sexta-feira, 12 de julho de 2013

MISSÃO E CONTINUIDADE


Ismael Scheffler *
 
"Logo após a morte de Artaud, ocorreu um estranho fenômeno: o
desencadear de homenagens, polêmicas, folhetos, comitês, discussões e
processos". 5 Na realidade, ainda em vida, Artaud foi celebrado. Em 1944, O teatro e
seu duplo teve sua segunda edição e, após a libertação de Paris da ocupação alemã
na II Guerra, Artaud passou a circular novamente entre os literários, sendo
descoberto por "uma geração nova para a qual ele se havia tornado uma figura
legendária e martirizada".
A saída de Artaud do internamento no sanatório de
Rodez, em 1946, aconteceu graças à intervenção de amigos e artistas que se
mobilizaram, arrecadaram fundos para seu sustento, mediante um leilão de obras
artísticas, envolvendo a elite social e intelectual que também se reunia em torno de
Artaud. A realização de leituras de suas obras, os inúmeros convites para
conferências, a publicação imediata de seus textos recém escritos, até o
recebimento de um dos mais importantes prêmios literários indicam a vivência de
"uma espécie de consagração". 8 Ainda em vida já havia um certo culto em torno de
sua figura e de suas palavras que, após sua morte, em 1948, só tendeu a crescer.
(...)
Quando sobrepomos estes
relatos aos estudos que Joseph Campbell fez sobre o percurso padrão da aventura
mitológica do herói, percebemos que a composição da biografia artaudiana encaixase
em todos os estágios da estrutura arquetípica do herói mítico. De fato, não se
pode condenar esses autores por essa mitificação ainda que involuntária, uma vez
que é grande o número de fatos da vida de Artaud passíveis de serem facilmente
associados ao heroísmo em suas múltiplas variantes.
A aventura do herói, segundo Campbell, costuma seguir três estágios: um
afastamento do mundo por meio de uma separação ou partida; uma penetração em
alguma fonte de poder onde o herói é submetido a provas de iniciação; e um retorno
e reintegração à sociedade trazendo benefícios a seus semelhantes. Gostaria de, na
seqüência, destacar alguns aspectos desta trajetória em relatos biográficos de
Artaud.
Conforme Campbell, o chamado do herói provém de um arauto que anuncia a
aventura, "costuma ser sombrio, repugnante ou aterrorizador, considerado maléfico
pelo mundo". 9 Este chamado significa que o destino convocou o herói. Pode ser
mediante um erro, aparentemente um mero acaso, sendo contudo uma
"manifestação preliminar dos poderes que estão entrando em jogo". 10 Equivale a um
momento de passagem espiritual, a uma morte seguida de um nascimento. "Aos
cinco anos, Artaud adoeceu gravemente. Dizse
que teve meningite e que o mal
deixoulhe
uma incapacidade nervosa que o acompanhou toda a vida". 11 A
imprecisão do dado ("dizse"),
parece atender a uma necessidade de encontrar uma
explicação, um marco inicial, que indicaria a origem (chamado) à dor de Artaud.
A esse chamado, nos diz Campbell, o herói pode recusar, o que leva a uma
contraparte negativa. Neste caso, o sujeito perde
o poder da ação afirmativa dotada de significado e se
transforma numa vítima a ser salva. Seu mundo florescente
tornase
um deserto cheio de pedras e sua vida dá uma
impressão de falta de sentido. [...] tudo o que ele pode fazer é
criar novos problemas para si próprio e aguardar a gradual
aproximação de sua desintegração. 12
(...)
Artaud passou, então, por uma sucessão de mortes e ressurreições , até
voltarse
definitivamente para seu chamado. A série de vários internamentos entre
1916 e 1920, passando por casas de repouso e sanatórios, poderia ser vista como
decorrente da não aceitação de sua tarefa. O hospício é o local do desconhecido,
local de aniquilação e de renovação, o útero em que Artaud entra para nascer de
novo, o ventre da baleia. A primeira sucessão de internações seria exatamente uma
sucessão de "abortos", até o "nascimento", em 1920, quando parte para Paris.
Esslin, ao citar o último sanatório em que Artaud esteve neste período, em Le
Chenet, Suíça, de 1918 a 1920, menciona o nome do médico, Dr. Dardel, que o
acompanhou naquele período. A figura do médico acompanhou Artaud ao longo de
sua vida, quer sejam os médicos dos períodos de internamento, quer os
responsáveis por reintroduzílo
na sociedade em suas readaptações, como quando
vai a Paris em 1920 sob os cuidados do Dr. Toulouse. A figura do psiquiatra
corresponderia, baseandome
na estrutura da viagem mítica do herói de Campbell, à
figura do ogro, do guardião do limiar, personagem responsável pela proteção,
estabelecedor dos limites. Esse personagem reúne características opostas, sendo
ao mesmo tempo destruidor e distribuidor de poder mágico. É "somente
ultrapassando esses limites, provocando o outro aspecto, destrutivo, dessa mesma
força, [que] o indivíduo passa, em vida ou na morte, para uma nova região da
experiência". 14 É assim que Artaud estabeleceu relações de extrema amizade com
seus médicos, ao mesmo tempo que lhes dirigiu severas acusações, especialmente
ao seu último médico em Rodez, 15 Dr. Gaston Ferdière.
13
(...)
Numa revista de 1971, o Dr. Ferdière, diretor do asilo de Rodez,
reivindicava para si um papel catalisador da recuperação de
Artaud: "Eu tinha à minha frente um ser absolutamente
excepcional, que nesse momento me aterrorizava por não
produzir nada, e nós encorajávamolo
por todas as formas,
pedíamoslhe
para escrever aos amigos, mas ele não respondia
às cartas; era preciso ensinarlhe
a escrever. [...] então Artaud
começou a escrever de novo. [...] Deilhe
a traduzir Southwelle,
e depois agarrei na tradução e mandeia
ao Seghers, que a
publicou no número seguinte da Poesia 44. [...] Desde esse dia
transformouse;
voltava a ocupar o seu lugar no mundo do
pensamento". De Ferdière e do seu comportamento dá, porém,
Artaud outra versão. Em cartas, nos testemunhos de quem o
visitou, transparece uma verdade diferente [ou compreendida de
forma diferente] do que foi o seu internamento em Rodez. 16
(...)
O fechamento da aventura heróica descrita por Campbell ocorre com o
retorno, sendo uma das formas de regresso o resgate com ajuda exterior –
 
 episódioque sucede a Artaud quando seus amigos tomam a iniciativa de arrecadar fundos
para seu sustento e intercedem junto ao Dr. Ferdière. Artaud regressa então ao
mundo, onde passa a comunicar às pessoas sobre sua experiência, como na
conferência do VieuxColombier
, em 1947. Ele ressurge inclusive com um novo
corpo, extremamente envelhecido e sofrido, e como o portador de um novo saber.
O discípulo foi abençoado pela visão que transcende o alcance
do destino humano normal, equivalente a um vislumbre da
natureza essencial do cosmo. Não seu destino pessoal, mas o
da humanidade, da vida como um todo, do átomo e de todos os
sistemas solares, foi posto diante dos seus olhos; e em termos
passíveis de apreensão humana, isto é, em termos de uma visão
antropomórfica: o Homem Cósmico. 25
Seu renascimento permite que ele partilhe as bênçãos trazidas pelo seu
martírio. Ele possui agora a liberdade de ir e vir entre os dois mundos, o nosso e o
acessível somente a algumas pessoas eleitas.
Não é por acaso que Artaud é mitificado – sua história é lida sob a influência
arquetípica do herói. Isso, contudo, leva a determinadas posturas, como a idéia da
necessidade de continuação do legado artaudiano, de sua missão, uma fidelidade
que obriga ao prolongamento contínuo de seu trabalho. 26
Conforme Cláudio Willer, Artaud "não era um conservador, não estava
interessado na restauração de alguma cultura tradicional. Tanto sua fascinação pelo
hinduísmo, pela Cabala, pelas práticas xamânicas, o que o interessa é o confronto
com nossa civilização, o efeito que tudo isso possa ter para alterar nossa percepção
e nossa consciência". 27 Acredito que, nesse mesmo sentido, seria mais "fiel" a
Artaud visitar seus escritos sem a pretensão de querer restaurar ou continuar suas
idéias, mas justamente confrontar seus escritos com nossa civilização. Sua
contribuição já está dada, restando para nós nos dias atuais compreendêla
na
medida do possível para poder tirar proveito dela. A tendência de querer dar
continuidade à "missão" de Artaud também é um aspecto que atribui a sua existência
uma notoriedade a mais, como que ressaltando que todo seu sofrimento não deve
ser desperdiçado.
25


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