sexta-feira, 12 de julho de 2013

LIVRO POR VIR

 
 

... aqui e agora, um modo outro, uma fala tagarela e esquecedora de si, qual apenas uma máquina de enunciação[5], que na direção em que fossem as palavras num sem fundo destas sugerisse que junto se ia aquele que as fazia surgir aos borbotões as palavras, este tipo, um qualquer a que se pudesse dizer ser, por ora, um homem de palavras, outrora, um escritor, e vez por outra, um escrivão - na insensata da tarefa de a tudo pontuar, de numerar e fixar o que for de ser regulado, e quem sabe se lhe apareça à frente, no acaso de um dia, em que dele, nele se fez este escrivão paroxista, quem sabe apareça um Josef K. atônito e impreciso também ele, este, a querer saber de si o que se lhe escapa o que fiz? Pelo que me acusam? O que fiz? Do que estou sendo condenado? E o homem de palavras, acionado desde o subterrâneo do que se havia mascarado, um outro do real também este um outro real, por sob a pele do escrivão, tornasse o aguilhão a se romper num afluxo de torrente verbal, ele, o homem de palavras, no estado intensivo do que se lhe dá à hora, fosse já e vez outra, redivivo e contumaz o seu dizer, escritor outra vez, escrivão deixado de lado, e ao seu dizer inumerado, palavras em cascatas, torrentes de imagens num seu afluxo de ir e ver e ricochetear e tornar a ir e a voltar, o que é que poderia de escuta a ele um Josef K. em agonia e desassossego, senão que também o que deste fosse, agora, era um grito, um enorme grito, de ensurdecer, o grito, e na tentativa, este, de recolocar, aquele, ao seu lugar, qual e qual, o lugar emoldurado na & pela parede sonora que é o grito, o que ouvimos e ainda ouve este que escreve e lê, este o grito: resigne-se a fazer notações, escrivão! – é Josef K. a dizer enquanto esmurra a mesa, resigne-se a responder o que te pergunto! – outra vez é de Josef K. a voz a lançar a insígnia na tentativa desmesurada de contê-lo, e o outro, nada que pode, apenas a sua fala uma após a outra em atropelo, verdadeira orgia na que os verbos se sobrepõem, em que o sujeito preposto que parecia conduzir sobriamente a narrativa se faz evadido, ou simplesmente se esquece de si sem se fazer qualquer coisa, e escrivão e escritor vão se tornando aquilo que sempre foram, qual seja, um homem de palavras, um qualquer este aqui, I would prefer not to, eu preferiria não, I would prefer not to, eu preferiria não, e é Josef K. quem olha para os cantos a ver se há uma saída possível para tudo aquilo, e é Bartleby quem corre de lado a outro a ver se se recompõe o arranjo [7], e são multidões o que vão se compondo no desmesurado desta comunidade, como bandos em sublevação a perceber que o que havia era não mais do que as pululações da carne sob a exatidão do corpo ‘organizado’, e a imolação da besta pelo teatro de uma crueldade que não se quer outra, uma vez que sequer que se percebe desordenada, ou desorganizada, no seu rigor de incisão, a práxis cruel deste teatro a agir sobre aquela besta travestida em dramalhão identitário burguês, este também a agir, os seus dispositivos institucionais a postos e a valer no constrangimento de jogar na cara dos passantes o seu conhece-te a ti mesmo, vem daí as vozes a seguir, compelle intrare[8], são os teus fantasmas a emergir em teu proveito e provação, narra-os, mira-os, atenta a eles, conserta-te, são eles que te dizem o que tu és na forma do que recusas, I would prefer forget , eu preferiria esquecer, I would prefer not to, eu preferiria não, resigne-se a fazer notações! ‘Quer me dizer onde nasceu? Quer me contar qualquer coisa a seu respeito? Eu sou seu amigo, Bartleby, qual é a sua resposta?’[9] Este o cenário de uma luta, a descrição de um combate, aqui é Deleuze a dizer, o combate contra o Juízo, suas instâncias e personagens para acabar de vez com o julgamento de Deus. O outro aqui é o combate operado pela doutrina do juízo a derrubar e substituir o sistema dos afetos[10]. E sequer que se trata de um combate entre opostos se for do corpo o de que falamos ao falarmos do combate ao juízo ou da doutrina teológica, se é do corpo que falamos o fazemos ao nível mesmo do que ele ou já não é (a sua recusa: Deus/estado/Capital, seu cansaço: de Artaud, de Bartleby, de Josef K, na competência do julgar a destituí-los, a humilhá-los na absolvição aparente: o doutor Ferdière a tomar nos braços a Artaud), ou do que está por se tornar (o seu destino: os nomes a despencar, as cartas desde Rodez, Antonin Nalpas, Nanaqui, o colapso de Turin, Nietzsche, o crucificado, a espera: o furtar-se ao presente, a dilação indefinida, no mergulho ao impensado, que é a vida[11]), entre um e outro, a diferença abismada, e é uma vez mais o trabalho do pensar do pensamento que é corpo na medida que a ele tende o que rebate nesta largura revirada, no jogo de superfície em que "acontecimentos são como os cristais, não se transformam e não crescem a não ser pelas bordas, nas bordas"[12]. Um constante combate. E sequer que são opostos, aquilo que faz colar em pregas, ou o que se lança em jorro, são modulagens, estados intensos, uns que convém, outros que é bom que se deixe, mas sequer que são opostos, não se superam um ao outro como que por saturação, recusam-se, passam ao largo, não se dialetizam sob o primado da negação, combatem-se, aniquilam-se, dobram um ao outro, eis que são dois modos de situar-se no tabuleiro o dispor das peças, pode ser que se faça a guerra, e se lute contra[13], e que se invente este inimigo a que se odeia desde sempre e o sempre, aqui, é o silenciar quanto a uma data que não se revela, mas que está ali inscrita, no diagrama do jogo, basta ver com acuidade, é a mobilidade do Capital a fazer os seus arranjos e giros, variados diagramas e funcionalidades, a guerra na fronteira da cidade-muralha, a guerra de guerrilha no intramuros da cidade-estado de exceção, o estado de guerra permanente das práticas imperiais, assim também os seus jogos de arrumação do fazer funcionar a cidade que se é, o seu fazer organizar, começa-se pelo corpo, construir um corpo com órgãos, fazer do que for um coletivo, o povo, a sociedade civil, a população, traçar a economia dos fluxos & das intensidades & das multiplicidades na notação orgíaca da mais-valia, mapear a extensão do domínio da luta, pôr tudo a funcionar sob a premissa da utilidade, o que serve, o que não serve, isto presta, aquilo não presta, até aí tudo bem!, se trata de um jogo e as escolhas estão a ser feitas, e aqui e agora, a questão ressurgida das cinzas é aquela que interpela pelo valor que avalia, qual o valor do valor, e já ao seu encontro, retorna o eco fétido que há muito parece ter abandonado o que era corpo, o eco em formol que não supõe qualquer empiria, o eco sem terra, abstrato, universal que traz a voz de Um intérprete sem rosto, e sem corpo, um qualquer este no que tiver de pior, eis a digital suja por trás do valor e ele todo a digital suja, um qualquer este tipo a impor o seu Juízo, a querer que se suspenda o combate sob à tutela de um Contrato, são os contratualistas, estão a forjar que não é à luta que eles se referem & que não é pela guerra que eles se impõem, estão a fabular que há uma vontade primeira de harmonia e que eles estão a fazer a cerzidura do que era contenda, estão a fazer a diagnose dos riscos, a gestão das intempéries, o monopólio da violência, o controle das armas, e todo outro singular, e toda alteridade uma qualquer que o seja torna-se aqui o que se lhe opõe, uma multidão, aqui, a massa dos periculosos - o que se dispõe à espreita policial, estão a dizer isto presta, aquilo não serve, compelle intrare, por favor porte-se em fila, a fila em que deve caber um corpo, o corpo da massa, segue um atrás do outro, como se fosse um homem e só um homem para a isto se dar[14], é dele que se trata, aqui é dele, o homem como doutrina - não como natureza, e segue a fila, se há alguma fala a mais, vem alguém a dizer que não pode, se houver quem desmaie porque não agüenta o corpo exaurido pelo trabalho que não salva, vem alguém a dizer que não pode, se houver quem esqueça o texto prévio que diga da cena a narrativa exata e pontual, que dela detenha, desde o seu principiar de cena, a onisciência – os seus comos, os seus por quês, os seus para quês, se houver este narrador esquecido de si mesmo a caminhar, impreciso, entre dois estados de ser nos quais se oscila, vez ou outra, entre um estar escritor de pelejas, e um estar escrivão de escrutínios, vem alguém a dizer que não pode, e se ainda além disto, no horror que já é o desta hora e cena, qual seja, o desta injunção repetida no seu dizer que não a cada instante em que a vida mutilada faz que se move, faz que resiste, faz que contorna, pé ante pé, em amarelinha, se houver quem se prestasse no desarrumar da cena desaprumada, se houver quem pudesse restabelecer o desequilíbrio entre as partes, desmontar as alíneas do Contrato, virá alguém a falar subversivo, o que é dizer daquele que é contrário à ordem, o que tem a ordem como primado e não agüenta, mas sequer que se trata de ser contrário, já dissemos isto, ouçamos com atenção, sequer que se quer para si a subtração, o estar a menos que, o não-ser que ao Ser remete, os aspirantes a noivos da Verdade, os embriagados do amor ao Supremo, os contraídos ao interior de uma dívida eterna, aqueles a quem, nas palavras de Artaud, deus roubou para fazer um corpo ordenado e lhes inserir um juízo sem o qual nada que seria e então a dívida, estranho paradoxo, o estar em dívida com aquele que nos roubou, e aí ficar como que parado em depósito, pois o próprio deus espremeu o movimento[15], o combater contra sequer que era isto o que se queria, apenas que se ele o houver, o lugar do oposto, o outro repetido, numa sua condição de alteridade sitiada, instada a permanecer no lugar de um outro que é já ele um cárcere será o resultado de um processo fundado no Juízo, no transcendental abstrato que é Deus, ou que é o Estado, ou que é Édipo, ou que é tudo o que se colocar na condição de Juiz a dizer ei-lo lá! Ei-lo! Quem sabe o que quer a besta, é Antonin Artaud, é Antonin Nalpas, Nanaqui, o monstro de Rodez no balbucio de suas glossolalias Taentur Anta Kamarida Amarida Anta Kamentür[16]- o reche modo to edire de za tau dari do padera coco[17]. Olhemos bem o quadro, atentemos para as suas partes, os seus desvãos, os seus vacúolos pelos quais ele como que vacila de si, e cai em errância, vejamos com olhos inquiridores e aqui são os olhos a se tomarem da função problematizar, são olhos cuidadosos na tentativa de se esgueirar o suficiente a ponto de sequer deixar as suas digitais no corpo do que se lhe dá à escuta, e então, eis os olhos a fazer ver se aquilo que se está a ver não seria a resultante de olhares ímpios que pensam localizar no mundo a confirmação do que havia desde sempre em sua retina, ou será que seriam os olhos câmaras claras em que as imagens não são refratadas, mas inteiramente sorvidas tais fossem injunções, os olhos de Kaspar Hauser, e ainda que se inventem a estes olhos a fim de que se possa dizer o que não há, o intérprete aqui o finado pois que o mundo é o que lhes escapa ao pincelado das mãos uma vez que o mundo lhes seria em transparência , uma vez mais e ainda assim, seria difícil dizer eis os opostos! – aqui o homem, ali o mundo, incontornáveis nesta irredutibilidade. Embora isto, eis que aquela voz supressiva continuasse a proferir a sentença separa-os, organiza-os. É do corpo - o de que falamos. Necessário que não se esqueça. E também é do pensar, o que seria o mesmo, um pensar que pensa desde o corpo que é pensamento. Maurice Blanchot a falar de Artaud e de seu pensar: a impossibilidade de. Aqui não há.

Caro Senhor, sinto não poder publicar seus poemas na Nouvelle Revue Française. Porém eles me têm interessado o suficiente a ponto de querer conhecer ao seu autor. Se lhe for possível passar pela revista uma sexta-feira, entre 4 e 6 horas, será um prazer vê-lo. Rogo-lhe que aceite com segurança minha simpatia. Jacques Rivière, 1º de maio de 1923[18]. São as palavras de um sincero editor. Exerce com presteza a sua função: a de separar – isto pode, isto cabe, isto vinga, isto gora, isto fica aquém. Está aí a escritura de Artaud. Está aquém. E é curioso notar que este aquém a impedir o imprimatur de que fala Jacques Rivière, se aponta na direção do que Artaud dirá, ele próprio, do aquém em que se situa a sua escrita, entretanto, carregam consigo sentidos bifurcados. Rivière dirá de sua poesia a lacuna, a brecha, a incompletude que são como silêncios a comprometê-la numa sua qualidade: você não chega em geral a uma unidade suficiente de impressão. Está aquém. Rivière chegará a recomendar um pouco de paciência, afinal se se trata apenas de uma simples eliminação das imagens e dos traços divergentes, você chegará a escrever poemas perfeitamente coerentes e harmoniosos[19]. Diríamos do sentido do estar aquém que, da poesia de Antonin Artaud, sugeria Rivière: a falha, o negativo, a falta. Artaud, ao renovar a correspondência, dirá da sua imprecisão poética não aquilo que lhe escapa em falta, esse mais ou menos de existência que resulta do que costumamos chamar de inspiração, mas de uma ausência total, de um verdadeiro [20] Não se trataria de arranjar-se de outro modo, e em paciência consigo, até, quem o saberia dizer, o endireitar-se – um alçar à condição de. Artaud requer para si a imprecisão de tal forma a positivá-la na verdade em que ela se funda, a sua própria lacuna, o espaço que parece caber entre o seu pensar e aquilo que ele pensa, entre si e o si mesmo – estou por debaixo de mim mesmo, são palavras de Artaud. Experiência radical do pensar este seu mergulho no que o abisma, o de uma incompletude, e esta sequer a indicar o que ele haveria deixado de promover, sua falhança, quem sabe se provisória, aqui é outro, Artaud está a dizer do pensar a impossibilidade de. Como se naquilo mesmo que fosse o seu obstinado traço, o do pensar do pensamento, o que se lhe viesse não seria outro que o vazio. E o vazio a convocar para seu dentro sem fundo como num sem volta, o salto. Maurice Blanchot dirá que, num primeiro instante, e é este o da correspondência com Jacques Rivière, Artaud conserva manisfestamente a esperança de se tornar igual a si próprio, igualdade que os poemas se destinam a restaurar ao mesmo tempo que arruínam[21]. Na direção disto é que servem os poemas, como imagens as quais se agarra, Antonin Artaud, nos cabelos das palavras as suas garras de firmar, ou no torvelinho que é delas a sua desarrumação e eis as patas soltas em queda, e é já aí que se faz o imperfeito, os vacúolos de sentido nos quais o pensamento oscila esquece escapa pelos cantos, sempre às bordas do que for, e então uma nova imagem, um signo-partícula em que as mãos e o corpo e a carne respiram depois de exaustas[22], e nova vacância, a imperfeição outra vez, e Artaud é todo queda, eu sofro de uma espantosa enfermidade da mente. Meu pensamento me abandona em todos os degraus. Desde o fato simples do pensamento, até o fato exterior de sua materialização em palavras. Palavras, formas de frases, direções interiores do pensamento, reações simples da mente, eu estou em constante busca de meu ser intelectual. Assim pois, quando posso agarrar uma forma, por imperfeita que seja, a fixo, temeroso de perder todo o pensamento[23]. Na assunção mesma da queda como condição de si, embora a dor, e sobretudo por esta, é que Artaud fará valer a sua escritura poética. Está a dizer a Rivière o que importa a forma perfeita se não for da carne a sua proveniência, dos baixos extratos, das regiões mais áridas do ser, do gris de sua condição afirmada, que vale a ela o azul da metafísica, a sobriedade da rítmica, isto que a Artaud pouco importa, e quem sabe não será o que a antecipa no seu faça imprimir?[24] No decorrer da correspondência travada com Jacques Rivière, Artaud deslocará a sua escrita, é o que afirma Blanchot, e os textos posteriores de Antonin Artaud o expressam ao limite, mas qual o deslocamento, Artaud não quer mais furtar-se ao vazio contra o qual escrevia, agora irá se expor a ele, tomando-o como razão e destino de toda expressão possível.

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