quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Talvez indagar seja apenas mais uma peça do silêncio


 

 
Rodrigo Guimarães
Fapemig-Unimontes
 
O escritor argentino Jorge Luís Borges tornou-se reconhecido mundialmente pelos seus contos e ensaios, em que sobressai uma intrincada trama de caráter ficcional, repleta de citações (nem sempre) apócrifas, fragmentos, alusões mitológicas, referências históricas, filosóficas, literárias e teológicas. Também utiliza o recurso da intratextualidade, em que cita e parafraseia seus próprios textos, tornando-se um Outro. Borges escreveu sobre escritores imaginários, fundamentando-se em dados históricos falsificados, recorrendo a arquivos inexistentes. Em suma, esmerou-se em desfazer as fronteiras entre o "sonho" e a realidade, em multiplicar as fantasmagorias em sua ilimitada Biblioteca.
 
Os indecidíveis de sua Biblioteca constituem-se nas mais refinadas desestabilizações de todo um paradigma hegemônico no Ocidente, como as noções usuais que sustentam a metafísica, quais sejam, realidade, tempo, espaço, verdade e memória. Diferentemente de Derrida, que se afeiçoou a desconstruir palavras ou conceitos canônicos do pensamento logocêntrico, Borges desloca todo o bloco do pensamento lógico ao abalar, por meio de paradoxos e outros artifícios, os pilares principais da estrutura da racionalidade. Não recorre à dúvida como método de investigação para alcançar a verdade, como fez Descartes, mas a insere, juntamente com a certeza, no campo ficcional: "Sonhei a dúvida e a certeza". Assim como fez Derrida com a différance, que sustenta a ausência e a presença em seu processo de diferencialidade, Borges alicerça o pensamento do logos em uma base de simulacro. Em outras palavras, não há uma inversão simples do onírico sobrepujando o real, mas ambos se apóiam na ludicidade do jogo que impossibilita até mesmo a localização do litoral que separa a realidade da ficção. Em seu conto "Vinte e cinco de agosto, 1983", Borges encontra Borges num quarto de hotel. Esse outro (ele mesmo) é bem mais velho. Assustado, o narrador (o jovem Borges) pergunta: "Então, tudo isto é um sonho?" A resposta, nada esclarecedora: "É, tenho certeza, meu último sonho". Quem sonha com quem? Esta é a pergunta aristotélica feita pelo jovem Borges. Porém, a resposta é borgeana: "Você não se dá conta de que o fundamental é averiguar se há um único homem sonhando ou dois que sonham um com o outro" (Borges, 2000c: 427).
 
O duplo, como se sabe, é uma das marcas recorrentes nos contos borgeanos. Difere do par platônico "modelo e cópia", em que se evidencia a lógica da exclusão, e de um segundo termo decaído. Tampouco se equivale a uma operação de igualdade, os "dois Crátilos" de Sócrates. A perspectiva borgeana insere-se, muitas vezes, em um tipo de lógica dúplice. Portanto, o diálogo do conto "Vinte e cinco de agosto, 1983" transcorre em dois tempos e em dois lugares. Assim entendido, difere também da lógica derrideana do suplemento, visto que não há substituição e adição simultaneamente, mas co-existência e sobreposição de lugares.

 
Muitas vezes, quando Borges evoca os sonhos, não o faz para destacar apenas a dimensão de oniricidade, e sim de co-existência, de teatralidade, em que muitos lugares são ocupados a um só tempo. Em seu ensaio "O pesadelo", Borges, ao citar Addison, observa que em um sonho "somos o teatro, o auditório, os atores, o argumento, as palavras que ouvimos" (Borges, 2000c: 250).

 
Quando afirma que a filosofia e a teologia são duas espécies da literatura fantástica, não o faz segundo o propósito de redução ou de ironia. Ao se colocar no fora de uma metaforicidade do lugar, por meio de uma pluralização de operações que se esquivam às topologias biunívocas, Borges interdita o discurso da verdade, seja ele erigido sobre a racionalidade ou por evocação de um empirismo de tipo objetivo ou subjetivo. Em seu conto "O Aleph", vê-se essa atitude de descrédito em relação ao lugar da verdade, da vivência, da plenitude. Após vislumbrar um turbilhão de acontecimentos em uma pequena esfera (um Aleph), localizada no porão de uma casa abandonada, fica maravilhado como as cenas não se sobrepõem e com o fato de que o espaço cósmico estava ali dentro "sem diminuição de tamanho". Contudo, em um "Pós-escrito" seis meses após essa "experiência", o sujeito-narrador faz algumas observações sobre a natureza do Aleph e conclui que se tratava de um falso Aleph. Então, levanta a hipótese da existência (ou que já tenha existido) de um outro Aleph. Ao justificar a sua posição, refere-se a vários outros textos da tradição ocidental e oriental que mencionam artifícios congêneres exercido por espelhos, cálices, lanças, etc. Assim, Borges cria uma rede de simulacros, e o seu Aleph, o da rua Garay, tornase apenas mais um entre tantos. Não há como decidir sobre o verdadeiro Aleph, nem mesmo sobre a autenticidade de seu relato, a pautarmos pela maneira como encerra o conto: "Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz" (Borges, 2000a: 698).

 
Ao finalizá-lo dessa forma, Borges convoca mais um de seus indecidíveis, a memória, e recorre à astúcia de simular pequenas incertezas partindo da premissa de que a memória não é precisa e o esquecimento é inventivo. Aliás, em relação à memória, a ensaística borgeana tangencia os dois extremos. Em "O Imortal", ele imagina um mundo sem memória e sem tempo, enquanto que em um de seus contos mais conhecidos, "Funes, o memorioso", constrói um personagem que adquiriu, após um acidente, uma memória e uma percepção infalíveis. Funes não necessita do auxílio da escrita como rememoração. Sua memória é a "memória viva" da qual fala Tamuz, no Fedro de Platão. Ela está em contato direto com a verdade, não a do mundo das idéias do platonismo, mas com a realidade da percepção objetiva e de sua retenção. Funes recorda todas as folhas de uma árvore, "como também cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado". A ironia borgeana leva às últimas conseqüências uma representação realista do mundo apoiada em um código único em que cada palavra ou imagem corresponde a um objeto ou situação específica. É a linguagem perfeita sonhada por Leibniz, em que não há ambigüidades ou polissemias na função representativa das palavras. Ou, ainda, de forma menos ingênua, a tentativa de Wittgenstein em Tractatus logico-philosophicus de elaborar uma linguagem proposicional capaz de afigurar o mundo sem as impurezas das tautologias e dos contra-sensos. Contudo, a memória absoluta de Funes não é objeto de admiração do narrador. Ao reverso: "suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair".

 
Borges não só imprimiu sua marca de indecidibilidade nos temas clássicos, como tempo, espaço, memória e a noção do eu, como também criou um labirinto de paradoxos incomuns e lúdicos. A própria forma de olhar uma moeda, "O Zahir", e ver simultaneamente os dois lados. Não por ele ser transparente, e sim porque o sujeito que olha utiliza uma visão esférica. Ou, ainda, observar que o gigantesco pode ser uma forma do invisível, e por isso não se vê o rosto de Deus, devido ao seu descomunal tamanho: "trezentas e setenta vezes maior que dez mil mundos".

 
As desconstruções borgeanas, muitas vezes, não passam de falsos paradoxos ou de especulações desconcertantes sobre a linguagem; outras, revestem-se de uma complexa teia de impossibilidades lógicas, como acontece nos contos "O jardim de veredas que se bifurcam", "O Imortal", "A escrita do Deus" "O livro de areia", "O outro" e "A biblioteca de Babel".

 
"A biblioteca de Babel", por exemplo, agrega em menos de sete páginas uma refinada trama de paradoxos e especulações inusitadas. Comparada ao universo, ela é formada por "um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais". Os bibliotecários nascem, vivem e morrem sem sair da Biblioteca, imersos em buscas infindas e obsessivas de referências, como o "catálogo dos catálogos", livros de profecias, livros com soluções para todos os problemas pessoais e mundiais. Quanto aos livros, variam imensamente, desde o puro contra-censo, passando pelos enigmáticos (que repetem três letras da primeira à última linha) até os livros de apologias. Segundo o narrador, existem alguns axiomas que dizem respeito à Biblioteca: 1) ela sempre existiu; 2) o número de símbolos ortográficos é vinte e cinco (o ponto, a vírgula, o espaço e as vinte e duas letras do alfabeto). No final do conto, têm-se os seguintes dizeres: "Se um eterno viajante a atravessasse comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança".

 
Vê-se, de passagem, como o pharmakós narrador ordena a desordem por um artifício de retórica, efetua uma passagem rápida da suprema indeterminação para o extremo determinado. O apelo à repetição, a necessidade de fixar o caos para imobilizar a disseminação do sentido. Só assim a marca se transforma em signo, reiterando-se, atrelando o significante a outro significante, formando uma cadeia, possibilitando um ponto de basta (Lacan) que remete a uma anterioridade, ao eterno retorno estabelecido tacitamente pela Ordem. Basta soldar as letras e anular o espaçamento, a ilegibilidade.

 
A personagem borgeana, Letizia Álvarez de Toledo (ver nota 4), propõe um livro somente para representar toda a Biblioteca, desde que tenha o elemento infinitamente delgado da infinitude. Folhas assim tão finas aumentariam a possibilidade de erro, de saltar páginas ao folheá-lo distraído, o que desorganizaria a leitura, a Ordem da Biblioteca. Mas Toledo, ao sugerir que um livro, um único volume, possa representar a Babel e ao resumir em três linhas toda a trama de paradoxos e contra-sensos desenvolvida em sete páginas da "Biblioteca", desconsidera o caráter irredutível da escritura borgeana. A folha central é inconcebível não por não ter reverso, e sim pela impossibilidade de localizar o centro. A palavra errante, diz Blanchot, não é aquela que não tem sentido. Sua errância consiste em ser privada de centro. Um único volume não possibilita as muitas operações com a linguagem presentes na Biblioteca, tais como: não há dois livros idênticos, embora existam centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos; tudo que é dado a expressar, em todos os idiomas, está contido nos volumes da Biblioteca; existem milhares de catálogos falsos; cada livro tem uma versão em todas as línguas; e assim sucessivamente.

 
Borges, o pharmakós, conhece Agripa, o Cético. Já o citou repetidas vezes (para estabelecer uma Ordem?): O Cético "nega que algo possa ser provado, pois toda prova requer uma prova anterior". Sexto Empírico adiciona interstícios de desrazão na tênue arquitetura de uma elegante esperança: "as definições são inúteis, pois seria preciso definir cada uma das palavras utilizadas e, depois, definir a definição". Mas, afinal de contas, estabelecer uma Ordem, por um simples golpe do desejo, não é uma artimanha do pharmakós?

 
Talvez indagar seja apenas mais uma peça do silêncio.
 

 
Excelente complemento:
 
O DUPLO E O ALIADO

 
 

UM NOVO TIPO DE LIVRO


A composição de uma obra aberta


 

Nada que não seja esse rolo de papel contínuo

 
 

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