segunda-feira, 8 de julho de 2013

PALAVRAS-COISAS NO ESPAÇO-TEMPO

      
Augusto de Campos
 
Falando à reportagem do "Diário Popular", os poetas concretistas afirmam: "A poesia concreta propõe o útil: o poema, como um objeto de consumação, integrado na vida cotidiana, na arquitetura, como "forma mentis", fecunda de sugestões à propaganda, às manchetes, ao rádio, cinema, TV, etc. — Tradição histórica ativa e geração espontânea — Um poema de Mallarmé — Futurismo, dadaísmo e lirismo da matéria — Os "Caligramas" de Apollinaire e os "Cantos" de Ezra Pound — A importância de Oswald de Andrade
Por ocasião da abertura da "Exposição Nacional de Arte Concreta", recentemente realizada no Museu de Arte Moderna, foi apresentado ao publico presente o terceiro número da revista Noigandres, em que colaboram os seguintes poetas concretistas: Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Augusto de Campos e Ronaldo de Azeredo. A entrevista que hoje publicamos nos foi dada peos poetas Haroldo e Augusto de Campos, e procura expor, em linhas gerais, as diretrizes do movimento de poesia concreta.
Eis a entrevista:
EVOLUÇÃO DAS ARTES E "GERAÇÃO ESPONTÂNEA"

O mundo artístico é una mundo de formas; formas visuais (artes plásticas, arquitetura), formas sonoras (musical),  formas verbais (literatura, especialmente poesia). Essas formas evoluem, não num sentido de hierarquia de valor (seria absurda a proposição: Mallarmé é maior do que Dante), mas no de transformação qualitativa, de constante e viva metamorfose, imprescindível para sua sobrevivência mesma, porque também as formas envelhecem e se reduzem a fôrmas: a cultura, como um organismo, tende a eliminar  suas partes mortas,  nutrindo, através dessa dialética, o próprio impulso que a move.
Assim, a problemática da poesia concreta se põe como resultante de todo um processo cultural. Os poetas concretos não se pretendem produto de "geração espontânea", mas julgam-se, ao contrário, arrimados numa tradição histórica ativa.
UM LANCE DE DADOS REVOLUCIONA A
POESIA


Base e fundamento da nova formulação poética é o poema de Mallarmé "Un Coup de Dês" (Um lance de dados), que data de 1897. Em prefácio a esse poema, Mallarmé prevê essa evolução   de formas verbais de que a poesia concreta se propõe a ser a consequência crítica: "Sem presumir do futuro, o que sairá daqui, nada ou quase uma arte..." O "lance de dados" mallarmeano instiga e precipita rumos inteiramente inéditos para a poesia. Rejeitando as esterilizantes formas fixas e o verso-livre (álibi para todas as acomodações), Mallarmé passa a organizar o espaço gráfico como campo de força natural do poema. Vale-se dos mais diversos recursos tipográficos, sempre num plano de   funcionalidade,  para criar numa constelação de relações  temáticas  (que  chama de "subdivisões prismáticas da Ideia"). Com esse processo, pode-se dizer que Mallarmé, colocando “em situação” a sua própria obra e a poética moderna, "opera, através da poesia, a junção da música com a arquitetura visível".

FUTURISMO, DADAÍSMO:  DERIVATIVOS
Futurismo e dadaísmo retomaram, no inicio do século, sem a mesma consciência  crítica e de realização   prática de Mallarmé, certos problemas postos por     essa linha de pesquisas, que ondas remansosas de conformismo tentavam sufocar. E' bem verdade que a preocupação dos futuristas  e dadaístas se colocava em outros termos que os levaram a descaminhos; aqueles cultivavam uma espécie de retórica da maquina, uma sorte de lirismo da matéria, incompatível com um sentido rigoroso de estruturação poemática;
estes proclamavam um caos poético, que, embora cumprindo missão necessária de pulverização da ordem poética vigente, nada propunha que a substituísse com eficácia, destinando-se o movimento, aliás, por empostação histórica negativista, não a fazer obra   de arte, mas a suprimi-la.

CALIGRAMA E IDEOGRAMA
Derivando das experiências futuristas e mais remotamente de Mallarmé, um outro poeta, Apollinalre, conseguiu formular com bastante nitidez o rumo da evolução poética, ao escrever: "Portanto, seguramente, nada de narração, dificilmente   poema.   Se quiserem: poema ideográfico. Revolução:  porque é preciso que nossa inteligência se habitue a compreender sintetico-ideografica-mente em lugar, de analitico-discursivamente". Todavia, sua prática dessa teoria deixou a desejar. Seus chamados "caligramas" são uma versão figurativa do ideograma poético, condenado por  ele à função de ilustrar o tema. Assim, composições em forma de relógio, gravata, coroa se sucedem nos Caligramas (o que faz remontar a experiência  aos "carmina figurata" dos poetas alexandrinos, à “garrafa” do Pantagruel de Rabelais, etc.) A estrutura nesses casos é evidentemente imposta ao poema, exterior  às palavras, que tomam a forma do recipiente que as contêm, ao invés de realizar a sua própria organização.
O pensamento ideogrâmico, porém, em base de uma  muito mais ampla consciência critica, veio a fundamentar o trabalho de outro poeta, o americano Ezra Pound, que, apoiado no linguista Ernst Fenollosa, vislumbrou   na estrutura do ideograma chinês um instrumento adequado para a renovação poética.   Os Cantos de Ezra Pound, iniciados em 1917 e que se acham ainda incompletos (é de 1955 a série que compreende os Cantos 85 a 95), são organizados pelo chamado método ideogrâmico, e interessam particularmente do ponto de vista da estrutura, cuja peculiaridade está em permitir a justaposição  crítica de blocos de ideias que se confrontam, interagem e reiteram de modo a lembrar o esquema de uma fuga. O processo de Pound pode ser comparado,  ainda,  á montagem cinematográfica,  que, por sua vez, é estudada por Eisenstein em termos de ideograma chinês.

CIRCULO VICIOSO E POEMA-MINUTO


Sem a pretensão de nos estendermos no traçado minucioso de um elenco histórico de autores, o que não caberia no âmbito desta entrevista, devemos ressaltar, finalmente, as contribuições de Joyce e Cummings para a evolução formal da poesia, Ulysses e mais ainda, Finnegans Wake, o implacável   romance-poema de Joyce,  realizam   também, e de maneira "sui generis", a proeza da estrutura. Aqui o ideograma é obtido através de superposições de palavras, verdadeiras "montagens" léxicas. A obra se move como em
circulo vicioso, eliminando as noções de desenvolvimento   linear (principio-meio-fim), porosa à leitura por qualquer dos   pontos através dos quais seja assediada. Apresenta, evidentemente, mais de um ponto de contacto com "Um lance de dados". Já o americano E. E. Cummings leva o ideograma à miniatura. Em seus poemas-minuto, Cummings libera o vocábulo de sua grafia, põe em evidencia seus elementos verbais, visuais e fonéticos, para melhor acionar sua dinâmica. Ao invés da figuração exterior e superficial dos "caligramas" de Apollinaire, certas soluções de Cummings atingem um nivel de maior interesse: algo como uma "figuração" intrínseca das palavras, ou melhor, uma “fisiognomia” das palavras, cujo aspecto visual atua em correlação íntima com sua essência significante.

O AMBIENTE NACIONAL


Não é habito, no Brasil, a obra de invenção. E' verdade que, com o Modernismo, a literatura brasileira logrou atingir uma certa autonomia de voz, que, porem, acabou cedendo a toda sorte de apaziguamentos e diluições. Contra a reação sufocante, lutou quase sozinha a obra de Oswaid de Andrade, que sofre, de há muito, um injusto e caviloso processo de olvido sob a pecha de "clownismo" futurista. Na realidade, seus poemas (Poesias Reunidas O. Andrade), seus romances-invenções Serafim Ponte Grande e Memórias Sentimentais de João Miramar (de tiragens há muito esgotadas, para não falar de seus trabalhos esparsos ou inéditos), que ainda hoje, por sua inexorável ousadia, continuam a apavorar os editores, são uma raridade no desolado panorama artístico brasileiro. A violenta compressão a que Oswaid submete o poema, atingindo sínteses diretas, propõe um problema de funcionalidade orgânica que causa espécie em confronto com o vício retórico nacional, a que não se furtaram, em derramamentos piegas, os próprios modernistas e que anula boa parte da obra de um Mário de Andrade, por exemplo. Drummond extenuou as possibilidades de uma linguagem coloquial, e repetiu-se, aguou-se, especializou-se em sua própria dicção, e mais, perdendo o pé, senta-se no soneto. E, no entanto, é ainda o melhor poeta de sua geração. A pretexto de rigor anti-22, a geração de após-guerra, iniitulada "de 45", fez o recuo definitivo da poesia brasileira. .Seu rigor revelou-se um mero sinónimo de bom tom formal, de poesia timorata, sujeita a noções academizantes de "clima", "pés" e "fôrmas", em relação às quais certas metáforas dissonantes de um Cruz e Souza (para não falar de toda a tradição de Bau-delaire e Rimbaud para diante), bem como o próprio verso-livre simbolista, já eram um progresso. Foi João Cabral de Mello Neto quem, isoladamente, retomou a linha criativa, operando o necessário salto qualitativo em seus livros O Engenheiro, Psicologia da Composição e Cão Sem Plumas. Seus poemas ortogonais tomam consciência da superação do verso linear. Daí a extremada técnica de "cortes" de que se utiliza. Daí sua maior visão do problema estrutural  desse campo de relações que é o poema. Não é à toa que Le Corbusier é citado no pórtico de um de seus livros. Em Cabral arquitetura e poesia novamente se corroboram.

POESIA CONCRETA: POESIA "EM SITUAÇÃO"


A poesia concreta procura assumir as consequências de uma tradição viva. A reação contra a obra de invenção não é um mal nacional. E' conhecida a linguagem daqueles que taxam de ultrapassadas ou incontinuáveis todas as fecundas vertentes criativas, como casos de extravagância literária, para poder defender os mornos direitos de uma petrificação do gosto. Mas de outra parte, contra as nostalgias de paraísos perdidos, inflexível e impessoal, a evolução de formas impõe-se a si própria. Exige-se. Os jovens músicos concreto-eletrônicos — Pierre Boulez, Fano — definem-se literariamente, em correlação com os problemas estruturais de sua musica, por Mallarmé (Un Coup de Dés), Joyce e Cummings. Eugen Gomringer (que foi secretário de Max Bill e, atualmente, é professor na "Hohschule für Gestaltung"— "Escola Superior de Desenho", em Ulm, Alemanha, o mais importante reduto europeu das experiências plásticas de vanguarda), situado no centro de uma tradição artística viva cujo antecedente imediato era a Bauhaus. reage contra o banho-maria surrealista e o rilkeanismo vago-simpático que enxundia certa poesia europeia precocemente senilizada (mal que entre nós se exprime por coroas fúnebres de sonetos...), e se empenha em erguer uma nova e consequente realidade poemática. Isto, em contemporaneidade cronológica com as preocupações que, semelhantemente, assaltam e dirigem o trabalho de alguns poetas brasileiros. O encontro de Decio Pignatari com Gomringer em Ulm valeu, reciprocamente, como confrontação de experiências e demonstração ineludível de como, independentemente de longitude, latitude e língua, opera o processo de transformação e evolução qualitativa de formas no domínio cultural. Gomringer, que denominava seus poemas "constelações", fundado no exemplo de Mallarmé, passou a adotar, em carta dirigida a D. Pignatari, a de "Poesia Concreta", proposta pelo grupo brasileiro. Em suas melhores peças, obtém efeitos surpreendentes de ordenação ortogonal do espaço com palavras curtas e semelhantes, uma espécie de linguagem elementar e direta.
  A "Poesia Concreta" se abre, como realização e hipótese de trabalho, à jovem poesia brasileira que não se conforma com o ranço e a mornice vigentes e busca desesperadamente, contra a sufocação imposta, o elo escamoteado da tradição viva que sirva de apoio à obra verdadeiramente criativa.  A "Poesia Concreta" propõe o ÚTIL: o poema, como um objeto de consumação, integrado na vida cotídiana, na arquitetura, como "forma mentis" fecunda de sugestões à propaganda, às manchetes, ao radio, cinema, T., etc.; o livro, como um objeto verbal totalmente planejado, de fruição integral. A "Poesia Concreta" se põe em sintonia com as tendências vivas da música e das artes visuais, numa interrelação crítica de proveitos recíprocos. Organizar "sintetico-ideogramicamente" ao invés de "analítico-discursivamente" a totalidade do poema, todos os seus elementos, todo o material de que dispõe (palavra, sílaba, fonema, som, fisiognomia acústico-vocal-visual dos elementos linguísticos, campo gráfico, cargas de conteúdo precipitadas em cadeia e consideradas em pé de igualdade com os demais materiais de trabalho), tudo disciplinado por uma severa e lúcida vontade de estrutura. Esta a superação critica que oferece a "Poesia Concreta" em relação à tradição viva de que é consequência, sem que esteja implícita, evidentemente, por absurda, qualquer intenção de juizo de valor. Por isso dizemos que a "Poesia Concreta" realiza a comunicação cm seu grau mais rápido, o que é uma necessidade do espirito criativo contemporâneo: não se trata, porem, d comunicaçâo-signo, instrumenta , em que as palavras servem de indicadores neutros de movimentos de temas (função precípua da prosa), mas da comunicação de formas verbais. Direta. Imediata. Não há cartão de visitas para o poema: há o poema.

O DE PALAVRAS-COISAS NO ESPAÇO-TEMPO.



Diário Popular, 22.12.1956

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