domingo, 7 de julho de 2013

As pontes, Rimbaud



Céus de cristal gris. Bizarro desenho de pontes, estas retas, aquelas em arco, outras descendo em ângulos oblíquos sobre as primeiras, e essas figuras se renovam nos outros circuitos iluminados do canal, mas todas tão longas e leves que as margens, cheias de cúpulas, afundam e encolhem. Algumas dessas pontes ainda estão cheias de barracas, outras sustentam mastros, sinais, frágeis parapeitos. Acordes menores se cruzam, e somem, as cordas escalam os barrancos. Distingue-se uma roupa vermelha, talvez outros trajes e instrumentos musicais. São árias populares, trechos de concertos senhoriais, restos de hinos públicos? A água é gris e azul, larga como um braço de mar.
- E um raio branco, desabando do alto do céu, aniquila esta comédia.
ARTHUR RIMBAUD
 

 
Post Scriptum


 
Provavelmente, Rimbaud aprendeu algo sobre ocultação do sentido e linguagem cifrada com as leituras esotéricas na biblioteca de Charleville. A bibliografia relacionando sua poesia à simbologia alquímica em especial, e esotérica em geral, talvez seja superada em volume pelos textos negando essa relação, ou alegando que em nada contribui para a sua interpretação. Mas a interpretação alquímica do soneto "Vogais" é inevitável, pela citação em "Alquimia do Verbo". Contudo, nem precisava haver lido obras tratando de alquimia, hermetismo e ocultismo, como o comprovaram biógrafos. Sua adesão ao princípio hermético das correspondências não veio apenas daquelas leituras, mas do que já conhecia de poesia romântica, incluindo o Nerval de Versos dourados e, principalmente, Baudelaire.
Cláudio Willer
Post Scriptum

 
O que se descreve, neste texto, não estabelece identificação alguma com as experiências de paisagem vividas por quem lê, no sentido de que estas imagens não nos enviam à experiência cotidiana. A paisagem não existe fora do texto. Se é assim, o texto não funciona como um duplo de suporte e sentido, já que seu próprio suporte se configura como a paisagem mesma que se vê ao ler o texto. Trata-se de uma paisagem de palavras . O sentido não está através, mas sobre o texto.
Podemos flagrar instantes de velocidade. Por exemplo, em meio a uma paisagem incessantemente visual, atravessa o espaço do poema a imagem: "Acordes menores se cruzam, e somem, as cordas escalam os barrancos". Contaminada pela visualidade de todo o poema, o espaço no qual se inserem estes complexos sonoros, que são os acordes menores, é o espaço visual recortado pelo céu e pela rede de pontes. Os acordes "se cruzam", assim como as pontes. O som, então, é a um só tempo visto e ouvido. Além de estabelecer uma relação equívoca com as próprias pontes, que, por associação, podem confundir-se aos acordes menores. E, tudo isto, escrito, no poema, em meio à visualidade afetiva que podemos imprimir ao som das letras, como nos sugere Rimbaud em "Vogais".
Na mesma frase, sem o corte de um ponto final que delimitaria o surgimento de uma outra imagem, como o ritmo do poema, ainda que irregular neste sentido, nos sugere, "as cordas escalam os barrancos". As cordas de algum instrumento musical? Logo abaixo surgem "instrumentos musicais", que nos fazem, de imediato, reler o poema de trás pra frente e associar tais cordas a eles. Mas as cordas escalam , elas que são o instrumento de uma escalada. Assim como o texto, em sua materialidade de letras e mancha tipográfica, tomado tradicionalmente como instrumento do sentido, funciona ele mesmo como sentido, e o próprio sentido como materialidade textual em movimento. As diferenças são sempre reversíveis.
O que é indeterminável , nestes textos das Iluminuras , é aquilo que se refere à própria composição, à sintaxe das imagens. Mais do que imagens desarticuladas, trata-se de imagens inarticuláveis: não há como reordená-las numa totalidade de sentido a fim de torná-las referenciáveis. Mais do que escrever sobre algo indeterminável, a própria escrita é indeterminável. Em vez de, com o leitor, olhar o desconhecido, através da representação, esta escrita cria na língua um objeto indeterminável, ativando o desconhecido , que, mais do que objeto visível, é um texto que se projeta diante do leitor, que olha o leitor.

Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa
 

Post Scriptum
O poeta, enquanto um motor de poetização , é o ladrão do fogo do pensamento, tomando para si aquilo que é alheio a si mesmo. Dando ao homem aquilo que, não humano, atravessa o homem. Por isso, "responsável pelos animais", porque toma para si a responsabilidade da vida , humana ou não. O poeta "chega ao desconhecido" e inaugura um espaço textual a um só tempo incognoscível e habitável, fazendo da escrita uma dimensão do mundo.
A poesia como arquitetura da vida, a vida como o espaço – intervalo, lugar, ar, palavra – desta arquitetura, desta invenção de novos espaços, porque a arquitetura deve ser minimamente habitável, como a poesia, minimamente habitável, legível, como a vida, minimamente suportável, minimamente vivível, como a música, minimamente audível, como a poesia, minimamente audível, como a pintura minimamente habitável, como a filosofia, minimamente legível, habitável, audível, visível, pensável. O poeta "deverá fazer sentir, apalpar, escutar suas invenções": as fronteiras vão se desfazendo, vão se refazendo, e a poesia dá a ver ao homem a estranha imagem da vida que, sem origem, existe.

Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa


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