quinta-feira, 4 de julho de 2013

TONALAMATL



(...)
Nota-se, ao compulsar certos trabalhos eivados de preconceito persecutório contra o conhecimento autóctone da América, que, mais de um século antes da publicação da obra de Carlos Castaneda, os meios acadêmicos já tinham conhecimento sobre o nagualismo.

Vejamos alguns trechos redigidos pelo professor Daniel Brinton, logo no início do texto:

As palavras "nagual", "nagualismo" e "nagualista" têm sido correntes na prosa inglesa por mais de setenta anos; podem-se encontrá-las em toda uma variedade de livros publicados na Inglaterra e nos Estados Unidos123, não obstante, ainda as não as encontrarão em nenhum dicionário da língua inglesa, nem tampouco tem lugar o "Nagualismo" em nenhuma das numerosas enciclopeias ou léxicos, seja em inglês, francés, alemão ou español.



Isto não se deve a sua falta de importância, posto que nos últimos duzentos anos, como demonstrarei, tem sido reconhecido como um culto tão poderoso quanto misterioso, que uniu muitas e diversas tribos do México e da América Central, em uma oposição organizada contra o governo e a religião que fora introduzida pela Europa, culto cujos membros haviam adquirido e utilizavam estranhas faculdades da mente e um conhecimento ocultista que os emparelhava com os mais afamados taumaturgos e teodidatas do Velho Mundo, e se preservou até os nossos dias o pensamento e a forma de um ritual largamente suprimido.


Em varias publicações previas me referi brevemente a esta secreta fraternidade124, e a seus objetivos; e agora creio que vale a pena ordenar as minhas notas e apresentar o que encontrei de valor acerca da Origem, dos Objetivos e do Significado deste Mistério Elêusico da América. Traçarei sua extensão geográfica, e procurarei descobrir qual foi, e é, a sua secreta influência



/…/ A mais antiga descrição que encontrei sobre seus ritos particulares é a do historiador Herrera, que os encontrou em 1530 na provincia de Cerquin, na parte montanhosa de Honduras, e é a que se segue:


"O Diabo costumava enganar estes nativos aparecendo-lhes em forma de leão, tigre, coiote, lagarticha, serpente, pássaro ou qualquer outro animal. A estas aparições eles lhe dão o nome de Naguales, que é algo assim como dizer guardiões ou companheiros; e quando esse animal morre, também morre o Índio a que estaba destinado. A maneira em que se formava esta aliança era assim:

O índio se dirigía a um lugar muito retirado, e ali apela aos arroios, às montanhas e às árvores a seu redor, e chorando implorava para si mesmo os favores conferidos aos seus ancestrais. Logo sacrificava um cachorro ou um galo, e com o sangue molhava a sua língua, as orelhas e outras partes do corpo, e se deitava para dormir. Estando dormido ou semi-dormido, podía ser a um destes animais mencionados, que lhe dizia: "Tal dia vá caçar, e o primeiro animal ou ave que verás será a mina forma, e permancerá contigo como teu companheiro e Nagual, para sempre". Assim a sua amizade ficava selada com tanta força que um morria, também o outro; e sem um Nagual, os nativos pensavam que ninguém poderia se tornar rico ou poderoso".125




Duas coisas muito importantes podemos perceber agora, no trabalho de Brinton, Um Estudo sobre o Folclore e a História Nativa da América, que foi lido diante da Sociedade Filosófica Americana, no dia 5 de Janeiro de 1894, e impresso no dia 23 de Fevereiro de 1894, percebam bem a data.

Uma: ele reporta relatos que cita de padres jesuítas, os quais estiveram na América, do século XVI em diante, e lutaram ferozmente contra o fenômeno do nagualismo. Ali já se veem as práticas do sonhar, da recapitulação, da espreita (sugerida por certos "dribles" que os índios tentam dar nos padres) e a relação espiritual dos feiticeiros em animais. É um documento valioso, que comprova que a expressão "nagual", para designar o feiticeiro mestre, já era usada desde a descoberta, e as práticas eram as mesmas que os praticantes da neotoltequidade abraçam. (Com exceção da tensegridade, mas Carlos Castaneda aponta que algumas estátuas do Museu Nacional de Antropologia do México estariam praticando algumas posições dos passes mágicos).126




Duas: os padres citados por Brinton não duvidam nem por um momento sequer que todas as coisas que os xamãs fazem sejam reais, apenas abominam as práticas de encantamentos, metamorfoses oníricas e feitiçarias, pois pensam que são inspiradas pelo demônio.

O próprio Brinton, apesar de ser um antropólogo, se coloca contra o conhecimento nativo, e abraça os preconceitos religosos europeus. Veja que coisa: a questão hoje não é quase religiosa, não se tenta erradicar livros como os de Castaneda por serem diabólicos. Mas se coloca a questão da verdade, de uma perspectiva positivista: isso não pode ter se dado, ponto final. Logo, o autor está reportando as crenças infantis dos selvagens? Tudo bem. Ou ele está usando tudo como meras fantasias da mente, que nos ensinam coisas? Tudo bem. Ou são reles metáforas, histórias alegóricas? Tudo bem. A condenação atual às práticas não é, pelo menos oficialmente, por serem heterodoxas, religiosamente falando; mas sim por não se submeterem a um preconceito positivista (e, mais que tudo, do senso comum) que essas próprias práticas estão superando.

Outro documento importante é a Tonalpohualli, texto de figuras tradicional dos toltecas, editado em 2005 no México, com comentários, por Miguel Tapia Díaz, sob o ...título

Tonalpohualli: Mathesis (síntese) tolteca.

Escolhi alguns trechos para citar aqui, um pouco para dar notícia do que seja esta complexa e pluridimensional máquina, que o próprio Quetzalcóatl nos legou; também para despertar a curiosidade do leitor, que pode encontrar o livro de Tapia Díaz na internet:

/.../ Os filósofos e sacerdotes nahuas chamam Tonalamatl ao livro ou amoxtli em que se desenvolve a representação gráfica da conta dos destinos. A História General de las Cosas de España, no seu livro IV, obra escrita por Frei Bernardino de Sahagún (1499-1590), mostra exemplarmente o que se deveria entender, segundo a versão clássica castelhana, em relação ao amoxtli e a seu conteúdo.

/.../ O Tonalamatl é uma obra muito complexa; trata-se ao mesmo tempo de uma composição pictórica e literária; contém mensagens com valores concomitantemente lógicos e analógicos; dificilmente se pode estabelecer para ele uma classificação entre os gêneros da literatura conhecidos pelos europeus. Já se falou que o Tonalamatl é um livro de sortilégios, o que é só uma parte da verdade. Certamente tem sido um livro utilizado até os dias de hoje, por algumas pessoas, para realizar adivinhações; mas o contato direto com o amoxtli também revela outras vertentes de leitura.

/.../ A tonalpohualli é um sistema simbólico constituído por 260 termos, cada um dos quais recebe o nome genérico de tonali. O termo tonalli se utiliza tanto como substantivo abstrato como substantivo concreto. No sentido abstrato, significa "sorte", "destino", "caráter" etc; como substantivo concreto, expressa os significados de "dia" e "unidade de medida" e é utilizado como nome para o gráfico que representa o tonalli. O tonalli é um signo composto por dois elementos: um numeral e um logograma. Os tonaltin (plural de tonalli) podem se agrupar em 52 conjuntos de 5 (como nas primeira 8 lâminas dos códices Cospi y Borgia) ou em 20 conjuntos de 13; esta última forma de agrupamento permite que a cada trezena ou reunião de 13 tonaltin a encabece um tonalli de numeral 1. Cada trezena recebe o nome do tonalli que a inicia. A cada tonalli corresponde um número inteiro, de tal modo que ao primeiro tonalli corresponde o 1, como ao último corresponde o 260.

/.../ A leitura oracular se desenvolve como um ritual mágico mediante o qual os indivíduos alcançam clara compreensão de sua "sorte" ou "destino", ao se lhes fazer evidente a sua relação com a totalidade do criado. O tonalpouhque se auxilia, ao fazer seus prognósticos, mais que da tonalpohualli como sistema abstrato, do Tonalámatl, pois neste amoxtli se registram, além dos tonaltin, as características astrais e simbólicas de cada cifra. Nem a tonalpohualli nem o Tonalámatl são compreensíveis como ferramentas oraculares, sem apelar para seu sentido astronômico. Fazendo abstração do astronômico, a tonalpohualli é uma álgebra e o Tonalámatl uma obra sapiencial que explica, mediante gráficos, os valores analógicos de cada tonalli.

/.../ Cada Sol ou Idade recebe o nome do tonalli em que finaliza. A cada grupo de 13 anos ou tlalpilli se lhe assigna 1 de 4 nomes de tonalli: 1 - Junco, 1 - Pederneira, 1 - Casa ou 1 - Coelho. Ao ano se lhe assinala 1 de 52 nomes. Dada uma data e localizando o dia em uma vintena se sabe também a que trezena pertence. O tonalpouhque ou intérprete do destino pode proceder sistematicamente para realizar a sua tarefa, primeiro observando as características do nome do Sol, depois as do tlalpilli, depois as do nome do ano, logo depois as do nome de uma trezena, e, finalemnte, as do nome do dia.


/.../ Os sacerdotes e pedagogos toltecas encontram algo mais que um simples jogo oracular no Tonalámatl; os frades católicos estavam conscientes de que não se encontravam frente a um recurso de entretenimento, e conheceram alguns aspectos da leitura do Tonalámatl, com a finalidade de acabar de um modo estratégico com o domínio que o demônio, diziam, exercia sobre os índios.130




Incomoda-me que haja tanto movimento antropológico e linguístico no México e fora dele para recuperar esse tesouro insuspeitado que é a civilização Ānahuacah (e este livro aqui é um bom exemplo, pois sou brasileiro), e coisa parecida esteja, graças a Deus, acontecendo em relação à civilização dos Aymará e dos Incas; isso não me incomoda, isso eu festejo feliz; o que me incomoda é que nós, brasileiros, ainda não tenhamos tomado consciência de três fatos que clamam por nós: 1 - a grandeza das "n" civilizações de Pindorama, e suas línguas, que precisamos resgatar, reviver e potencializar, 2 - o paralelo da nossa milionária herança africana, da qual pouco nos apercebemos, graças a alguns mahātmas como Jorge Amado, Carybé e Roger Bastide (mas que precisamos aumentar muito mais) e 3 - a realidade panamericana, somos o mesmo povo americano, vivemos na mesma terra, de norte a sul, a América.



(...)



Nenhum comentário:

Postar um comentário