domingo, 8 de dezembro de 2013

A propósito de Xul Solar

 
 
 
Maria Bernardete Ramos Flores*


Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano V, n. 14, Setembro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html



Hombre versado en todas las disciplinas, curiosos de todos los arcanos, padre de escrituras, de lenguajes, de utopías, de mitologías, huésped de infernos y de cielos, autor panajedrecista y astrólogo perfecto en la indulgente ironía y en la generosa amistad. Xul Solar es uno de los acontecimientos más singulares de nuestra época.

 
Jorge Luis Borges (1949, p. 196)


Si yo tuviese que comparar a Xul con algún otro – pero Xul era único, quizás cada individuo sea único pero en él se notaba más esa unicidad – lo compararía con William Blake, un místico, un visionario, un gran poeta.


Jorge Luis Borges (1980)

Sus pinturas son documentos del mundo ultraterreno, del mundo metafísico en que los dioses toman las formas de la imaginación que los sueña… Xul Solar renueva a modo ambicioso que quiere ser modesto, la mística pintura de los que ven con los ojos físicos en el ámbito sagrado de Blake, de Swedenborg, de yoguis y bardos.


Jorge Luis Borges (1949, p. 196)

 
Místico, visionário, astrólogo, pintor e músico, Xul Solar (Oscar Augustín Alejandro Schulz Solari - 1887-1963), é um dos representantes da vanguarda artística argentina. Dado à invenções - um piano com 28 notas, um jogo de xadrez modificado, as cartas do tarô, um teatro de marionetes com personagens retirados dos signos do zodíaco, desenhava mapa astral e cartas de tarô – criou uma língua artificial, o neocriollo, uma mistura de espanhol e português, que se destinaria à unidade latino-americana, outro idioma, a panlíngua, com o fim de facilitar a comunicação e a convivência de todos os cidadãos do mundo. Como artista plástico, pintou quadros denominados grafias ou plastiútiles ou pensiformas, uma escritura pictórica, que formam frases ou mensagens, a indicarem o caminho a um estado de paz interior. Interessado em diversas áreas do conhecimento – música, arquitetura, matemática, anatomia - e conhecedor de vários idiomas, Xul dedicou-se ao estudo da história das religiões, da filosofia hermética, exotéricas e alquímicas, do pensamento chinês e de diversas cosmologias espiritualistas: Hermes Trismegistus, Robert Fludd, Jakob Böhme (ANAYA, 1999. p. 43). Borges o considerou integrante de uma trilogia espiritual, junto de Emanuel Swedenborg e William Blake (ARTUNDO, 2005, p. 31).


O místico Swedenborg (Estocolmo/1688, Londres/1772) influenciara, não só o pensamento de Xul Solar, Jorge Luis Borges e William Blake, mas também de vários personagens renomadas da civilização ocidental (Abrahan Lincoln, Émerson, o filósofo americano, Helen Keller, cujo livro My Religion é um tributo aos escritos de Swedenborg). Outros, como Kant, Linnaeus, Johan Wesley, Goethe, Rousseau, Baudelaire e Voltaire se familiarizaram com a obra de Swedenborg. 1 Embora educado no luteranismo, pois seu pai era um bispo luterano, Swedenborg não acreditava na salvação pela graça. Aos 56 anos acontecera-lhe um fato primordial que mudaria sua vida, um sonho que registrou em seu diário, no qual recebera de Jesus Cristo a missão de renovar a igreja e criar uma nova Jerusalém. Para criar essa nova religião, Jesus havia permitido que visitasse o mundo dos espíritos, no qual havia vários céus e infernos e aí constatou que anjos e demônios não foram criados por Deus, mais que eram homens que acenderam a condição angelical ou descenderam à condição demoníaca. Na nova religião que Swedenborg pregou, "fala-se da salvação pelo trabalho, pelas obras, embora tais obras não sejam, certamente, missas nem cerimônias, mas, sim, [...] obras nas quais entra todo homem, quer dizer seu espírito e, [...] também

 
sua inteligência" (BORGES, 1985, p. 21).2

 
O poeta e pintor William Blake (Londres, 1757-1827), que também tinha visões angelicais, igualmente, anunciara a redenção humana em uma nova Jerusalém. Seus poemas Songs of Innocence (1789) e Songs of Experience (1797), são sempre lembrados quando se trata de comentar o pensamento místico de Xul Solar. Nestas obras, Blake entrelaça poesia e pintura, revelando os lados contrários da alma, expressa numa gesticulação agônica de alegorias, círculos, espirais, redemoinhos, que mostram a tensão de um mundo entre transparência e opacidade. Tensão que Blake descreve como um impulso de regresso, um salto a outros tempos, a uma suposta origem profunda, para além do mundo clássico, nem Grécia nem Antiguidade. Só no Caos, no Gênesis ou no Paraíso se encontraria aquela luz que ilumina os tempos e os abre ao jogo do acaso das criaturas e dos novos mundos possíveis.


Na interpretação do historiador e crítico de arte, Roger Fray, Blake - que deixara inacabado um ciclo de ilustrações para a Divina Comédia de Dante - nos dá a impressão de ser mais um amador divinamente inspirado do que um mestre consumado de sua arte, a despeito da qualidade plástica de sua pintura, aguadas, xilogravuras e gravuras em metal, e do domínio de técnicas que permitiam a realização de uma ideia. A Inglaterra puritana, com sua devoção à Bíblia, sobretudo, ao Antigo Testamento, proporcionara a um espírito como o de Blake, diretamente de sua fonte, o imaginário mais primitivo, vasto e abstrato de que dispomos. A sua meditação sobre as imagens da poesia hebraica e caldeia, o tornou indiferente em relação ao mundo material concreto. Tudo o que se apresentava a sua visão interna tornou-se incomparavelmente mais definido, preciso e claramente articulado do que o que lhe chegava através dos sentidos. Ele tratava diretamente dessas sensações espirituais, aproveitando da natureza externa o mínimo possível, para criar formas espirituais visíveis, através da pintura e do desenho (FRY, 2002. p. 237-238).

O envolvimento de Xul Solar com o misticismo vinha desde sua juventude. Antes de sair de Buenos Aires em 1912, já era um estudioso da tradição hermética, estava familiarizado com as teorias esotéricas, com a cabala, com a leitura da Bíblia, com a história das religiões e com a simbologia de tradição mística (ANAYA, 1999. p. 43). Por volta de 1903-1907 dera início a uma prática que continuou pelo resto de sua vida: guardar em pastas recortes de imagens dos assuntos de seu interesse, obras de

autores, cenas de costume de povos do Oriente e da África, esculturas de deuses egípcios, personagens históricos, seres fantásticos (ARTUNDO, 2002, p. 202). No seu diário, há registros de crises espirituais e estados de desassossego, que lhe acometeram por volta de 1910, e desejo de construir um novo mundo. Sua angústia transparece num fragmento: "He estado preparándome para irme a Europa con dinero para un mes, y he alternado entre la esperanza, el deseo de lucha, el reposo y la desesperación completa." E cita em francês o poema Les Fleurs du Mal de Charles Baudelaire: "Un matin nous partons, le cerveau plein de flamme, le coer gros de rancune et de désirs amers" (CRISTIÁ, 2007, p. 31-32). Em uma de suas notas, escrita numa noite de Buenos Aires, Xul assim se expressa:

Me oprimen vagas asfixias de deseos, como nieblas enemigas que rivalizan, mortíferas; en medio de mi agitación mi espíritu revolotea por los espacios buscando ayuda para hacerme huir, no sé hacia dónde. (…) fantasmas, cosas veladas llenan la atmósfera, no puedo definirlas (…) agudas risas escondidas y ágiles (…) mientras como serpientes, las nieblas se disipan. Visiones claras en la noche, rítmicos suspiros musicales de la selva florida, variados arrullos de aguas que van danzando y el aliento-perfume de la primavera adolescente que juega y me rodea como llamas, en fiebre delirante me anonadam, oh! (XUL SOLAR, 1990. p. 10).

Contava Xul com 24 anos de idade quando, em 1912, parte para Europa, em um navio de carga, desembarcando em Londres. Entre suas andanças pela cidade, frequenta o British Museum3 e adquire dois guias que demonstram, desde cedo, seu interesse pela cultura pré-colombiana. Numa segunda estância em Londres - de novembro de 1919 a maio de 1920 - analisa a pintura de William Blake e adquire suas obras completas. Estuda a Cabala, os símbolos antigos africanos, pré-colombianos e orientais.

Xul permanece na Europa por 12 anos, de 1912 a 1924. Além de Londres, passa temporadas em Paris, Florença, Milão, Turim e Munique, e se insere naquele contexto europeu, marcado pelo ocultismo e pelo misticismo, pelo movimento teosófico, enfim, pelo conjunto de saberes vinculados ao revival espiritual, nas primeiras décadas do século XX, numa reação aos aspectos da modernidade: materialismo, industrialismo, racionalismo, individualismo, imperialismo, guerra, descrença na geometria euclidiana, na física newtoniana e em tudo o que tinha formado a base da vida cotidiana do século XIX. Sua estada na Alemanha, entre 1921 e 1923, coincidiu com a afirmação de

Schwabing, conhecido subúrbio, em Munich, aonde se reuniam teosofistas, místicos, gnósticos, taoístas, budistas, neobudistas e também niilistas, sindicalistas, bolcheviques e pacifistas. Dos contatos mais importantes, que Xul estabeleceu na linha do misticismo, nestes anos de Europa, são citados Austin Osman Spaer, pintor, desenhista e figura chave do ocultismo inglês; Rudolf Steiner, criador da antroposofia; Alan Bennett, ordenado monge budista, e Aleister Crowley, que juntamente com George Cecil Jones, fundou a doutrina de Astrum Argentinum (Estrela de Prata) (ARTUNDO, 2005, p. 23). Como veremos mais adiante, Aleister Crowley terá um papel central na obra de Xul Solar.

A teosofia

...El visionario y teosofista Rudolf Steiner há revelado que nuestro planeta, antes que la tierra sea lo que conocemos como actual, ha pasado por el estado Sol y antes sobre el estado Saturno. El hombre posee ahora un cuerpo físico, un cuerpo etéreo, un cuerpo astral y un ego, y al comienzo de la era de Saturno o del estado Saturno sólo había energía radiante. Este cuerpo era invisible, ni siquiera palpable, porque en ese tiempo en la tierra no había objetos, ni fluidos, ni gases. Solamente había objetos energéticos. Constelaciones de luz determinaban varias formas en el espacio cósmico, cada ser humano era tan solo criatura de energía. Antes del estado Sol, seres de fuego o Arcángeles (angeles-arco) inspiraron los cuerpos del "hombre", que entonces comenzaron a brillar y a resplandecer. ¿Acaso Steiner soñó estas cosas? ¿Acaso ocurrieron al comienzo del tiempo? De cualquer manera, es seguro que estos conocimientos son mas sorpreendentes que los Demiurgos y de víboras y toros de otras cosmogonías. (BORGES; GUERRERO, s.d., p.43).

Em 1923, Xul viaja para Stuttgart para participar das Jornadas Artístico-Pedagógicas, organizadas por Rudolf Steiner (de quem assistira a várias conferências proferidas na ocasião pelo mestre da antroposofia e de quem trouxera para Argentina, vários de seus livros e ensinamentos) (FISCHLER, 2005). A Antroposofia, fundada por Rodolf Steiner, como dissidência da Teosofia de Blavatsky, procura conhecer o "verdadeiro homem real (anthopós)" que se oculta por detrás do naturalismo, apreendido pelas Ciências Naturais. Segundo Steiner, Kant fora o grande expoente da ruptura entre ciência e mística, fechando toda gama de possibilidades ao acesso do conhecimento da essência das coisas. Já, a Antroposofia, tentando resgatar a filosofia aristotélica, faria frente à ciência moderna, abrindo a possibilidade do conhecimento total, "no ponto em que a realidade e a subjetividade se tocam por completo". Assim, os

dois fatores fundamentais para o desenvolvimento futuro da humanidade seria a admissão de que o ser humano é um ser de natureza espiritual, um complexo de necessidade espiritual, e do processo de reunificação entre religião, arte e ciência. O materialismo trouxera desequilíbrio à humanidade ao isolar a ciência dos demais campos do conhecimento (STEINER, 1994).


Para Steiner, o ser espiritual que foi chamado Cristo não era mais que o Ser Solar (interessante observar aqui o nome Xul Solar, que o artista adotara por volta de 1916)4, já adorado em épocas remotas entre os persas, egípcios e gregos, e nas culturas teutas, noruegas, celtas e outras pagãs, anteriores à passagem de Cristo pela terra.5 Também, é associado a Steiner os Goetheanum, uma arquitetura antroposófica, que se constitui em edificações para congregar comunidades, construídas em Munique e Dornach, na Suíça, localidade em que esteve Goethe. Steiner procurava nesses projetos arquitetônicos, dedicados à educação, reconciliar as artes, de forma integrada, pois acredita que o caos reinante nas cidades modernas é resultante da separação das mesmas. Não se sabe se Xul chegou a conhecer algum desses edifícios, mas Svanascini afirma que há uma fotografia de um deles em seus arquivos (SVANASCINI, 2002. p. 33).


No pós Primeira Guerra, quando Xul se encontrava na Itália, pintou uma série de edifícios, com ressonâncias neo-góticas, alguns deles intitulados Catedral, aludindo a seu caráter religioso. São edifícios, com arcos e filigranas nas fachadas, rodeadas por símbolos oriundos de antigas religiões orientais, capitéis e elementos decorativos. As formas irregulares e planas são revestidas de cores escuras, as quais atribuem às representações aspectos sombrios e obscuros. Conforme os estudos mais consistentes da obra de Xul Solar desse período, por trás das fachadas decorativas, elas parecem visualizar a intenção de Xul em materializar a Volksbauen (edifícios para o povo), onde

as massas poderiam congregar-se para lavrar um novo mundo; parecem realizar o preceito de Adolf Behne, que disse, em 1919: "A missão da arquitetura deve servir para unir todas as artes para criar a unidade do homem com o homem, do homem com a natureza, do homem com o cosmo" (GRADOWCZYK, 1994, p. 43). Como reação ao funcionalismo moderno, o Grupo Cadena de Cristal e da Bahaus, também marcados pelos ensinamentos da antroposofia de Steiner, irrigou as sensibilidades estéticas modernas, a arquitetura do Grupo Cadena de Cristal e da Bahaus, uma arquitetura cósmica, com a fusão de todas as artes, ia muito além de uma apropriação do espaço terreno. Bruno Taut, líder da Cadena de Cristal, acreditava que a arquitetura poderia integrar elementos espirituais e terrenos, a partir de projetos direcionados à coletividade e à elevação espiritual do homem. O templo era o próprio umbral do paraíso e a questão do sobrenatural se manifestava em todos os sentidos, sendo a catedral gótica concebida, inclusive, como a própria representação da Jerusalém Celeste. Jerusalém do Apocalipse, mas também Templo de Salomão – a Jerusalém terrena – e do Templo de Ezequiel, sendo os três considerados, então, como uma descrição do mundo vindouro.6

Além da antroposofia de Steiner, Xul Solar foi adepto da teosofia de Helena Bravatsky.7 O artista trouxe para Argentina, quando de seu retorno em 1924, vários livros da mestra. Em 1940, traduziu do inglês para o espanhol, A voz do silêncio. Blavatsky advogou a evolução espiritual do homem, em direção à sabedoria divina, cuja realização total descreve como liberação e iluminação (BLAVATSKY, 1993. p. 84). Desde 1929, Xul foi instrutor da Loja Keppler, uma das seis lojas da Ordem Rosa Cruz da Argentina. Em 1939, Xul criou em sua casa o Pan Klub, lugar aonde reunia as pessoas que tivessem as mesmas inquietações astrológicas e teosóficas. Entre elas, encontrava-se o místico Santiago Bovísio, da Rosa de Fogo. Nessa década de 1940, Xul dita conferências sobre astrologia. Leciona o Curso teórico práctico de Astrosophia na sede de Buenos Aires de GIDEE (Grupos Independientes de Estudios Esotéricos), pertencente à Ordem Martinista. A ativa participação de Xul nessa ordem, com o nome de Hermano Nulo, o leva a ascender dentro da sua estrutura. O propósito do Martinismo era transmitir ensinamentos espirituais para se alcançar o Ser Superior Desconhecido (TEDIN, 2005, p. 157).

O artista plástico

Xul, iconograficamente, utilizou o repertório peculiar de seu mundo atemporal, universal e visionário: números, palavras, signos, flechas, serpentes, dragões, pássaros, anjos, sol, lua, estrelas, ovos, bandeiras, montes, escadas, deuses pré-colombianos, figuras egípcias, figuras humanas abstratas ou estilizadas, ruínas, árvores, símbolos de seu próprio cunho e outros pertencentes à tradição filosófica e religiosa (China e Índia, cabalística, tarô, alquimia, zodíaco, cruz gamada budista, estrela de David, e demais símbolos cristãos). Os elementos são recorrentes; variam as composições e as concepções formais, de suas aquarelas e têmperas de pequeno tamanho. Mais do que o aspecto visual, Xul primava por uma forma expressiva que comunicasse suas mensagens espirituais. As formas puras e os símbolos são recorrentes porque ele tem em vista ordenar-se com o cosmo, compreender os valores espirituais, encontrar a unidade perdida com a modernidade. Xul criou uma obra pictórica exotérica, refratária ao racional. Fundou suas soluções plásticas essencialmente na cor, na transparência, nos espaços imaginários e ritmos estruturais.

Vários críticos associam a pintura de Xul à concepção mística de Blake e aos desdobramentos espirituais das vanguardas expressionistas, especialmente alemã. A monografia Xul Solar, explorador dos arcanos, publicada em 1967 na coleção Argentina em el Arte, do crítico Aldo Pelegrini, consagrou o místico, astrólogo, visionário, como artista plástico.


...é preciso admitir que a maioria dos que o rodeavam não o conheciam bem; por todos foi considerado um excêntrico amável. Sua pintura, ainda que tenha recebido boas críticas, nunca chegou a interessar profundamente seus contemporâneos. Ele estava fora de qualquer classificação. [...] É na pintura que Xul Solar encontra melhores possibilidades de comunicação, permitindo-lhe expressar de maneira mais direta e intensa o mundo que ele vê. Esse mundo está povoado de seres espirituais. A missão do pintor é ver o invisível (afirmação que Klee já havia feito). Dessa maneira, o artista ultrapassa a função de simples criador de beleza para convencer-se em visionário. O visionário estando acima do artista, portanto não podendo ser avaliado segundo as normas usuais que estimam a construção de um artista. (PELLEGRINI, 1992, p. 235)

O catálogo Klee invita Xul mostra a conexão entre Xul e Klee como duas "almas-gêmeas". Na linha de Klee, para quem "a arte é uma parábola da criação" (KLEE, 2001, p.49), percebe-se em Xul Solar, ao longo de sua obra, o desejo de que a

arte plasmasse novos mundos. A arte não era só uma criação pictórica, mas um meio de o artista manter-se em contato com o desconhecido (infinito) a partir do conhecido (finito). Nos trabalhos de Klee se repetem alguns elementos gráficos, entre outros, flechas, números e palavras. Com isso, ele se propunha simbolizar o mais profundo conhecimento do Universo, falando do espaço e do tempo, de suas forças de gravidade, de suas forças centrípetas e centrífugas, da criação e da destruição do ser, do indivíduo e do cosmo. Em Xul, os símbolos são ainda mais diversos e mais constantes e ainda assumem o conteúdo hermético de suas referências ocultistas. Xul era um artista visionário no sentido literal da palavra, pois muitas de suas pinturas, incluindo suas arquiteturas e paisagens, são expressões plásticas de suas visões místicas, das quais falaremos adiante. Embora suas pinturas tratassem de temas diferentes, muitas são descrições plásticas de suas visões místicas e várias eram retratos de seus mestres espirituais: Moises, Jesus Cristo, a virgem Maria, São Paulo, Santo Inácio de Loiola, rei Wen, Lao Tsé, Swaami Ramakirisna, Aleister Crowley, Rudolf Steiner e sua esposa Lita, além da pintura de anjos.


Como artista plástico, Xul Solar experimentou várias das linguagens das vanguardas, mas foi no expressionismo e nos artistas influenciados pelo revival de misticismo religioso (Klee, Malevich, Mondrian e Kandinsky) que Xul encontrou seu meio pictórico. Em Do espiritual na arte de Kandinsky, Xul encontrara uma referência concreta e duradoura. Para Kandinsky, o artista era um visionário, que vê e ensina. E representa a vida espiritual num triângulo agudo dividido em três partes desiguais.

A menor e mais aguda delas aponta para cima; à medida que desce, cada parte vai aumentando e alargando. Em cima, há muitas vezes só um homem. O gozo de sua contemplação é igualável a sua desmedida tristeza interior. Os que se encontram perto dele não o entendem, e com indignação, o acusam de louco ou impostor. Seria este o artista visionário que carrega o fardo da humanidade, que gostaria de abandoná-lo, mas não pode, pois tinha a missão de despertar a Europa, de dar-lhe esperança e novos rumos, depois de seu longo período materialista, de falta de fé, de meta e de sentido. "A alma que desperta se acha ainda sob a impressão desse pesadelo". (KANDINSKY, 2008, p. 21-22)

Da relação com o pensamento de Steiner, percebe-se o interesse pela teoria da cores. Steiner tinha se especializado na obra científica e filosófica de Goethe, especialmente na Teoria das Cores (1810), onde interrelaciona a gama cromática com a

simbologia religiosa.8 Para Kandinsky, a riqueza cromática do quadro deve atrair o espectador e ao mesmo tempo esconder um conteúdo profundo (KANDINSKY, 2008, p. 7). Além da antroposofia de Steiner, Kandinsky também assimilou a Teosofia pregada por Madame Blavatsky. O artista dizia que a teosofia era um dos mais importantes movimentos espirituais do momento, pois só os homens dotados de espiritualidade teriam olhos para saber ver o que a ciência não podia explicar (KANDINSKY, 2008, p. 34). "Teosofia significa verdade eterna" – diz ele.

O novo emissário da verdade achará a Humanidade preparada para receber sua mensagem graças à sociedade teosófica: encontrará uma forma de expressão com o que vestir as novas verdades, uma organização que em certo sentido espera sua chegada para fazer desaparecer os obstáculos materiais e as dificuldades de seu caminho. (KANDINSKY, 2008, p. 37).

Os San Signos


Xul fue pintor de sus visiones. La gente admite visionarios de otras latitudes y otras épocas, pero si están muy cerca, los niega. El hombre que vio las maravillas atroces que el Apocalipsis ha registrado recibe nuestra veneración; un visionario contemporáneo como Xul es, a priori, absurdo.

Jorge Luis Borges (1963)

 
O encontro com Aleister Crowley deu-se em 1924, em Paris,9 às vésperas do retorno de Xul para Argentina. Na ocasião, Xul fez um juramento em frente ao mago no qual disse "solemnly pledge myself to the great work which is to discovery my true will and do it". Com isso queria dizer que o tempo transcorrido desde sua iniciação ao misticismo havia sido de trabalho permanente na busca do que ele era. Os encontros prolongaram-se por várias semanas e se equivaleram a uma Iniciação. Xul recebera instruções para "ter visões", a partir de técnicas de ordem hermética, tais como a auto-hipnose por meio de símbolos, que podiam variar, porém os mais freqüentes eram as cartas de tarô ou os hexagramas do I Ching: Libro de las mutaciones. Ao final de cada

 
visão devia registrar o que havia visto e o que sentira. Este é o ponto de partida para seus San Signos, também chamado El Libro del Cielo, resultado de um largo processo de reescrita, tradução e organização a partir de cadernos escolares no quais Xul registrava suas visões (ARTUNDO, 2005, p.27).

Em um de seus cadernos está registrado, "cuidadosamente", o método aconselhado pelo mestre:

Redescubrir el I Ching describiendo cada hexagrama por medio de la visión pura. Hacer 64 dibujos simbólicos de prosa breve o descripciones poéticas pero con la más cuidadosa atención a un método uniforme de presentación. No dejar que nada me detenga. Puede ser útil invocar 2 fuerzas en cada hexagrama como un comienzo para la visión. En el caso que falla la visión con algún hexagrama, seguir con la próxima en la siguiente fecha. Y superar obstáculos después de completar la serie. (ANAYA, 1999, p. 49-50)

Deste exercício surgiu a série de 64 visões místicas. Daniel B. Nelson, que se dedica a traduzir os San Signos, do neocriollo para o espanhol, com previsão de publicação em dezembro de 2011, explica que todas as visões seguiam o mesmo esquema: uma preparação para entrar em contato com as visões; meditação, aonde o corpo vai entrando em um estado de transe, deixando seu estado físico e se elevando a um plano astral; o encontro com seres etéreos (deuses, anjos, demônios, gênios e gurus com seus discípulos); a viagem nas alturas, até conseguir uma iluminação espiritual para explorar outros planos da existência que Xul denominou Bría, o mundo das almas. Xul comunicava-se então com estes seres etéreos e ele mesmo se transformava em mais um. Enfim, as visões seguiam o mesmo plano estrutural: meditação, transe, ascensão a vários níveis, epifania, iluminação, êxtase, rápida descida, reinserção no mundo terrestre e re-entrada no corpo físico. Daniel Nelson considera que Xul, ao descrever suas visões, elaborara uma forma literária que se assemelha em gênero à "visiones místicas de San Juan de la Cruz o Santa Teresa de Jesús".10 O conjunto das visões forma uma vasta narração épica em forma de poemas em prosa com paisagens e seres em estado de beatitude ou horripilantes figuras, cenários comparáveis aos celestiais ou infernais da Divina Comédia de Dante.

Sob o título Apuntes de neocriollo, Xul deu a conhecer uma de suas visões místicas, datada de 11 de setembro de 1925, publicada em neocriollo, acompanhada de

uma glosa.

Otra vez vi de nuevo junto con aquella procesión de ángeles, en otro cielo superior azur, justo sobre el templo rojo de antes, de manera vertical a la tierra, otro templo altísimo, de columnas u múltiples pisos, verdín y azul; forman su base muchos estratos de nubes, sobre el techo, que son múltiples techos de nubes, y hasta lejos alrededor hay bosques y jardines de pequeñas frondas. Está relacionado con el templo de antes, divinamente erótico, y las almas de antes pasan luego por aquí, y muchas se incluyen en los pilares y muros, rezando continuamente, como en gelatina. Y sobre este cielo superior azur hay otro añil, y sobre éste otro donde no vi nada, sólo preví redes de rayos jaldados.

De repente me hallé otra vez en el mundo, amando a lo divino, como en una nube de fuego, continuamente. (XUL SOLAR, 2005, p. 176-181)

Sob o título Poema, Xul publicou outra visão, em abril de 1931 em Paris na Imán, único número dessa revista e que reuniu entre seus colaboradores Alejo Carpentier, Jaime Torres Bodet, Miguel Ángel Asturias e Franz Kafka (ARTUNDO, 2005, p. 31-32).

Es un Hades fluido, casi vapor, sin cielo, sin suelo, de color bermejo, como el color que se ve con los ojos cerrados debajo del sol, agitado por una tempestad interior, en vértices y ondas y hervor. En sus grumos y espumas distintas multitudes de hombres flotan pasivamente y destellan de distintas maneras, hay también seres solos, más grandes, en forma de peces, y emiten luz continua y suavemente.

A través de todo esto, apenas se pueden ver fantasmalmente las casas y la gente y el suelo de una sólida ciudad terrestre sin ninguna relación con este Hades que es ahora lo real.

Toda esta densa región bermeja se amontona alrededor de un gran hueco o valle sin fondo, de aire azul grisáceo, donde floto en vientos oscuros, con una polvareda de gente, y otros hombres solos en forma de aves y globos. Aquí se flota más para arriba. Y abajo sigue fantasmalmente la ciudad sólida y su población. […] (XUL SOLAR, 2005, p. 172-76)

A Visión sobre el trilíneo publicada, em 1936, na Destiempo, revista dirigida por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, encerra seu ciclo de publicação de suas visões, ainda em vida.

[…] desnudo y tan diáfano como el hielo empiezo a moverme adelante, el signo, grande delante de mí, está claro en la sombra infernal; lo trepo escalando, entonces encima se le forma otro signo igual que también trepo, y hago lo mismo otro vez, y así muchas veces hasta que canso, ya muy alto.

Me acuesto en el último trigrama como en un tapiz, y floto con él. otro

tal trigrama se me acerca y lo subo observando, y un poco después otro lo mismo una vez más, etc., en la misma sombra nublada gris y negra. (XUL SOLAR, 2005, p. 181-184)

Ao longo de sua vida, Xul tratou de criar uma comunidade de falantes do neocriollo e leitores dos San Signos, especialmente com a criação do Pan Klub em 1939, mas postergou a publicação das suas visões, alegando que o mundo não estava pronto para sua difusão. É possível, diz Samuel E. Nelson, que a postergação fosse por conta do constante trabalho de revisão. Xul acreditava que num futuro indefinido não poderia encerrar definitivamente os San Signos em um texto publicado.

Paisagens místicas

Xul me dijo que él era un pintor realista, (...) en el sentido en de que lo que él pintaba no era una combinación arbitraria de formas o de líneas, era lo que él había visto en sus visiones. Xul me explicó que los visionarios ven – digamos – las formas del bien, las formas del mal, hablan con las divinidades que rigen al mundo, Xul creía en las muchas divinidades, no creía que la idea de un solo dios, el concepto del monoteísmo, fuera una ventaja; pero creía también que el visionario da ciertas formas a esas mismas fuerzas y a esas divinidades; por eso, un místico cristiano, un místico budista y un místico musulmán pueden ser igualmente sinceros; los tres oyen las mismas cosas, pero les dan su propia forma, así acontece en los sueños.

Jorge Luis Borges (1968)

Así es que las visiones de los San Signos y la producción del pintor, poeta pueden funcionar en la mente del lector, espectador como dos espejos enfrentados que casi de manera borgeana se reflejan mutuamente en una cascada de imágenes que llega hasta el infinito.

Daniel E. Nelson (1990, p. 51)

Muitas das pinturas de Xul Solar, não se tratam de meros devaneios, são produtos de suas visões místicas. Tradudor dos San Signos ou El Libro del Cielo, Nelson Daniel, professor da Universidade de Texas, considera que os seres presentes nos quadros Dos mestizos de avión y gente, Quatro mestizos de avión y ciudad, Bichos, Sierpes e pájaros, Bichos y plantas, todos de 1935, e Gente kin vuelras, de 1936, correspondem a seres que aparecem nas visões do artista. Igualmente, o crítico interpreta as paisagens místicas de Xul, como mais uma etapa no processo de tradução de suas visões.

Um exemplo desta correspondência, diz Samuel Nelson, percebe-se entre o texto que descreve a visão 4 e a cena da aquarela Paisaje celestial de 1933. No primeiro plano há uma serpente com cara humana semelhante à serpente voadora, também com cara humana, que Xul Solar chama "tirru girrhu". Este ser celestial rasteja-se na direção

do viajante "çircunmánindo brun` aurafosfumi" [emanando ao redor uma áurea escura fosforescente fumegante]. Segundo Xul, "su vocación es ‘glos’ véstiga [ser vestigio de un lenguaje]. "La serpiente lo lleva volando a su casa, una nube oscura llena de espirales serpentinas y de unas cosas como santas tabletas fluidas o ladrillos flotando allí entre sí", que o místico descreve como resumos dos vestígios da linguagem da serpente, os quais se assemelham à torres flutuantes construídas de forma retangular que se recortam com o céu negro da aquarela. (NELSON, 1990, p. 51)

Conforme Nelson, uma mesma visão poderia estar descrita em várias aquarelas e não somente em uma, como é o caso de Poema, que descreve uma paisagem urbana, comparável à aquarela Paisaje celestial, mas também a muitas outras aquarelas de temas similares que se organizam ao redor do conteúdo das visões místicas dos San Signos:

En otra parte hay un ancho obelisco o torre, se bambolea por su base flotante y floja. Su primer piso es de libros de piedra, encima hay libros de barro, encima libros de madera, encima libros de rollos y en la encima libros comunes. Es casi como una torre de naipes, erizada de cinta de papel y banderolas, con enjambres de letras volando alrededor como moscas, rodeada de seres al lado que son quizás gente humana que vaga estudiosamente. En el poco suelo flotante que hay, muchos sueñan allí sumergidos

A série de paisagens místicas da década de 1930 - Paisage celestial, Man Sierpe bau y lunas, Soto com trio, Noche, País duro em noche clara, Bri País – Genti, País, Palácio almi, Boske y yogui, Um yogui, Rey, Palacios en Bria, Paisaje, Visión en fin del camino, representam "lugares imaginários", etéreos, flutuantes, transparentes, em cores claras, com predominância do amarelo que projeta luminosidade sobre a cena preparada para estado de reflexão, em meio a pilares retangulares montados de forma a produzir imagens de palácios irreais. Símbolos como bandeiras, sóis, luas e estrelas preenchem a cena ou espreitas figuras humanas solitárias em posição de profunda meditação que habitam estes lugares fantasmáticos. A mitológica serpente tem presença constante, a qual pode ser uma referência à filosofia ocultista de Crowley, a incorporar um sentido absoluto de renovação, de busca do novo e do conhecimento.11

Poema também nos leva a uma cidade em construção que se assemelha muito a

aquarela Palacios en Bría de 1932, o que permite comparar o texto com a imagem e mergulhar plenamente no universo plástico/literário de Xul Solar:


Voy flotando allá lejos. En el fondo, veo una ciudad en una niebla de muchos colores cambiantes .Sus palacios orgánicos y chozas biológicas son de armazón y pensamiento. Se transforman continuamente, se agradan o se achican; ya son de postes y cimbras y cúpulas, ya de muros lisos de parches fosforescentes, ya pululan en cúmulos orgánicos, ya temblequean como andamios hechos de un material como vidrio. Se mudan, suben, se hunden, se interpenetran, se separan, y repten lo mismo.

E na parte superior do quadro, num céu noturno, se vê na aquarela exatamente o que se você na liturgia literal do Poema: "Estrellas, sólcitos, lunas, lúnulas, luciérnagas, linternas, luces, lustres; doquier se vindieredan a la ciudá se constelan i disconstelan, se qemam, se apagan, cholucen, llueven, vuelan" [Estrellas, soles pequeños, lunas, lúnulas, luciérnagas, linternas; luces; dondequiera que se enreden en la vista de la ciudad, forman y deshacen constelaciones, se queman, se apagan, lucen de golpe, llueven, vuelan.] (NELSON, 1990, p. 51). Como já vimos acima, "Bría" designa o "mundo das almas" ou o plano da iluminação espiritual.

Em 1936, Xul Solar pinta a aquarela Vuel Villa, imagem de uma cidade que "anda contenta por el aire", levando-nos a imaginar a utópica cidade celestial, na tradição da imagem da Nova Jerusalém. Posteriormente, o artista escreve um plano para uma Vuelvilla, defende o projeto em termos dos objetivos e das vantagens econômicas, enumerando suas funções, detalha os mecanismos tecnológicos que a moveria e a sustentaria no ar, especifica os tipos de materiais e combustíveis mais apropriados pela leveza e pelo custo, mostra a relação que estabeleceria com a terra.12 Embora, o que se apresenta com maior detalhamento seja a sua imaginação tecnológica, ligada às utopias técnicas do final do século XIX e XX, que sonharam em alçar o homem na conquista do espaço aéreo, Xul refere- se em uma passagem da Vuelvilla à nova Jerusalém, citando o Apocalipse. "Bajar del cenit, como dice el Apocalipsis, cap. XXI, 2 : "Y yo, Juan, vi la santa ciudad, la Jerusalén nueva, que descendía del cielo, de Dios, ataviada como novia para su marido" (XUL SOLAR, 2005, p. 188).

A imagem da Nova Jerusalém Celeste foi sempre muito presente desde a Idade Média, entre pregadores, poetas e arquitetos que buscavam evocar metaforicamente a comunidade religiosa ou projetar cidades ideais. Como vimos acima, os míticos Swedenborg e William Blake tiveram visões da nova cidade santa e Paul Klee pintara, em 1914, um quadro com o título Jerusalém, minha glória suprem. Segundo Elémire Zolla, "la ciudad ideal, metáfora del alma del sabio y del cosmos entero, é Jerusalén, que significa ‘visión de paz’". Para este autor, é fácil deduzir-se as consequências habituais: "si los tres términos - ciudad, cosmos y alma santificada - son análogos, cada una de sus partes podrá superponerse a la correspondiente de cada una de las otras, cada manzana de casas deberá ser una facultad del alma, un estrato del universo." De fato, continua Zolla, a perfeição de Jerusalén como cidade santa está prevista por Ezequiel como utopia messiânica "al final de su visión, construida según una división zodiacal, por docenarios". (ZOLLA, 2003, p. 192).

Entre 1943 e 1944, Xul pinta uma série de paisagens místicas de aspectos sombrios. Talvez sejam visões motivadas pela situação européia. A guerra avivara ainda mais a espiritualidade do artista, que traduz sua inquietude em termos de profundo ascetismo da imagem e de mensagens éticas e religiosas. Nos quadros desta fase, Xul renuncia as efusões cromáticas, limitando sua paleta ao branco, ao negro e ao ocre. A idéia central dessas pinturas na têmpora é o drama da ascensão e da queda do homem, a luta eterna e sucessiva entre as forças de luz e sombra, de violência e paz, de amor e ódio, de vida e morte. Daí, a presença constante da escada, símbolo geral de elevação e queda. Segundo Gradowczyk, "sólo Piranesi había logrado un impacto visual tan dramático utilizando el simbolismo de la escalera" (GRADOWCZYK, 1994, p. 174). Nas obras, aquarelas ou têmperas, Fiordo, Valle hondo e Bordes de San Monte, Muros e escaleras, Ciudá y abismos, Cavernas y troncos, configuram-se montanhas, serras, vales, abismos, torres, infindáveis desfiladeiros, rampas e escadas, muros, biombos, portinholas incrustadas em rochas. São locais insólitos, talvez, lugares de meditação, ou de lamentação, que remetem a imagens extraterrenas, habitados por algumas poucas figuras humanas incomuns, supostos peregrinos que buscam a elevação espiritual.

Em 1949, Xul pinta Rua Ruini, no qual nos mostra em, primeiro plano, várias ruínas com símbolos em suas paredes; há forcas penduradas e pessoas mortas no chão. Entre os símbolos nas paredes temos a estrela de Davi, que é um dos principais símbolos do misticismo judeu e do estado de Israel. Os triângulos podem representar o

entrelaçamento do sol que representa fogo e energia masculina com a lua que representa água e energia feminina (BRUCE-MITFORD, 2001, p.16).

Podemos também observar dois símbolos cristãos: em uma das paredes há uma cruz simples e em outra uma cruz russa. A cruz simples pode ter dois significados. Um deles é que Jesus morreu, mas se reergueu e triunfou sobre a morte. Outro significado é da união dos opostos com os quatro lados iguais. Em outra parede observamos uma suástica, que na Índia representa símbolo de boa sorte e bem estar. Este símbolo emblema de Wishnu, é anterior ao hinduísmo e se liga ao sol e à roda do nascimento e do renascimento (BRUCE-MITFORD, 2001, p.21). Mas também Xul pode tê-la usado como símbolo do nazismo. Também vemos nesse quadro uma estrela de cinco pontas, que é considerado o símbolo do mal, na posição em que está, com as duas pontas para cima. Invertida, representaria luz e espiritualidade (BRUCE-MITFORD, 2001, p.78). Por fim, outro símbolo que há no quadro é o da foice e o martelo, que simboliza tempo e morte, mas também usado como emblema da União Soviética. Ou seja, a fatura de Rua Ruini compõe um cenário que facilmente nos remete à situação de destruição causada pela Guerra.

Xul também reproduz em miniaturas um conjunto de altares, um lugar onde o sagrado se condensa com maior intensidade. O altar geralmente estava relacionado diretamente aos sacrifícios. A própria palavra hebraica para "altar", mizbeah, significava exatamente isso: "lugar onde se sacrifica". Mas pode ter também o sentido de monumento, lembrando alguma extraordinária experiência sobrenatural, uma especial e inesquecível experiência de Deus. Sobre o altar, e pelo altar, Deus entrava em contato com o seu povo. É este lugar espiritual que alude a uma espiritualização progressiva do universo. O altar cristão olha para o Leste, a Terra Santa, lugar da ressurreição de Cristo. Na celebração da missa, é a mesa sagrada o lugar da consagração do sacramento da Eucaristia.


Epílogo

A vida de Xul Solar, todas as suas atividades e inquirições, sua poética, suas obras pictóricas, suas invenções, suas cartas de tarô e seus mapas astrais, só podem ser compreendidos dentro de seu mundo espiritual. A transformação de imagem em símbolo que aparece nos seus quadros e a busca de uma língua perfeita faziam parte de suas experimentações de comunicabilidade, de seu processo individual de "sacralização lingüística" (LINDSTROM, 1988, p. 116). Hoje, a referência ao Museu Xul Solar, em

Buenos Aires, vem quase sempre acompanhada de outra, la calle Laprida, 1212. Endereço gravado na memória da cidade, uma construção do século XIX, um edifício de quatro apartamentos, três dos quais o artista alugava como fonte de sobrevivência e um lhe servia de habitação, atelier, biblioteca e Pan-Klub, espaço de reuniões culturais. Apesar da intervenção moderna no interior do edifício, para transformá-lo na Fundação Pan Klub, formando uma espécie de paradoxo entre o concreto aparente e o velho material do antigo sobrado, o espaço pretende, entre exposição da obra e arquivo do artista, manter a memória da casa de Xul Solar, recompondo a atmosfera mística, com sobreposições de formas, de espaços vazios e cheios, passagens e escadas, entre vigas, pilares e arcos. A luz e a música intimistas completam a atmosfera de feição introspectiva.

Mas, que não se pense que tudo foi resultado de suas visões em estado de transe. Borges observou que falar de Xul místico "puede ser uma mala estrategia", escondendo ou minimizando a sua inteligência, um dos homens mais inteligentes que havia conhecido. Ou, como observou Aldo Pellegrini, Xul é ele próprio um espaço mental, ou melhor, um espaço de imaginário. Uma mente que não podia conceber que para o homem estivesse cerrada a possibilidade de salvação. Em Xul Solar, intuição, inspiração e meditação se unem. Sua arte não é uma transcrição e sim uma realização, uma aventura que através de métodos, situações e de sua distinta personalidade tem uma relação com a busca dos alquimistas. A dualidade humana desaparece. Na verdade, ele possuiu várias personalidades, através das quais atuou em distintas atividades, de maneira similar a Fernando Pessoa, com seus heterônimos. Mas, em sentido absoluto, Xul queria manifestar a essencial unidade da existência, tanto no plano corporal quanto na espiritual. Para Xul, não existem contradições ou realidades opostas. Existe uma zona em que tudo se harmoniza e sua obra plástica é um caminho para acender a essa harmonização.

Xul se projetara em vida como o "novo homem" que a vanguarda na linha do "espiritual da arte" anunciou, eivada pelos ensinamentos da Antroposofia de Rudolf Steiner que pregou a existência de "um homem total", capaz de integrar os diversos campos do conhecimento, fundir todas as artes, e a arte com a ciência, numa rejeição à pura racionalidade moderna. Xul experimentava ou exercitava esse "novo homem" no Pan Klub, com seus convivas, através da língua que falava e escrevia, das grafias ou pensi-formas com as quais escrevera seus aforismos, da nova música que tocava, do jogo que jogava para aprimorar o espírito, da pintura que fazia para dar a ver os

mistérios da vida. A simbologia de suas paisagens místicas alude à elevação espiritual do homem. A pintura era cuidada para responder à motivações profundas, explicar ou expressar algo que está muito acima de suas preocupações puramente estéticas. Certa atmosfera estática que se percebe em alguns de seus quadros alude a uma forma de contemplação e meditação. Como colorista, aproxima-se de Klee para quem a arte devia tornar visível o invisível. A fatura de seus quadros, composta essencialmente na cor, nas transparências, nos espaços imaginários e nos ritmos estruturais, não são representações, mas realizações de um pensamento que quer comunicar-se de forma pictórica. Como adverte Aldo Pellegrini, em toda a sua criação havia a intenção de assombrar-se e divertir-se, assim como assombrar e divertir aos outros. Xul era também cheio de humor.

O conhecimento da temática espiritualista já se percebe nos motivos esotéricos e na imaginária simbolista das pinturas de tom Art Nouveau de 1915. Na arquitetura pictórica que realizou em 1918, em Milão, é notável a coincidência com o expressionismo espiritualizado da arquitetura utópica de Bruno Taut, um arquiteto ligado às teorias da Sociedade Teológica Alemã de Rudolf Steiner. Suas inúmeras paisagens, da década de 1930 e 1940, aonde aparecem montanhas com desfiladeiros de difícil acesso ao topo, representam seu momento de maior dedicação aos exercícios místicos, dentro do processo de tradução visual do I Ching, a partir de técnicas iniciáticas que aprendera com Crowley. As Grafías ou Pensi-formas dos últimos anos de sua vida representam seus exercícios de transmissão de aforismos, de mensagens espirituais, por meio dos sistemas de linguagem pictórica que inventou. 13

Através dos gestos, luzes, formas, linhas e cores que se materializam como partitura musical, na composição iconográfica de vários de seus quadros, percebe-se a aproximação de Xul a Kandinky e Klee, que também trabalharam a relação entre cor e som, ao sentirem a melodia interior de todo o existente.14 Os três conceberam o mistério da música similar ao que escreveu Thomas Mann, sob o título A missão da música no mundo moderno, para quem, a música, de natureza sensual-espiritual, que se realiza entre a regra estrita e o sonho, a razão e a emoção, o dia e a noite, é o mais inquietante dos fenômenos aos olhos dos filósofos. O mundo é música e, inversamente, a música é o reflexo do mundo, de um cosmos semeado de forças demoníacas e divinas. "E os

sacerdotes e mestres da música são os iniciados, os preceptores desse ser duplo, a totalidade demoníaco-divina do mundo. É a esperança de uma humanidade que, ao invés de reprimir e portanto exasperar o irracional, aceita francamente, venera e portanto santifica essas forças demoníacas e coloca-as ao serviço da cultura".15

Xul Solar, na sua obsessão por estabelecer correspondências entre todos os saberes e entre todas as coisas do universo, no seu desejo de desenvolver práticas comunicativas, na sua atividade "profissional" de astrólogo, enfim, nas suas indagações constantes, estabelecera relação intelectual e íntima com a cabala e os escritos dos místicos judeus e cristãos, com o pensamento da antroposofia de Rudolf Steiner e com a teosofia de Helena P. Blavatsky, com explicações mítico-mágicas da cosmologia das populações indígenas pré-colombianas, com a tradição islâmica da qual recolheu representações caligráficas em forma circular, enfim, com elementos os mais díspares aparentemente, para integrá-los ao seu próprio sistema utópico de reforma universal, o qual nunca estava acabado, sempre aberto a novas invenções e incorporações. Ao longo de quase cinqüenta anos através de buscas, estudo e trabalho contínuo sobre a espiritualidade, Xul queria passar a mensagem de que todas as religiões têm a mesma importância e desta maneira todas podiam conviver sem conflitos. Xul se definiu como "catrólico", ou seja, católico astrólogo. Mas seu catrolicismo é, na verdade, uma uma conjunção de religiões ou, pelo menos, de aspectos parciais do cristianismo, judaísmo, budismo, bramanismo, nos quais encontrava meios para acessar a sabedoria que buscava.



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