terça-feira, 2 de julho de 2013

Jim Morrinson, o xamã dos anos 1960


Rosangela Patriota**


Universidade Federal de Uberlândia – UFU

rpatriota@triang.com.br

http://www.revistafenix.pro.br/PDF4/Artigo%2001%20-%20Rosangela%20Patriota.pdf




 
 
 
1960: Projetos e Perspectivas Multiformes


Esse período da história do século XX, sem dúvida, mudou o rosto da


sociedade ocidental. Produziu movimentos que redimensionaram valores, idéias,
objetivos e, ao mesmo tempo, alavancou reações conservadoras. Em verdade, sob a

égide da expressão anos 60, estão agrupadas experiências díspares e, muitas vezes,


contraditórias, que impedem a uniformização deste universo.

Nesse caleidoscópio, o enfoque sobre países europeus revela o
redimensionamento de temas, considerados políticos, e traz à baila um novo olhar para


assuntos como sexualidade, repressão, instituições, poder, etc., posteriormente
identificados com o movimento de Maio de 1968, tornaram-se símbolos de novas


perspectivas para o mundo contemporâneo. Porém, tal percepção é válida quando se

considera países europeus – como França, Alemanha, Itália, entre outros –, organizados
sob a égide da social-democracia, nos quais o advento do welfare state, aliado à


inserção dos Partidos Comunistas no jogo parlamentar, contribuiu, de maneira

significativa, para o abandono de propostas revolucionárias. Estas, concretamente,

traduziram-se em aumento do padrão de vida e adaptação às exigências da sociedade de

consumo.

Por outro lado, se as referências forem os países que estiveram vinculados ao
socialismo soviético, a exemplo da Thecoslováquia e da Polônia, emergem claramente


as insatisfações com a burocracia, com o autoritarismo de suas organizações políticosociais

e os anseios de experiências socialistas pautadas em propostas democráticas e

pluralistas.
Já no Brasil, existe uma série de implicações relativas ao termo anos 1960. De

imediato, sob o enfoque do campo, outrora denominado esquerda, enfrenta-se uma

grande discussão em torno da idéia de revolução, tendo o golpe de 1964 como marco


divisor das mais diferenciadas orientações, tanto no âmbito estritamente político,

envolvendo opções como "resistência democrática" ou "luta armada", quanto em

relação às manifestações estéticas e culturais, que organizaram suas discussões em torno
do realismo crítico, e as inquietações provenientes do que se denominou tropicalismo.


Nesse contexto, estiveram presentes, como elementos inspiradores, idéias e
comportamentos identificados com a contracultura norte-americana.


Essas preocupações, muitas vezes, não foram devidamente aprofundadas,

porque o combate ao Estado Autoritário tornou-se a principal bandeira de luta e, ao
mesmo tempo, possibilitou que manifestações afinadas com a contracultura ou críticas

à ortodoxia da esquerda fossem compreendidas como despolitizadas. Assim, no

universo político-cultural brasileiro, a expressão anos 1960 possui significados


particulares, em sintonia com a conjuntura daquele momento histórico.

Essa abrangência de propostas tornou as experiências muito fluidas e

evidentemente impossíveis de serem alocadas em um único conceito e/ou proposição.
Apesar dessa ressalva, geralmente quando se remete à idéia de anos 1960, os


acontecimentos que tiveram lugar nos Estados Unidos da América podem ser

considerados lapidares, pois foram provenientes das reivindicações e críticas da Nova

Esquerda, do movimento dos Direitos Civis, da luta contra a Guerra do Vietnã, da

descoberta da Cultura Oriental, das reflexões intelectuais como Herbert Marcuse,

Hannah Arendt, Jürgen Habermas, das propostas embrionárias das universidades livres,

além da politização do rock.


Estados Unidos da América: um exemplo paradigmático



Os Estados Unidos da América possuem em sua história contemporânea

momentos significativos para compreensão de aspectos constitutivos da atual política

internacional, principalmente se se levar em consideração que os seus últimos cinqüenta

anos foram repletos de conflitos e de contradições. De acordo com o sociólogo norteamericano
Jack Newfiel, a década de 1950 foi entre outras coisas uma folha em branco.


Nesse período, o Macartismo foi o movimento político mais importante do país, na

medida em que colocou os liberais na defensiva, pois seus bancos de idéias estavam
vazios devido ao New Deal. Dessa feita, eles não tinham como discutir ou questionar os


novos problemas do pós-guerra como revolução anticolonial, guerra fria, proliferação

nuclear, tecnologia e automatização.

Concomitante a esses acontecimentos, viveu-se a desestruturação do Partido

Socialista e do Partido Comunista. Estes naufragaram diante da Guerra da Coréia, da

condenação dos Rosenberg, da aplicação da lei Smith (aprovada em 1940, que proibia a

propaganda subversiva e as atividades conspiratórias), da revolta húngara e das

revelações dos crimes de Stálin. Em 1957, a seção juvenil do Partido Comunista

Americano decidiu se dissolver.

Em tais circunstâncias, os radicais foram expulsos da vida pública e os liberais

fadados ao silêncio, rompido com a vitória nas eleições para o Congresso em 1958.

Nesse processo, a década de 1960 foi momento propício para a retomada de uma série

de questões, iniciadas com a eleição de Kennedy, vitória esta que no imaginário norteamericano,

segundo Newfield:



 
 
[...] acelerou provavelmente o florescimento do novo radicalismo.

Naquelas eleições a nação preferiu a vitalidade à apatia, a aventura

à precaução, a esperança à passividade. E esta decisão liberou as

energias comprimidas durante uma década. [...] Kennedy

proporcionou um refúgio amistoso à nova esquerda para que ela

fosse se desenvolvendo, e foi partidário de um certo idealismo

social, representado pelos Corpos da Paz, que levou os estudantes

a empreenderem a fundação do SNCC (Comitê Coordenador de

Estudantes Não-Violentos) e do SDS (Estudantes em prol de uma
 
Sociedade Democrática).1

Pé na Estrada: A Geração Beat

Sob essas premissas, se do ponto-de-vista político-partidário havia apatia e

desinteresse, essa situação não pode ser generalizada para o conjunto da sociedade. Em

verdade, essa constatação só se legitima na medida em que o universo políticopartidário

seja eleito como o único e legítimo espaço de atuação e, caso isso ocorra,

perde-se uma dimensão significativa do debate social, pois, no âmbito da história norteamericana,

se a década de 1950 revelava uma inoperância política dos setores

progressistas, sob a ótica do espaço boêmio, da literatura, da poesia, das rodovias e dos
beats, ela apresentou significados singulares.

À luz dessa singularidade, muito se falou sobre os beats, mas o que era ser

beat? Para Jack Kerouac: [...] voltar aos antepassados, aos rebeldes, às bruxas, aos



loucos.
 
2 Evidentemente, essa proposição redimensionava a compreensão do universo


social no qual estava inserido, ao reconhecer a existência de outros agentes e de
maneiras diferentes de perceber o próprio estar no mundo. Para Jack Newfiel, a


ausência de uma intervenção programática contribuiu significativamente para que os
beats se tornassem rebeldes sem causa, que reduziram a sua existência social à apatia3.


No entanto, na avaliação de Russell Jacoby, para além de um movimento e do exercício
de um fascínio público, os beats, principalmente com a publicação de Uivo de Allen

Ginsberg (1956) e de Pé na Estrada de Jack Kerouac (1957), capturaram o espírito de

uma época, anunciaram a insatisfação e a revolta latente. Em suma:



 
 
Os beats, no entanto, são mais que uma lição sobre os riscos de



prognósticos culturais. Eles são os últimos boêmios e os primeiros

membros da contracultura dos anos 60. No relato sobre
 
desaparecimento da boemia, os beats são os personagens



desaparecidos. [...]. Os estudos sobre os anos 60 mencionam de
 
passagem os beats, mas é necessário mais que uma menção



passageira. Não o marxismo e o maoismo revividos, mas a

sexualidade, as drogas, o misticismo e a loucura dos anos 60 devem
 
muito aos beats.4


 

Nesse sentido, sob a égide da hipótese de Russell Jacoby, pode-se afirmar que

os acontecimentos da década de 1960 nos Estados Unidos da América resultaram da

confluência desse conjunto de insatisfações (Guerra do Vietnã, orientalismo, Direitos

Civis, etc.) e das várias perspectivas de redimensionamentos históricos, no âmbito da

própria idéia de civilização. E, nesse universo polifônico, se houve alguém que

simbolizou as tensões, a radicalidade e a impotência deste período, esse alguém foi
James Douglas Morrison, ou melhor, Jim Morrison, O Rei Lagarto, poeta e vocalista do

The Doors.


Jim Morrison: Poeta e Xamã da Contracultura


Jim Morrison nasceu em 08 de dezembro de 1943, em Melbourne, Flórida.

Filho de um oficial de alta patente na marinha americana, foi, na opinião do produtor
musical Paul Rothchild, um intelectual renascentista à sua maneira: Eu sou um homemde palavras. Como vocalista do conjunto musical The Doors, construiu uma trajetória

singular e, fundamentalmente, deu ao cenário do rock uma qualidade teatral. As

apresentações do The Doors transcendiam a expectativa de um mero entretenimento


musical. Por seu comportamento, opiniões e idéias, aliados a uma voz personalíssima e

uma estrela incontestes, Morrison tornou-se figura emblemática de um tempo em que se
acreditou nas infinitas possibilidades de viver: não fazemos a própria vida, ela mesma

se faz.


Difícil encontrar respostas que dêem conta da complexidade que envolve o

homem, o cantor e poeta Jim Morrison. Fruto de sua época e de suas angústias, ele se
envolveu profundamente com as questões de seu tempo: vivemos em uma época em que

para ser superstar é preciso ser político ou assassino. Leitor ávido, devorou a produção

dos poetas beats e ficou fascinado por Dean, o herói sem destino de On the road de Jack


Kerouac.

De acordo com seus biógrafos (Jerry Hopkins e Daniel Sugerman) os livros

lidos por Jim revelam muito de seu universo cultural e de suas expectativas para com o
mundo. Além dos poetas beats, Morrison sorveu a poesia de Rimbaud, os escritos de


Norman O. Brown, Honoré de Balzac, Jean Cocteau e Molière, juntamente com a

produção dos filósofos existencialistas franceses. Entretanto, foi a obra do poetafilósofo

Friedrich Nietzsche, em particular, as teorias sobre estética, moralidade e

dualidade apolínea-dionisíaca que o marcaram definitivamente.

Em seu último ano de colégio, Jim começou a guardar os seus apontamentos, e

a noção romântica de poesia tornou-se mais presente em sua maneira de compreender o
mundo. Talvez seja correto dizer que para Morrison o ser poeta se assemelhe à


compreensão de Rimbaud, exposta pelo poeta em uma carta a Paul Demeny:



um poeta torna-se um sonhador através de um longo, ilimitado e
 
sistemático desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de


sofrimento, de loucura; investiga-se a si próprio, consome

dentro de si todos os venenos e preserva as suas quintessências. Um

tormento indescritível, onde irá encontrar a maior fé, uma força sobrehumana,

com que se torna, de entre todos os homens, o grande
mártir, o grande maldito – e o Supremo Cientista! Pois alcança o
 
desconhecido! E que interessa se for destruído no seu vôo extático por

coisas inauditas e inomináveis...5



5
 
A presença de Rimbaud no repertório intelectual e poético de Jim Morrison foi
assim revelado por Wallace Fowlie, em seu livro Rimbaud e Jim Morrison:



Essa história é importante para a narrativa que estou fazendo. O livro

foi publicado em 1966. A capa trazia Rimbaud de Picasso e me

lembrava da minha atividade em Nice e da generosidade de Henri

Matarasso. No decorrer dos três anos seguintes, de 1967 a 1969,

recebi algumas cartas – não mais do que cinco ou seis – de pessoas

que eu não conhecia. Uma dessas cartas, bastante curta, trazia a

assinatura "Jim Morrison". Sinto-me envergonhado em dizer que, em

1968, quando recebi aquele bilhete, não reconheci o nome.

Na sala de aula, no dia seguinte, enquanto aguardava que os últimos

alunos tomassem seus lugares, perguntei casualmente: "Vocês

reconhecem o nome Jim Morrison?" Meus alunos ficaram chocados

com tamanha ignorância. "Você não conhece o The Doors? Ele é o

vocalista". Caí fragorosamente no conceito de meus alunos naquele

dia. Perdera prestígio. Para recuperá-lo e me recompor, tomei da carta

e disse: "Me dêem uma chance! Deixem que eu leia esta carta para

vocês".

 

Caro Wallace Fowlie,

Só queria agradecer por você ter feito a tradução de

Rimbaud. Eu precisava dela porque não leio tão bem o francês... Sou

cantor de rock e seu livro me acompanha nas turnês.

A classe estava muda e atenta a essa altura, e eu falei: "Tem mais uma

frase, um P.S. no final da página":
 
Aquele desenho de Rimbaud na capa feito por Picasso é fantástico.6


 

Esse relato bem-humorado revela uma fruição estética cultivada desde a

adolescência. Após a conclusão do colégio, seus pais o inscreveram na Universidade de

St. Petersburg, na Flórida. Nesta cidade, o seu refúgio foi a galeria Renaissance, local
que o atraiu pelas leituras de poesia, pelos concursos de música folk e pela vida boêmia.


Fez cursos de filosofia, literatura, psicologia de massas. Através de "caronas", chegou a

Coronado para visitar os pais e, pela atitude, recebeu repreensões. Manifestou seu

desejo de ficar em Los Angeles e estudar cinema na UCLA. Não foi atendido. Voltou

para a Flórida e concluiu as atividades escolares. Neste período, estudou história da arte,

do teatro e introdução ao teatro. Escreveu um ensaio sobre a peça de Samuel Beckett,
Esperando Godot, construiu propostas cênicas para a montagem de Gata em Teto de

Zinco Quente, de Tennessee Williams. Trabalhou como ator, em uma produção da

universidade, na peça O Criado de Harold Pinter. Nessa trajetória, evidentemente,


encontrou-se com os escritos de Antonin Artaud, que se tornaram fundamentais para

ele.

Findo o curso, Jim participou com seu pai de manobras da marinha no Oceano

Pacífico. Pouco depois, no início de 1964, tratou da documentação para a inscrição no

meio do ano, no curso de cinema da UCLA, que, ao contrário de Berkeley, não possuía

um alto índice de politização. Iniciou as atividades discentes no mesmo ano e foi

contemporâneo de Francis Ford Coppola, que significativamente realizou uma das mais
belas homenagens a Morrison e ao The Doors, ao iniciar o seu notável Apocalypse Now

com imagens de uma floresta incendiada ao som de The End.



 



Jim não fora um aluno de destaque em seu tão sonhado curso de cinema, mas
freqüentava a praia de Venice, a meca da geração beat e da boêmia dos anos 1950, local


em que viviam pintores e estudantes, a baixo custo, em grandes quartos de casas outrora luxuosas. Nesse meio tempo, começou a reunir um grupo de amigos, entre eles Dennis
Jakob, que foi assistente de direção de Coppola em Apocalypse Now, e John DeBella,

amigo de Ray Manzarek, estudante de cinema e músico da banda Nick and the Ravens.


Passado algum tempo, Jim encontrou Manzarek em Venice Beach e o informou

de que estava morando e escrevendo no terraço de Dennis Jakob. Ray interessou-se por
seus poemas. Jim declamou os primeiros versos de Moonligth Drive, e obteve de

Manzarek o seguinte comentário: são as melhores letras que jamais ouvi. Vamos formar



uma banda de rock and roll e fazer milhões de dólares.
 
8 O poema que tanto

entusiasmou Ray Manzarek, o tecladista do The Doors, dizia:



 

Vamos nadar até à lua,

vamos içados na maré,

penetremos na noite em que a cidade para ocultar-se dorme.

Esta noite vamos nadar, meu amor, é o momento de chorarmos,

estacionados junto ao mar, após a viagem à luz do luar.

Vamos nadar até à lua,

vamos içados na maré,

entreguemo-nos aos mundos que, enquanto esperam, nos lambem os corpos.

Não temos saída nem tempo de optar,

caminhamos rio adentro na nossa viagem à luz do luar.

Vamos nadar até à lua,

vamos içados na maré,

a tua mão agarra-me, mas eu não posso ser teu guia,

fácil é amar-te ao ver-te deslizar,

escorregar por entre húmidas florestas
 
durante a nossa viagem à luz do luar.9

The Doors – um emblema da contracultura

Jim Morrison entusiasmou-se com a proposta, mudou-se para a casa de

Manzarek e começaram a trabalhar. Mais à frente, conheceram John Densmore e Robby
Krieger. Surgiu, assim, The Doors. O nome escolhido para o grupo revelava outra


grande influência de Morrison, os românticos ingleses, em especial Willian Blake, que
por meio de um livro de Aldous Huxley (As Portas da Percepção), inspirou o nome do


conjunto.
8
 
Após uma série de apresentações, principalmente no Whiskey, os rapazes foram


ouvidos Paul Rothchild, futuro produtor da maioria dos trabalhos da banda, que teve no
disco de 1967 (LP, janeiro) a inclusão de uma de suas mais importantes músicas: Light

My Fire, de Robby Krieger. Iniciou-se, assim, uma trajetória de sucesso. Ganharam


muito dinheiro, como havia previsto Manzarek. Porém, nesse percurso, havia um
problema: Jim Morrison era uma alma beat que, ao mesmo tempo em que dava

originalidade às apresentações do grupo, no efervescente mundo do rock and roll,


dionisicamente trabalhava as suas máscaras no palco:



 
 
nós respondemos à mesma necessidade humana que a

tragédia clássica [...] Por vezes deleito-me ao considerar a
 
história do rock’n roll do mesmo modo que a origem do



drama grego, [...] que originariamente era apenas um grupo

de adoradores que dançavam e cantavam. E depois, um dia,

alguém possesso saltou afastado da multidão e pôs-se a imitar

um deus. A princípio eram apenas canto e movimento. Com o

desenvolvimento das cidades, um número crescente de

pessoas já não se dedicava senão a uma única coisa, ganhar

dinheiro, mas era necessário continuar em contato com a

natureza, de uma maneira ou de outra e então começaram a
 
ter atores que o ganhavam para elas. Penso que o rock



preenche a mesma função e poderia tornar-se uma espécie de
 
teatro.10

Assim, na busca de um papel social para o rock, ele se atribuiu uma função de


suma importância, a do xamã, aquele que em estado de possessão conduz o ritual, na
busca de recuperar a fonte da vida.11

A trajetória do The Doors estava se constituindo em um sucesso exemplar.

Contudo, ao assistir ao espetáculo do Living Theatre, Paradise Now, Morrison foi


tomado por novas perspectivas. Como conseguir, em seus espetáculos, a integração
palco e platéia obtida pelo Living? Na seqüência dos acontecimentos transcorreu o show


de Miami, no qual a performance de Morrison foi qualificada como atentado violento ao

pudor. Em decorrência disso, o vocalista foi preso, julgado e condenado.
O ocorrido, por um lado, para The Doors, profissionalmente, foi uma lástima,


pois a banda estava prestes a iniciar uma temporada que abarcaria o país todo, que teve

a maioria das apresentações cancelada. De outro lado, em meio a esse turbilhão de

acontecimentos, começou a emergir, explicitamente, o poeta Jim Morrison.


A Poesia de Jim Morrison



Grande parte dos biógrafos faz questão de revelar: a poesia sempre foi a grande

obsessão de Jim:



Ouçam, a verdadeira poesia não diz nada, apenas destaca as

possibilidades. Abre todas as portas. As pessoas podem atravessar

aquela que se lhes ajusta. ... e é por isso que sinto pela poesia este

apelo tão forte – porque é eterna. Enquanto houver pessoas, elas

podem lembrar-se de palavras ou combinações de palavras. Mas nada

pode sobreviver ao holocausto a não ser a poesia e as canções. [...]. Se

a minha poesia pretende atingir alguma coisa, é libertar as pessoas dos
 
limites em que se encontram e que sentem.12


O início da década de 1970 marcou a presença do poeta Jim Morrison no

cenário cultural norte-americano. Ele fez de seu tempo e da história a matéria-prima de

sua poesia.
Sabem do febril progresso

sob as estrelas?

Sabem que nós existimos?

Esqueceram porventura as

chaves do Reino?

Já foram dados à luz

& estão vivos?

Vamos reinventar os deuses & os mitos

das idades

Celebrar símbolos do mais fundo das antigas florestas

(Esqueceram as lições

da guerra pretérita)

[...]

Sabem que temos sido levados à

matança por almirantes plácidos

& que gordos & calmos generais se tornam

lascivos perante o sangue jovem

[...]

O grão criador dos seres

concede-nos uma hora mais

pra mostrarmos nossas artes
 
& completarmos as vidas.13


 

Nessa metamorfose pública, Morrison cruzou o Atlântico e fez de Paris o seu

último endereço. Nessa cidade, em 03 de junho de 1971, veio a falecer. A sua morte

ficou envolta em mistério. O atestado de óbito revelou problemas cardíacos. No entanto,

outras versões falam de uma overdose, em um bar da cidade, que o deixou em coma e,

nesse estado, fora levado para casa. Essa morte mal explicada deu origem a lendas

acerca do xamã dos anos 1960. Entre elas, encontra-se a seguinte:



 

[...] Jim teria sido visto, bem vivo, em qualquer parte do mundo. Este
 
rumor fez-se sentir vivamente em New Orleans onde um romance



bizarro foi mesmo (mal) escrito sob o seu nome. Reaparece sob a
 
forma de uma espécie de banqueiro-hippy e o seu livro foi publicado

por uma filial do Bank of America... Certamente que ele teria

apreciado esta última homenagem do absurdo americano.14


 

Os Anos 1960: O que restou do sonho?


Com o recrudescimento da reação conservadora às perspectivas do paz e amor

e da contracultura, essas manifestações foram sendo paulatinamente derrotadas. Como


símbolo dessa derrota estão as seguintes palavras de John Lennon, publicadas no jornal
Rolling Stone, em dezembro de 1970:



Eu acordei para isso também. O sonho acabou.

As coisas continuam como eram, com a diferença que eu estou com trinta anos e uma

porção de gente usa cabelos compridos.
 
15
 


 

Ao lado da declaração de Lennon, os jovens, de então, assistiam perplexos à
violência nos episódios de Altamont, com ativa participação do grupo Hell’s Angels

16, e


a morte de ídolos como Brian Jones (1969), Jimi Hendrix (1970), Janis Joplin (1970) e

Jim Morrison (1971). O cenário político e cultural anunciava, com nítida clareza, que o

início da década de 1970 estaria sendo marcado por aquilo que Herbert Marcuse
denominou de contra-revolução. Para ele:



O Governo Nixon fortaleceu a organização contra-revolucionária da

sociedade em todas as direções. As forças da lei e da ordem foram

transformadas em uma força acima da lei. [...] Todo o peso da

repressão cai sobre os dois centros da oposição radical: as
 
universidades e os militantes negros e pardos; a atividade no campus



está sufocada; o Partido da Pantera Negra foi sistematicamente
 
perseguido e caçado, antes de se desintegrar em conflitos internos.17


Nas últimas décadas são visíveis as várias tentativas de desqualificar ou
simplesmente sepultar essa riqueza de pensamentos e ações que compõem os anos

1960. Porém, a despeito dessas iniciativas, que visam reafirmar que o sonho acabou, o


rememorar de temas, propostas, agentes e lutas desse período é constante. Nesse

processo, Morrison é sempre uma das lembranças recorrentes, seja por suas canções e

poesias, seja por sua postura inconformista diante da realidade. Um exemplo disso é:



[...] aquela horda de jovens, a maioria sequer nascida quando

Morrison morreu, [...] que costuma pular os muros e invadir o

cemitério nas madrugadas, sempre munidos de potentes gravadores

com as músicas de Morrison, garrafas de vinho barato e baseados de

haxixe [...] especialmente nas belas noites de junho, aniversário da
 
morte de Morrison.18


Jim Morrison é sempre um desafio, principalmente se levarmos em conta a sua
concepção de que [...] a verdadeira poesia não diz nada, apenas destaca as

possibilidades. Abre todas as portas.



medo da morte no Avião

E a noite era aquilo que a Noite

deveria ser

Uma garota, uma garrafa, & um abençoado sonho

Espalhei

a minha semente pelo coração

da nação.

Injetei um gérmen no sangue da veia psíquica.

Abraço agora a poesia

do negócio & torno-me – por

um tempo – um "Príncipe da Indústria"
 
17
 



Um líder natural, um poeta

um Xamã, c/

alma de palhaço.

O que faço

no meio da arena

na Praça de Touros

Todas as figuras públicas

lutando pela liderança

[...]

Estar bêbado é um bom disfarce.

Bebo para

poder falar aos idiotas.

O que me inclui.

[...]

Adeus América
 
eu amei-te19


 

Morrison tornou-se um ícone, mas os decênios posteriores reafirmaram valores

e práticas que, nos idos dos anos 1960, pareciam definitivamente abolidas. Dessa

maneira, atualmente, haveria lugar para Jim e seu xamanismo radical? Essa questão é

tanto mais candente em um tempo no qual



 

o que está em questão é o declínio de uma visão utópica que um dia

inspirou esquerdistas e liberais. O que se discute não é

propriamente que o ar mais puro, uma previdência social ampliada

ou uma democracia mais vigorosa sejam coisas ruins. O problema é

saber até que ponto um empenho por medidas nem tão sensatas – as

mais subversivas e visionárias. O liberalismo pode preservar sua

espinha dorsal com uma esquerda desenxabida? O radicalismo
 
pode sobreviver depois de reduzido a um modus operandi? Uma



esquerda que renuncia a qualquer plano ou esperança utópica pode

resistir? "A noção de utopia", comentava T.W. Adorno há alguns

anos, "desapareceu completamente da concepção do socialismo.

Desta forma, o aparato, o modo, os meios da sociedade socialista
 
assumiram todo o conteúdo possível".20



19
 
Tempos difíceis, com certeza! Situações em que os acontecimentos passados

soam tão distantes em contraponto a um presente que teórica e politicamente escapa a


seus contemporâneos. Diante do tempo, colocado em suspensão, experiências

anteriores, muitas vezes, são retomadas e, com elas, as possibilidades históricas podem

retornar. Nesse processo, revisitar os limites e as proposições de Jim Morrison é sempre

um convite ao inconformismo, ao exercício da crítica, à capacidade de indignação,

imersos no sensível universo de uma arte que buscou retirar da letargia os seus

fruidores.
20

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