbulenta da gente mineira a uma natureza animada por poderes infernais:
‘’Eu, contudo, reparando com mais atenção na antiga e continuada sucessão de perturbações que nelas se vêem, acrescentarei que a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdades os ares; vomitam insolências as nuvens; influem desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo, e amotinada lá por dentro, é como no inferno’’
Sarmiento não deixará de registrar sociologicamante e lamentar esta eficácia da natureza(...)

 
TRADIÇÃO E ARTIFÍCIO
Rubem Barboza Filho

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