domingo, 1 de dezembro de 2013

O nome dele era David Goodis

 
 
David Goodis (1917-1967) queria ser um dos grandes da literatura norte-americana. Acabou se tornando um dos grandes da literatura policial norte-americana. O motivo é simples: precisava comer. Não podia se dar o luxo de ser artístico sem dinheiro no bolso e, consequentemente, com a barriga vazia. Nascido na Filadélfia, fez de sua terra natal o palco pestilento e cruel a abrigar vidas infelizes, vencidas e desencantadas. Melancolia, apatia, desespero, solidão e violência são os únicos sentimentos que elas entendem e cultuam. Seu realismo, repleto de brutalidade, não comporta esperança nem finais felizes e, para retratá-lo com fidelidade, Goodis emprega uma linguagem ao mesmo tempo áspera e poética, densa e árida, com frases curtas e estranhas imagens, como a lua, bela e limpa, refletida na poça de uma sarjeta infecta. Entre os muitos romances que escreveu se destacam: Dark passage (1946), Beleza mortal (1947), A garota de Cassidy (1951), O ladrão (1953), Sexta-feira negra (1954), A lua na sarjeta (1954) e Atire no pianista (1956).
 
 
 
 
Também escreveu muitos contos, publicados geralmente em revistas de ficção policial e terror do gênero pulp. Morreu prematuramente, em consequência dos golpes sofridos numa briga de rua e sem se levar a sério como escritor: "No início, queria escrever de modo solene e só abordar os grandes problemas, mas logo compreendi que o problema mais importante era comer, então me conformei em escrever o que os editores queriam". Foram feitos vários filmes baseados em seus livros, entre os quais duas ótimas produções francesas: O tiro no pianista (1960), de Truffaut, e A lua na sarjeta (1983), de Jean-Jacques Benieix. Devem-se a estes filmes, e aos demais inspirados em sua obra, muito do respeito que Goodis alcançou postumamente e sua gradativa redescoberta, que o alinhou ao lado dos escritores encabeçados por Dashiell Hammett, Raymond Chandler e James M. Cain. Foi também, por muitos anos, roteirista de Hollywood

 
 
       (La lune dans le caniveau, 1983), dirigido por Jean-Jacques Beineix,
com Gerard Depardieu no papel de Kerrigan ...
 
 
e Nastassja Kinski no de Loretta.
 
 
 
Dos autores norte-americanos que mudaram o gênero policial na primeira metade do século XX, talvez David Goodis (1917-1967) seja aquele que teve a aceitação mais discreta no Brasil, com a publicação recorrente de apenas quatro dos dezenove romances que escreveu. Bem ou mal, desde a década de 1980, saem por aqui: A lua na sarjeta (editoras Abril, Brasiliense e L&PM), Atire no pianista (Abril e Brasiliense), A garota de Cassidy (L&PM) e Sexta-feira negra (L&PM). São estes, aliás, os únicos títulos em catálogo no momento, todos pela Coleção L&PM Pocket, da editora gaúcha.

 

Possivelmente nos anos 1960 ou 1970, vieram a público também entre nós, pela chancela da antiga editora Tecnoprint, alguns outros livros do autor, como Paixão criminosa (Of tender sin), volume 6 da coleção Seleção Criminal. O ladrão, pela mesma coleção, e Fogo na carne, pela coleção Seleção Policial, aparecem nas folhas de propaganda da editora. O primeiro é, seguramente, a tradução de The burglar (1953), mas o segundo, desconfio que talvez seja somente um outro título em português que se atribuiu, na época, a The moon in the gutter (1953)


 

Estes livros da Tecnoprint (hoje Ediouro) eram muito populares naqueles anos, impressos em papel ordinário, que enferrujava e rasgava facilmente, com capa que logo se tornava quebradiça e vendidos em rodoviárias, aeroportos, bancas de revista e nas lojas da própria editora. Procurar por essas edições, depois de mais de cinquenta anos, é mesmo uma missão quase impossível, pois não eram livros que se guardassem; como os gibis, eram descartados tão logo eram lidos. Mesmo assim, recentemente achei por acaso um exemplar de Paixão criminosa em surpreendente estado de conservação, e foi através dele que descobri que Goodis vem sendo publicado no Brasil há bem mais tempo do que se supunha, que não foram os filmes Atirem no pianista, de François Truffaut, e A lua na sarjeta, de Jean-Jacques Benieix, que o projetaram entre nós.

 

 
Para o leitor que admira Goodis, conhecido pelo epíteto "poeta da violência e da solidão", há também as edições portuguesas. A Editorial Caminho, na sua coleção Caminho Policial, publicou pelo menos Atirem no pianista (Down there, 1956) e O ladrão (The burglar). E as Edições 70, Beleza mortal (Behold this woman, 1947)Como há neste momento um certo interesse do leitor brasileiro pelas obras importantes do gênero policial, que definitivamente não visa apenas ao entretenimento, à leitura rápida e descartável, esperamos que tanto a L&PM quanto outras editoras passem a traduzir mais livros de Goodis no Brasil, como tem ocorrido com seus pares Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Ross MacDonald e Cornell Woolrich, que, em edições bonitas e bem cuidadas, invadiram as livrarias.

 

 
O número 655 da Série Policial, da saudosa editora Tecnoprint Gráfica S. A., é Fogo na carne (Fire in the flesh). E confirma o que dissemos em postagem anterior: David Goodis vem sendo publicado no Brasil desde pelo menos os anos 1960, talvez meados do anos 1950. A dificuldade de encontrar estes livros está em que as edições eram de bolso, populares, em papel ordinário, à venda em rodoviárias, estações de trem, de bonde e aeroportos, bem como nas lojas da própria editora. No Rio de Janeiro, a principal loja da Tecnoprint ficava na Cinelândia, próxima à Perfumaria Carneiro. Em São Paulo, na Rua Conselheiro Crispiniano, 403, em frente ao Cinema Marrocos. Em Salvador, na esquina da Av. Sete de Setembro com a Rua Politeama de Cima. Havia ainda lojas em Belo Horizonte, Porto Alegre e Juiz de Fora, entre outras cidades. Hoje, não existem mais, a Tecnoprint transformou-se em Ediouro Publicações, que, nos últimos anos, abandonou as edições de bolso, tornou-se uma editora comum, igual a qualquer outra, sem nenhum diferencial, engolindo outras casas tradicionais, como a Nova Fronteira e a Agir. Nesta edição de Goodis, não há nenhuma menção a ano de publicação, nem aqui nem nos EUA. A editora, no entanto, esclarece que "Este romance é inteiramente novo, não tendo sido publicado ainda em português, sob nenhuma forma".



 
 E na capa está a sinopse, breve, misteriosa, com a intenção de fisgar o leitor passageiro, em trânsito: "No turbilhão das chamas, ele buscava alguma coisa que não conseguia encontrar". Algumas horas ou minutos de leitura dentro do bonde, ônibus, trem ou avião, com David Goodis e seu Fogo na carne, que começa assim:
 
 
"No beco calçado de paralelepípedos, e cheio de buracos, a moça tropeçava, ao correr, com a cabeça baixa, para enfrentar o frio cortante. Era fevereiro, em Filadélfia, a altas horas da noite, e o mercúrio descera quase a zero. A moça, porém, não estava preocupada com as condições meteorológicas; estava atenta a um som que vinha de longe. E, como o som se aproximasse, ela aumentou a rapidez da corrida. Era o som de sirenas".
 

Uma abertura bem característica do estilo do autor: alguém em apuros, na noite, sob o frio intenso, a ameaça ao longe. Estamos fisgados. A tradução é de David Jardim Júnior

 
 
François Truffaut
 


ATIREM NO PIANISTA, 1960
 
O azar que, ao longo dos 78 minutos que este filme dura, se abate sobre o protagonista, parece ter-se comunicado ao filme do pianista. Vindo após o grande êxito que coroara a primeira longa-metragem de Truffaut - Les 400 coups - , e antes do sucesso idêntico a esse - Jules et Jim, de 1961 - o opus 2 de Truffaut esteve longe de despertar favores. O filme teve uma carreira discreta, como discreto foi o acolhimento feito pela crítica. Exemplo típico o caso português: Tirez sur le pianiste foi ante-estreado duas vezes, com um intervalo de dez anos: em 1965 e em 1975, em Festivais. De nenhuma das vezes o distribuidor (que adquirira, titulara e legendara a cópia) passou da potência ao ato (ou seja, da ante-estréia à estréia) e este filme é a única longa-metragem de Truffaut inédita comercialmente entre nós (embora tantas vezes exibida em sessões especiais como esta e tantas vezes mostrada em reprodução televisiva).

O que pode ter contribuído para este relativo “desfavor” de um filme tão importante? Em primeiro lugar, ele veio contrariar a imagem que se formara do realizador após o “confessionalismo” de Les 400 coups. Sem, de forma alguma, se pretender diminuir esse notável ponto de partida da carreira de Truffaut, pode-se dizer que essa era uma obra que se prestava a ser apreciada por maus motivos: a lágrima fácil que as histórias dos enfants sauvages sempre despertam, a inserção numa tradição do filme francês (em que se viu Vigo revisitado e domesticado), o citado “confessionalismo” (ou se se preferir autobiografismo), a novidade duma abordagem “à flor da pele”, etc.

Tirez sur le pianiste, aparentemente, nada disto tinha. O argumento do filme era um romance policial do legendário escritor norte-americano David Goodis e Truffaut transpôs o décor do livro (o bairro louche de Skid Row, em Filadélfia) para uma Paris só genericamente reconhecível, sem nada do ambiente típico que tanto se insinua na maior parte dos filmes franceses, inclusive nos da Nouvelle Vague (pense-se no quase contemporâneo À bout de souffle, de Godard).

Por outro lado, a narração saltava freqüentemente de um plano a outro (realismo a irrealismo), “desnorteando” quem nela procurasse um fio lógico. Muito se comentou (e denegriu) o flashback (a história de Édouard e Thérésa) que, disse-se, parecia vir dum outro filme. Mas esses “saltos” estão presentes ao longo de toda a obra. Para além das seqüências finais (na casa dos três irmãos) a que adiante me referirei, pense-se, a título de exemplo, no início do filme: um longo travelling que segue um personagem (Chico) fugindo aos seus perseguidores, no estilo dos “filmes negros” americanos (estilo anunciado no genérico, com as cordas do piano). A certa altura, Chico cai. É ajudado a levantar-se por um desconhecido (que nunca mais aparece na história) e, entre os dois, trava-se um diálogo, em face da situação totalmente despropositado, sobre a vida sentimental e conjugal do “intruso”. Depois, cada um segue o seu caminho, Chico retoma a corrida e Truffaut o travelling. Em duas palavras: o espectador é duplamente defraudado: não tem, perante si, a “intriga policial” típica dos filmes americanos, em que Truffaut se inspira (o cinema, aqui, não é action), nem se pode comprazer no psicologismo realista tão caro aos filmes franceses (as personagens são desenraizadas e atuam, como a “história”, aos solavancos).

Precisamente, essas características (acolhidas com tantas reservas) são as que conferem a Tirez sur le pianiste o seu maior poder de atração. Na filmografia de Truffaut, este é o primeiro filme em que o autor tenta combinar as duas “paixões maiores” da sua vida de cinéfilo: o cinema americano, de Hawks, Hitchcock, Preminger ou Fuller com o cinema francês de Renoir e Becker. O que, depois, obras como La mariée était en noir, La sirène du Mississipi ou La chambre verte (para só citar filmes maiores) iriam desenvolver, acha-se aqui configurado pela primeira vez, numa procura de fusão de dois estilos que dão a este filme muito do seu apaixonante experimentalismo.

Num filme em que abundam as citações cinematográficas (para não falar das musicais, literárias e das cinéfilas como no plano com o número dos Cahiers), Truffaut procede como o seu “pianista”: retém tudo o que é bonito (“J’aime tout ce qui est beau”).




Filme construído sobre um sentimento, a timidez (como bem notou Pierre Kast), Tirez sur le pianiste é capaz das maiores audácias formais desde a seqüência do duelo (vinda do M. Lange de Renoir e do Casque d’or de Becker) até ao espantoso tratamento do passeio noturno de Charlie-Édouard (a brincadeira com o nome teria a sua devida posteridade no Pierrot le fou de Godard) com Léna (“parce qu’Elena”).

Citei estes exemplos como alguns dos melhores momentos deste filme. Mas o máximo de intervenção e audácia reserva-nos Truffaut para o fim. Retomando La nuit du carrefour de Renoir, Truffaut (que nunca “explicou” os irmãos) insere-os num décor mítico que trás subitamente à memória os mais tenebrosos dos contos de Grimm da nossa infância, com a mesma contrapartida de terror e atração. O “realismo” torna-se fantástico, os bandidos transformam-se em ogros e a “carne humana” tem que ser devorada.

É então que surge a seqüência final (a espantosa morte de Léna na neve) em que, retomando o grande cinema lírico de Hollywood (de Griffith a Borzage), Truffaut transforma esta história de sentimentos recalcados num poema de paixões soltas e confere a Marie Dubois, também (veja-se o assombroso plano do escorregar dela na neve) a força mítica que anima essa seqüência.

Ao encontrar-se com os grandes espaços, este filme confinado e rarefeito (visto, tantas vezes, através de vidros embaciados) transpõe as notas do pianista do cabaret e das canções drôles cantadas antes para os acordes da grande música também ouvida no filme e que Charlie, para seu mal ou seu bem, não soube sustentar. 


João Bénard da Costa

 

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