segunda-feira, 29 de abril de 2013

A atitude simbólica na obra de Jung


 


Sheila Woller Jugend





Resumo da monografia apresentada no Curso de Especialização em Psicologia Analítica, 1998, PUC – Pr.

INTRODUÇÃO:

O presente trabalho visa demonstrar o conceito de Atitude Simbólica na obra de Carl Gustav Jung, suas implicações teóricas e práticas no estudo da psique.
A escolha deste tema foi para mim muito significativa, pois foi também esse tema que me conduziu ao encontro com a teoria de Jung. O meu interesse por símbolos é anterior à decisão de estudar Psicologia Analítica.
No decurso da minha formação profissional, me percebia buscando o que havia por trás das manifestações das pessoas (pacientes ou não), pensava no que elas estavam querendo dizer com seus comportamentos.
Sentia-me profundamente atraída por esses mistérios , aparentemente incompreen-síveis, mas que intuitivamente me diziam que havia algo mais a ser buscado, havia algo mais a ser explorado e que nas pequenas ou grandes manifestações de conduta, tanto verbais como não verbais, as pessoas falavam de si e da sua vida. Curiosamente, não tinham a menor consciência entre a sua atitude manifesta e o que elas estavam expressando ou sentindo.
Estudar os símbolos, associá-los à prática da terapia, à prática da vida, é algo a meu ver bastante rico e abrangente. Propicia-nos ampliar nossa consciência. Permite-nos tomar contato com nosso inconsciente que é tão criativo, dinâmico e paradoxal. Os símbolos nos induzem a interioridade, as profundezas do inconsciente. Eles nos sensibilizam pela sua magia e pelo mistério.
Ao introduzirmos o subsídio emocional para o símbolo, indicando o que está encoberto, estaremos despertando para uma sensibilidade, para uma realidade invisível que nos transcende.
Os símbolos nos encantam pela sua sincronicidade, pela simultaneidade que eles se apresentam; percebemos uma coincidência significativa de acontecimentos com poucas probabilidades de acasos e que curiosamente nos fazem ficar atentos, alertas às nossas atitudes. É com espontaneidade e naturalidade que os símbolos se apresentam mobilizando na psique humana consideráveis revelações de nosso mundo interno.
Os símbolos enquanto fenômeno psíquico afetam tanto nosso pensamento quanto sentimento. Por eles somos tomados a nível de uma emoção, de uma idéia.
Ser tocado pelos símbolos é se envolver num mundo de realidades invisíveis por trás de algo visível, buscando estabelecer-se um sentido¹.
Considerando ser o símbolo a principal fala da psique na visão de JUNG, o presente estudo se justifica no sentido de promover um reconhecimento da Atitude que mais o reverencia.

A busca de sentido no símbolo me conduziu ao estudo da Atitude Simbólica, espero no decorrer deste trabalho mostrar a sua importância revelando o sentido que tem se mostrado para mim.
Esse paradoxo que o símbolo enseja, revela e oculta, sensibiliza e choca, aponta e camufla é o que nos mobiliza a buscar nos símbolos um excedente de significados. É justamente por eles se apresentarem, ora de um jeito, ora de outro, que eles nos seduzem e fascinam.
O conceito de "Atitude Simbólica" aparece como definição nas obras completas de JUNG poucas vezes, se não talvez uma única vez. Porém, observamos que este conceito permeia as obras de JUNG constantemente; ao falar de sonhos, de como devemos olhar para os sonhos; também quando propõem, por exemplo a técnica da Imaginação Ativa.

1º Capítulo: A PSIQUE E A LINGUAGEM SIMBÓLICA

Neste capítulo defini o conceito de psique, assim coma a descrevi no que se refere a seus aspectos consciente e inconsciente, seus conteúdos, sua forma de expressão e linguagem, assim como suas estruturas básicas, ego, complexos, arquétipos; tendo-se em vista que a linguagem simbólica é uma das principais linguagens da psique, sendo a forma de expressão do inconsciente. Falei também das duas formas de pensamento: o pensamento conceitual que segue a lógica da identidade e o pensamento simbólico que segue a lógica da semelhança. Abordei a Função Transcendente pois o símbolo funciona como um elemento intermediador de passagem de uma atitude para outra.
"A função transcendente resulta da união de conteúdos conscientes e inconscientes" CWV8/2 &131.
"É a função que conecta opostos. Exprimindo-se por meio do símbolo, ela facilita a transição de uma atitude ou condição psicológica para outra". Samuels Andrew, Plaut Fred, Shorter, Boni. Dicionário Crítico de Análise Junguiana.
Estabeleci paralelos entre Hillman (analista pós-Junguiano, principal representante da Psicologia Arquetípica) e Jung no que se refere: a psique, arquétipos, imagem e mitos. Segundo eles psique é imagem. Para Jung, arquétipos é o modelo psíquico da experiência. O símbolo é a sua particular expressão. O símbolo é extraído da vida e aponta para o arquétipo. Para Hillman, arquétipos são formas primárias que governam a psique. Não são contidos só pela psique. Se manifestam no plano físico, social, lingüístico, espiritual e estético. Para eles, imagem é dada pela perspectiva imaginativa e só é percebida pelo ato de imaginar. Para Jung, mitos são a expressão da psique. Para Hillman eles não fundamentam, eles abrem. São imagens arquetípicas.

2º Capítulo: O SÍMBOLO, SUA HISTÓRIA E DEFINIÇÃO

A palavra "SÍMBOLO" origina-se do grego symbolon, um sinal de reconhecimento.
Na Grécia antiga, quando dois amigos se separavam, quebravam uma moeda, um pequeno prato de argila, um anel, ou ainda a metade de uma concha de madrepérola. Quando o amigo ou alguém de sua família voltava, tinha de apresentar sua metade. Caso ela combinasse com a outra metade, esse alguém teria revelado sua identidade de amigo e tinha, assim, direito à hospitalidade².

A palavra símbolo que significa etimologicamente aquilo que foi colocado junto, que foi lançado junto. Portanto a idéia de símbolo implica em algo composto, então quando combinado, passa a ser um símbolo, símbolo de alguma coisa.
"O símbolo, no entanto, pressupõe a melhor designação ou fórmula possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida ou postulada"³.
Uma vez encontrado um sentido específico, uma expressão apropriada que melhor formule o que se busca ou se pressente, o símbolo está morto; ele passa a ser um sinal.
"Sinal é uma expressão usada para designar coisa conhecida, continua sendo apenas um sinal e nunca será símbolo"(4).
Todo fenômeno psicológico é um símbolo, no sentido que ele enuncia ou significa algo mais e algo diferente, algo que escapa ao nosso conhecimento atual. O que se percebe no símbolo é uma consciência em busca de outras possibilidades de sentido. Portanto ter Atitude Simbólica é reconhecer o símbolo como algo carregado de significado.

3º Capítulo: O SÍMBOLO E SUA FUNÇÃO / CORRELACIONANDO-O AO PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO

Jung via no símbolo a possibilidade de uma ação mediadora, uma tentativa de encontro entre opostos movida pela tendência inconsciente à totalização. No processo de individuação a interpretação dos símbolos exerce um papel prático de muita importância, pois os símbolos representam tentativas naturais para a reconciliação e união dos elementos antagônicos da psique.
Os símbolos acompanham as etapas do processo de individuação como se fossem marcos de um caminho, eles se baseiam em determinados arquétipos que se apresentam no inconsciente, através dos sonhos, das fantasias, das imagens, e que chamam o indivíduo para uma discussão.
"Quando acompanhado e observado de modo consciente, o processo de individuação representa uma discussão dialética entre os conteúdos do inconsciente e os do consciente, em que os símbolos constituem as respectivas pontes necessárias à superação dos antagonismos que, com freqüência, parecem irreconciliáveis, eliminando-os"(5).
A importância do símbolo na obra de Jung é a de atingir o arquétipo, se não atingi-lo não se tem Atitude Simbólica, não se chega no arquetípico.
Sem Atitude Simbólica não se tem Individuação.

4º Capítulo: A ATITUDE SIMBÓLICA E JUNG

O conceito de Atitude Simbólica aparece como definição poucas vezes, talvez uma única vez. Porém observamos que este conceito permeia as obras de Jung o tempo todo, ao falar de sonhos, de como devemos olhar para os sonhos, no processo de amplificação, de circuambulação, quando propõe por exemplo a técnica de Imaginação Ativa.
"A atitude que concebe o fenômeno dado como simbólico, podemos denominá-la Atitude Simbólica" ( CWV6&908). Só em parte é justificada pelo comportamento das coisas; de outra parte é resultado de certa cosmovisão que atribui um sentido a todo evento, por maior ou menor que seja, e que dá a este sentido um valor mais elevado do que à pura realidade.
Torna-se importante salientarmos que para termos uma Atitude Simbólica temos que ter uma consciência, mas um tipo de consciência que nos permita permanecer ao lado do símbolo, no sentido de ser descrito como um fato relativamente desconhecido; portanto esta consciência dá a mão ao inconsciente. É uma consciência mais lunar, reflexiva, diferente de uma consciência mais solar, Apolínea, luminosa que transformaria o símbolo em sinal. É uma consciência que acredita e respeita o mistério. É uma consciência semelhante a dos povos primitivos, a dos índios, na qual eles tem Atitude Simbólica. Portanto é uma consciência que busca outras possibilidades de sentido das coisas. Ter Atitude Simbólica implica numa relação de ego que respeita o mistério.
Fortalece-se o ego relacionando-o com o inconsciente. Isso é conseqüência de um relacionamento com os símbolos.

Existem algumas possibilidades de relação do ego com o símbolo, e estas formas de relação, consequentemente gerarão atitudes específicas no comportamento do indivíduo. Assim sendo, o ego pode identificar-se com o símbolo, neste caso a imagem simbólica será vivida concretamente. Desenvolve-se uma atitude de concretismo. Outra possibilidade é a do ego estar alienado do símbolo; o símbolo será reduzido ao signo. Gera, portanto, uma atitude reducionista. E uma última possibilidade que se pode constatar é a do ego, embora claramente separado do inconsciente ser receptivo aos efeitos das imagens simbólicas; tornando-se possível uma espécie de diálogo consciente entre o ego e os símbolos. (EDINGER, 1972, p.159)

Assim desenvolve-se uma Atitude Simbólica. Podendo o símbolo ser aproximado do consciente pela compreensão e ser sentido e reconhecido de maneira relativa como pertencente ao "eu", não sendo revelado inteiramente, continuará vivo e atuante.
A Atitude Simbólica é também considerada uma atitude de síntese; pois quanto mais nos aproximamos da compreensão e do possível entendimento do simbolismo arquetípico mais próximos estaremos de nossos conteúdos inconscientes e mais conscientes de nós e de nossos desejos estaremos. O desempenho da Atitude Simbólica permite contatar com os pólos opostos existentes na psique e desse diálogo impedir a perigosa situação da unilateralidade (neurose).
Jung através da Atitude Simbólica nos ensinou a ler a psique através de um "como se": quando tratar do inconsciente tudo será "como se" e vocês nunca deverão esquecer tal restrição. (CWV 18/1 & 12).
Ter Atitude Simbólica é despertar em cada indivíduo o sentido de suas vidas.

(aqui a autora se refere ao conceito psicanalítico de ''EGO'', enquanto estrutura da personalidade humana, e não o conceito espiritual, no sentido de centro de egoísmo e vaidade)

5º Capítulo: O CULTIVO DA ALMA E A ATITUDE SIMBÓLICA

Jung diz que psique é imagem, Hillman se apega a isso e diz que devemos ficar com a imagem. Ficar na alma é ficar na imagem, é vivenciá-la e não interpretá-la. É ter Atitude Simbólica. Somente tendo Atitude Simbólica é que se tem o Cultivo da Alma e aí os dois conceitos se dão as mãos.
O foco é no fenômeno na imagem e isso se traduz como ficar na alma. Dar vida a imagem; que a própria imagem se auto explique. Esse é o mistério da análise. Que a própria imagem diga a que veio.
O cultivo da alma é o cultivo das imagens; pois psique é imagem, composta de vários símbolos.
Ter Atitude Simbólica tem a ver com culto, oculto, com o mistério. E o mistério é descobrir o arquétipo que se constela por trás da pessoa. Como ele se manifesta em imagem e símbolo, entrar nessa dimensão é entrar num mundo simbólico, num mundo de imagens que para Hillman é o Cultivo da Alma.
Gostaria de trazer a citação de Hillman, que a meu ver , é a melhor forma de expressar o sentido de Cultivo da Alma e Atitude Simbólica: Fazendo parte deste grande ato cênico ,Deuses, analista e o paciente desempenham papéis, assumem personagens desse mundo da inconsciência, desse mundo misterioso.
"Quando os Deuses vêm ao palco, tudo silencia e as pálpebras cerram-se. Mergulhados em olvido por essa experiência, emergimos sem saber exatamente o que aconteceu; sabemos apenas que fomos transformados". (Hillman, James. Suicídio e Alma. Petrópolis,RJ, 1993. P203.

6 º Capítulo: A ALQUIMIA COMO UM PARADIGMA PARA A ATITUDE SIMBÖLICA

A alquimia veio trazer para Jung a confirmação que ele tanto buscava, ou seja, as descrições dos processos da matéria que os alquimistas presenciavam eram as mesmas que se constatavam com os fenômenos psíquicos observados por Jung.
Dizia ele: "A meu ver, a ajuda dada pela alquimia para a compreensão dos símbolos do processo de individuação é da maior importância". (CWV16&219).
Jung comparava a psique humana com a alquimia.
A alquimia trás a imagem, o pensamento por imagens, e as linguagens metafóricas. Portanto a alquimia fala da psique já que a imagem é o dado psíquico por excelência. Os textos alquímicos ensinavam a convivência com os símbolos.
"O lugar ou o meio desta realização não é a matéria, nem o espírito, mas aquele reino intermediário da realidade sutil que só pode ser expresso adequadamente através do símbolo. O símbolo não é nem abstrato nem concreto, nem racional, nem irracional, nem real nem irreal. É sempre as duas coisas." (CWV12&400).
Os símbolos são a chave para o segredo; para o oculto, para o inconsciente, para o fundamento da nossa psique que são os arquétipos em si, que são portanto incapazes de vir à consciência.
Tanto para a alquimia como para Jung o que mais importava era o processo em si do que o resultado final, por exemplo, o ficar como sonho, não traduzí-lo, ele não significará outra coisa além do que existe dentro dele, tal qual Hillman nos ensina que ficar na alma é ficar na imagem, é dar vida a imagem.
"Jung via a Alquimia como uma Psicologia pré cientifica sob a capa de metáforas". (Hillman, James, Loose Ends).
Para Hillman a Psicologia Alquímica seria um psicologizar, um resgate da imaginação, da imagem. Nesse sentido ela dá espaço à metáfora, ao símbolo, ou seja à Atitude Simbólica.
A figura de Hermes está associada à Atitude Simbólica e à Alquimia pelo fato de que para se ter Atitude Simbólica é preciso ter os pés nos dois mundos consciente e inconsciente. Através da Atitude Simbólica podemos chegar a uma atitude de síntese, de unificação dos opostos. Hermes é o espírito que norteia a alquimia por ser o mercúrio o principal símbolo da substância que é transformada durante o processo comparado às características do inconsciente. Portanto ter uma Atitude Simbólica significa acreditar que não somos nós que vamos dar o sentido. Esse sentido é extraído; pois o arquétipo já tem um sentido, uma virtualidade. O que se busca é uma amplificação através de imagens num processo de circuambulação para nos aproximarmos da verdade psicológica.

CONCLUSÃO

Jung via na Atitude Simbólica uma possibilidade maior de ajuda do indivíduo, do que simples alívio de suas neuroses e psicoses.
Através do deciframento de mensagens simbólicas da psique, via a possibilidade de conectar o indivíduo com suas forças mais criativas e esclarecer os significados mais profundos de suas vidas.
Através da Atitude Simbólica como elemento de síntese, de unificação de opostos, a psique pode estabelecer um diálogo entre as personalidades consciente e inconsciente aproximando-as numa relação e possível conjunção. Assim, possibilitando um redirecionamento da vida a caminho da Individuação, na busca de quem verdadeiramente somos.

Notas

¹O símbolo e isso se aplica a todos eles - é um sinal visível de uma realidade invisível, ideal. Portanto, no símbolo observam-se dois níveis: em algo externo, pode -se revelar algo interno, em algo visível, algo invisível, em algo corporal, o espiritual, no particular geral. Kast, Verena, A dinâmica dos símbolos, São Paulo, Loyola, 1997, p.19
²Kast, Verena - A dinâmica dos Símbolos, São Paulo, Loyola, 1997
³CWV 6 & 903
(4)CWV 6 & 906
(5)Jacabi, Jolande - Complexo, arquétipo e símbolo, pag. 10

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. 11. ed. Rio de Janeiro : José Opympio, 1997.

2. DURRAND, Gilbert. Imaginação Simbólica. São Paulo : Cultrix, 1988.

3.EDINGER, Edward. Ego e Arquétipo. São Paulo : Cultrix, 1972.

4. HALL, James A. Jung e a Interpretação dos Sonhos. 10. ed. São Paulo : Cultrix, 1983.

5. HILLMAN, James. Entre Vistas. São Paulo : Summus Editorial, 1989.

6.HILLMAN, James. Psicologia Arquetípica. 9. ed. São Paulo : Cultrix, 1983.

7. HILLMAN, James. Suicídio e Alma. Petrópolis, RJ : Vozes, 1993.

8. JACOBI, Jolande. Complexo, Arquétipo e Símbolo. 10. ed. São Paulo : Cultrix, 1995.

9. JAFFÉ, Aniela. Memórias, Sonhos e Reflexões. 18. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1961.

10. JUNG, Carl G. Obras Completas. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 1990 - 1994 v.12, 16/2.

11. _____._____. 3. ed. 1991-1995. v. 5, 8/2.

12. _____._____. 4. ed. 1991- v. 16/1.

13. _____._____. 5. ed. 1991 v. 17.

14. _____._____. 6. ed. 1991-1997. v. 8/1, 18/1.

15. _____._____. 8. ed. 1991 v. 6.

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18. JUNG, Carl G.; FRANZ M. L. V.; HENDERSON, Joseph et al. O Homem e Seus Símbolos. 15. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1964.

19. KAST, Verena. A Dinâmica dos Símbolos. São Paulo : Loyola, 1997.

20. MOORE, Thomas. A Magia do Encantamento. Petrópolis, RJ : Ediouro, 1988.

21. MOORE, Thomas. Cuide de Sua Alma. 2. ed. Rio de Janeiro : Siciliano, 1994.

22. SAMUELS, Andrew; PLANT, Fred; BONI, Shorter. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro : Imago, 1988.

23. SILVEIRA, Nise da . Jung, Vida e Obra. 16. ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997.

24. WHITMONT, Edward C. A Busca do Símbolo. 10. ed. São Paulo : Cultrix, 1994-1995.

domingo, 28 de abril de 2013

Jung e sincronicidade: o conceito e suas armadilhas



O CONCEITO DE SINCRONICIDADE

A sincronicidade é um conceito empírico que surge para tentar dar conta daquilo que foge à explicação causal. Jung diz que “a ligação entre os acontecimentos, em determinadas circunstâncias, pode ser de natureza diferente da ligação causal e exige um outro princípio de explicação” (CW VIII, par. 818). A física moderna tornou relativa a validade das leis naturais e assim percebemos que a causalidade é um princípio válido apenas estatisticamente e que não dá conta dos fenômenos raros e aleatórios.
Ao longo de sua obra, Jung deu várias definições ao conceito de sincronicidade. Aqui estão algumas delas:
> “... coincidência, no tempo, de dois ou vários eventos, sem relação causal mas com o mesmo conteúdo significativo.” (CW VIII, par.849)
> “... a simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos significativos de um estado subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias, também vice-versa.” (CW VIII, par. 850)
> “Um conteúdo inesperado, que está ligado direta ou indiretamente a um acontecimento objetivo exterior, coincide com um estado psíquico ordinário.” (CW VIII, par. 855)
> “...um só e o mesmo significado (transcendente) pode manifestar-se simultaneamente na psique humana e na ordem de um acontecimento externo e independente.” (CW VIII, par.905)
> “um caso especial de organização acausal geral.” (CW VIII, par.955)
> “coincidência significativa de dois ou mais acontecimentos, em que se trata de algo mais do que uma probabilidade de acasos.” (CW VIII, par. 959)
> “uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como os estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores.” (I Ching, p.17)
> “o princípio da causalidade nos afirma que a conexão entre a causa e o efeito é uma conexão necessária. O princípio da sincronicidade nos afirma que os termos de uma coincidência significativa são ligados pela simultaneidade e pelo significado”. (CW VIII, par. 906)
Jung define também três categorias de sincronicidade:
1. coincidência de um estado psíquico com um evento externo objetivo simultâneo.
2. coincidência de um estado psíquico com um evento externo simultâneo mas distante no espaço.
3. coincidência de um estado psíquico com um evento externo distante no tempo.
Através da definição destas categorias, podemos perceber que nos fenômenos sincronísticos, o tempo e o espaço são relativos, isto é, o fenômeno acontece independente destes. Basicamente o que define a sincronicidade são a coincidência e o significado.
Jung observou também que tais coincidências ocorrem principalmente quando um arquétipo está constelado. O arquétipos são fatores psicóides que possuem uma transgressividade pois “não se acham de maneira certa e exclusiva na esfera psíquica, mas podem ocorrer também em circunstâncias não psíquicas (equivalência de um processo físico externo com um processo psíquico).” (CW VIII, par. 954)
Jung propõe que o princípio de sincronicidade seja acrescentado à tríade espaço, tempo e causalidade, dizendo que “o espaço, o tempo e a causalidade, a tríade da Física clássica, seriam complementados pelo fator sincronicidade, convertendo-se em uma tétrada, um quatérnio que nos torna possível um julgamento da totalidade”(CW VIII, par. 951). Um gráfico então ficaria assim:
Espaço

Causalidade --------------------------- Sincronicidade

Tempo

Porém através de sugestões de Pauli, Jung e ele modificam o gráfico substituindo o esquema clássico da física pelo moderno, ficando assim:
Energia Indestrutível

Conexão constante de Conexão inconstante
fenômenos através do ------------------------------------------------------- através de contingência
efeito (causalidade) com identidade de significado (sincronicidade)

Continuum Espaço-Tempo

Através desse modelo, a microfísica e a psicologia profunda se aproximam, chegando na concepção dos arquétipos como constantes psicofísicos da natureza e fatores estruturantes criativos.
Jung referiu-se à sua definição de sincronicidade como sincronicidade em sentido estrito e a diferenciou de uma visão mais abrangente de sincronicidade que chamou de ordenação acausal. Os fenômenos sincronísticos em sentido estrito são “atos de criação” no tempo, e incluem a telepatia, fenômenos ESP e PK. Já a organização acausal geral inclui todos estes “atos de criação” e todos os fatores a priori como as propriedades dos números inteiros e as descontinuidades da física moderna.
É com base neste princípio de organização acausal geral que Jung tece suas considerações sobre o número. Ele diz que o cálculo é o método mais apropriado para se tratar do acaso, pois o número é misterioso, nunca foi despojado de sua aura numinosa. “Se, como diz qualquer manual de Matemática, um grupo de objetos for privado de todas as suas características, no final ainda restará o seu número, o que parece indicar que o número possui um caráter irredutível.” Pelo fato de o número ser o elemento ordenador mais primitivo do espírito humano, ele “é o instrumento indicado para criar a ordem ou para apreender uma certa regularidade já presente, mas ainda desconhecida, isto é, um certo ordenamento entre as coisas.” Por isso Jung chegou a chamar o número de “o arquétipo da ordem que se tornou consciente” e cita a estrutura matemática das mandalas, produtos espontâneos do inconsciente para chegar à conclusão de que “o inconsciente emprega o número como fator ordenador”. (CW VIII, par.870)


Os precursores históricos

Jung dedica uma parte do “Sincronicidade: um princípio de conexões acausais” para falar dos precursores históricos da sincronicidade. Ele afirma que a concepção chinesa da realidade, e particularmente o conceito de Tao, é, em grande parte, sincronística. Ele diz: “...segundo a concepção chinesa, há uma “racionalidade” latente em todas as coisas. Esta é a idéia fundamental que se acha na base da coincidência significativa: esta é possível porque os dois lados possuem o mesmo sentido.” (CW VIII, par. 912)
Aqui no ocidente esse princípio existiu por muito tempo. Jung diz que “a concepção primitiva, assim como a concepção clássica e medieval da natureza, postulam a existência de semelhante princípio ao lado da causalidade.” (CW VIII, par. 929) A idéia de uma unidade de toda a natureza (unus mundus) permeia essas concepções, e portanto nelas não existe uma diferença entre o micro e o macrossomo - há uma correspondência entre todas as coisas; também permeando essas concepções está a idéia de que existe na natureza uma fonte de todo conhecimento que se situa fora da alma humana, um conhecimento absoluto. Porém antigamente não se pensava em sincronicidade porque não se pensava em acaso. Tudo era atribuído a uma causalidade mágica que hoje nos parece ingênua. Com o advento do pensamento científico, essas concepções desaparecem. Jung aponta o que fez com que desaparecessem dizendo que “com a ascensão das ciências físicas, no século XIX, a teoria da correspondentia desaparece por completo da superfície e o mundo mágico dos tempos antigos parece sepultado para sempre.” (CW VIII, par. 929) Mas essa idéia de uma sincronicidade e de um significado subsistente à natureza, que é a base do pensamento chinês clássico e faz parte da concepção ingênua da idade média, embora pareça a alguns uma regressão, teve que ser retomada pela psicologia moderna uma vez que só o princípio da causalidade não explica toda a realidade dos acontecimentos.
Jung aponta como precursores da idéia de sincronicidade a “simpatia de todas as coisas” de Hipócrates; a idéia de que o sensível e o supra-sensível estão unidos por um vínculo de comunhão de Teofrasto; a idéia de uma necessidade e amizade que une o universo de Filo de Alexandria; a idéia de mônada, que também tem um significado de unidade de todas as coisas, do alquimista Zózimo; a alma universal de Plotino; a idéia do mundo como um único ser de Pico Della Mirandola; o “conhecimento” ou “idéia” inata dos organismos vivos de Agrippa von Nettesheim e a idéia da anima telluris de Johann Kepler. Jung cita também Schopenhauer e a idéia da vontade ou prima causa e da simultaneidade significativa (daí o termo “sincronicidade” usado por Jung). Mas o autor que Jung mais cita é Gottfried Wilhelm Leibniz. Leibniz explica a realidade através de quatro princípios: espaço, tempo, causalidade e correspondência (harmonia praestabilita). Este último é um princípio acausal de sincronismo dos acontecimentos psíquicos e físicos. Jung discorda de Leibniz em apenas um ponto: para Leibniz este é um fator constante, enquanto que para Jung os eventos sincronísticos ocorrem esporadica e irregularmente.

AS ARMADILHAS DO CONCEITO DE SINCRONICIDADE

Para o pensamento ocidental desde Descartes, a “explicação científica” remonta a uma validação causal: D é causado por C, C por B, B por A. Não é de espantar então que a discussão da hipótese de Jung de um princípio de sincronicidade tenha produzido inúmeros mal-entendidos.
Marie-Louise von Franz em seu artigo “A Contribution to the Discussion of C.G. Jung’s Synchronicity Hipothesis” aponta uma série de erros que já se cometeu ou que se pode cometer na interpretação desse conceito e que aqui serão resumidos e sistematizados.
A autora começa falando das dificuldades que muitos parapsicólogos têm em compreender esse novo modo de pensar e diz que:


Na minha opinião isso vem do fato de muitos parapsicólogos estarem sempre fazendo um esforço intenso por conseguir a aceitação de seu campo fundamentando-o em um método científico “rigoroso”, isto é, em métodos quantitativos e pensamento causal enquanto que justamente o que a hipótese de Jung propõe está em uma direção oposta para longe daquilo que até agora foi considerado o único modo “científico” de pensar. (p. 229)


Ela então continua falando de algumas pessoas que tendem a achar que a sincronicidade explica os fenômenos “psi” causalmente e afirma:


a hipótese da sincronicidade não “explica” causalmente os fenômenos psi, mas comparada com os resultados obtidos até hoje pelas pesquisas, ela os coloca em um contexto novo, mais amplo, isto é, no domínio dos arquétipos, um campo no qual estudos biológicos e psicológicos detalhados já foram feitos. Entretanto estes estudos infelizmente parecem ser desconhecidos da maioria dos parapsicólogos. (p. 230)


Outra tendência errônea é encontrada entre aqueles que buscam uma explicação neurológica para os fenômenos sincronísticos, quando na verdade o que caracteriza um evento sincronístico é justamente a ausência de uma relação causal. Há também aqueles que supõem que os eventos sincronísticos sejam causados pelo inconsciente do observador. Com relação a isto, ela diz:


De acordo com a visão junguiana, o inconsciente coletivo não é de forma alguma uma expressão de desejos e objetivos pessoais, mas uma entidade neutra, psíquica em sua natureza que existe de uma forma absolutamente transpessoal. Atribuir a ocorrência de eventos sincronísticos ao inconsciente do observador não seria nada além de uma regressão ao pensamento mágico primitivo, de acordo com o qual supunha-se antigamente que, por exemplo, um eclipse poderia ser “causado” pela malevolência de um feiticeiro. Jung chegou a advertir explicitamente contra considerar-se os arquétipos (ou o inconsciente coletivo) ou poderes psi como sendo a agência causal dos eventos sincronísticos. (p.231)


O fato do evento sincronístico não ter uma causa pode levar ao erro de se imaginar que tudo aquilo que não tem uma causa conhecida é um evento sincronístico. Quanto a isso Jung é bem claro, afirmando que: “Devemos obviamente nos prevenir de pensar todo evento cuja causa é desconhecida como “sem causa”. Isso é admissível apenas quando uma causa não é nem sequer imaginável. Este é especialmente o caso quando espaço e tempo perdem seu significado ou aparecem relativizados, caso em que uma conexão causal também torna-se impensável.” (CW VIII, par. 957)
A questão do significado, que é crucial na classificação de um evento sincronístico, também pode causar confusões. Afirmar que a existência de um observador que dê significado ao evento é fundamental não quer dizer que os eventos sincronísticos e seu significado sejam produzidos pelo observador. Essa questão do significado também traz outros problemas. Pelo fato do significado ser subjetivo, como podemos saber se não estamos fantasiando um significado quando na realidade ele não existe? Tudo o que diz respeito a fenômenos arquetípicos tem uma “lógica” de asserção que Jung chama de “necessary statements” (“afirmações necessárias”). Estas não são criadas pelo ego, são “impostas” pelo arquétipo e são esperadas sempre que um arquétipo está constelado, como é o caso dos eventos sincronísticos, nos dando um parâmetro para saber se o evento é mesmo significativo ou não.
A ordenação acausal e o “conhecimento absoluto” que estão por trás dos eventos sincronísticos não devem ser confundidos com um “Deus” teológico. É possível postular um deus faber por trás destes eventos, mas isso vai além de qualquer possibilidade de prova e Jung nunca o fez.
Já que a constelação de um arquétipo é fundamental para a ocorrência de um evento sincronístico, é fácil incorrer no erro de considerar que foi o arquétipo que o ‘causou’. Jung diz que:


Eu me inclino, porém a admitir que a sincronicidade em sentido mais estrito é apenas um caso especial de organização geral, aquele da equivalência dos processos psíquicos e físicos onde o observador está em condição privilegiada de poder reconhecer o tertium comparationis. Mas logo que percebe o pano de fundo arquetípico, ele é tentado a atribuir a assimilação dos processos psíquicos e físicos independentes a um efeito (causal) do arquétipo, e assim, a ignorar o fato de que eles são meramente contingentes. Evitamos este perigo se considerarmos a sincronicidade como um caso especial de organização acausal geral. (...) ... devemos considerá-los [os acontecimentos acausais] como atos de criação no sentido de uma creatio continua (criação contínua) de um modelo que se repete esporadicamente desde toda a eternidade e não pode ser deduzido a partir de antecedentes conhecidos. (CW VIII, par. 516)


A organização arquetípica “aparece” ou torna-se “visível” em um evento sincronístico, mas não é a causa deste. O evento sincronístico é uma creatio, um surgimento espontâneo de algo inteiramente novo e que portanto não é predeterminado causalmente.
Embora Jung tenha sugerido que a ordenação acausal geral pode ser verificada experimentalmente através dos métodos de adivinhação, os eventos sincronísticos não são passíveis de serem investigados estatisticamente, uma vez que Jung é claro ao afirmar que os eventos sincronísticos são imprevisíveis, espontâneos e não podem ser repetidos.
Bibliografia

CARD, Charles. Symposia on the Foundations of Modern Physics. Editado por K.V. Laurikainen e C. Montown. Singapore: World Scientific, 1993.
JUNG, Carl Gustav. Dream Analysis. Editado por William Mc Guire. Bollingen Series: Princeton University Press, 1983.
______ Fundamentos de Psicologia Analítica. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. v.XVIII/1
______ Letters. Editado por Gerhard Adler. 1. ed. New Jersey: Princeton University Press, 1973. v.1.
______ Letters. Editado por Gerhard Adler. 2a. ed. New Jersey: Princeton University Press, 1991. v. 2.
______ Nietzsche’s Zarathustra. Editado por James L. Jarrett. Bollingen Series: Princeton University Press, 1988.
______ Psicologia e Alquimia. 4a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes: 1991. V. XII
______ Sincronicidade. 5a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. v. VIII/3.
______ Um mito moderno sobre coisas vistas no céu. 2a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. v. X/4.
______ Visions Seminar. Editado por Claire Douglas. Bollingen Series: Princeton University Press, 1997.
SAMUELS, Andrew. Why it is difficult to be a Junguian Analyst in today’s world. Anais do "13th Congress of the International Association for Analytical Psychology" realizado em agosto de 1995 em Zurich.
WEHR, Gerhard. An Illustrated Biography of C.G. Jung. 1a.ed. USA, Boston: Shambhala, 1989.
WILHELM, Richard. I Ching. 16a ed. São Paulo, SP: Pensamento. 1997.
______ O Segredo da Flor de Ouro. 8a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.



Jung e sincronicidade: a construção do conceito



Extraído da monografia "A construção do conceito de sincronicidade na obra de Jung" (PUC/PR - 1998).

Um estudo do conceito de sincronicidade à luz da sua construção histórica se faz necessário por duas razões. A primeira delas é que, pelo fato de o conceito lidar com premissas que vão além de nossa visão convencional da realidade (como a acausalidade), é muito fácil que ele seja mal-interpretado e desta forma distorcido. A outra razão para se fazer um estudo histórico da obra de Jung (de toda a obra, não só do conceito de sincronicidade aqui abordado) é que hoje, passados mais de trinta anos da sua morte, ainda existem muitos aspectos ocultos e mal-entendidos que só prejudicam um entendimento correto da vida e da obra de Jung e que dão margem a idealizações e a interpretações denegridas. Andrew Samuels chama isso de uma falta de "enlutamento" e afirma que "por não termos feito o luto de Jung adequadamente, por não termos uma história estabelecida, tem sido muito difícil para nós consolidar nossos contatos e relacionamentos com o mundo acadêmico" (SAMUELS, 1995: 160). Um resgate histórico dos conceitos da obra de Jung vem no sentido de uma busca de esclarecimento.

O trabalho principal de Jung sobre o assunto é "Sincronicidade: um princípio de conexões acausais" publicado em 1952 junto com um artigo do físico Wolfgang Pauli, hoje o volume VIII das Obras Completas (infelizmente sem o artigo de Pauli). O fato desse trabalho mais detalhado ter sido publicado somente em 1952 pode nos levar a pensar que Jung só começou a se interessar pelo tema a partir da segunda metade deste século. Mas, como podemos perceber pelo que ele dizia nos seminários, escrevia em sua correspondência pessoal e no que depois viriam a ser os volumes das Obras Completas, a sincronicidade foi um assunto com o qual Jung começou a se preocupar no final dos anos 20, do qual ele se ocupou durante muitos anos até que se sentisse autorizado a escrever sobre ele e pelo qual ele se interessou até o fim da vida.

O termo ‘sincronicidade’ aparece pela primeira vez em 4 de dezembro de 1928 no seminário "Dream Analysis":

Eles aceitaram o simbolismo como se tivessem estado aqui conosco. Já que eu vi muitos outros exemplos do mesmo tipo nos quais pessoas não relacionadas foram afetadas, inventei a palavra sincronicidade como um termo para cobrir estes fenômenos, isto é, coisas acontecendo ao mesmo tempo como uma expressão do mesmo conteúdo. O fato de que os princípios da nossa psicologia são princípios de fenômenos energéticos gerais não é difícil para o chinês aceitar; só é difícil para a nossa mente discriminativa. Mas ela também tem o seu valor com o seu refinado sentido para os detalhes das coisas e aqui é exatamente onde o oriente definitivamente mostra a sua incapacidade, pois eles não conseguem lidar com os fatos e eles se permitem todos os tipos de idéias e superstições fantásticas. Por outro lado eles têm uma compreensão muito mais completa do papel do homem no cosmo, ou do como o cosmo está ligado ao homem. Devemos descobrir isto e muitas coisas altamente interessantes e maravilhosas que são do conhecimento deles." (p. 417)

Porém antes, no mesmo seminário Dream Analysis, Jung já vinha falando disso, sem citar o termo "sincronicidade", como em novembro de 1928:

Isto é o que chamamos de uma simples coincidência. Menciono isto para mostrar o quanto o sonho é algo vivo, de forma alguma algo morto que farfalha como um papel seco. É uma situação viva, é como um animal com antenas, ou com muitos cordões umbilicais. Nós não percebemos que enquanto estamos falando deles, isto é produtivo. É por isso que os primitivos falam de seus sonhos, por isso eu falo dos sonhos. Somos tocados pelos sonhos, eles nos expressam e nós expressamos a eles, e existem coincidências ligadas a eles. Recusamo-nos a levar as coincidências a sério porque não podemos considerá-las como causais. É verdade que cometeríamos um erro em considerá-las causais; fatos não acontecem por causa dos sonhos, isto seria absurdo, nunca poderemos demonstrar isto; eles apenas acontecem. Mas é sábio considerar o fato de que eles realmente acontecem. Nós não os notaríamos se eles não tivessem uma regularidade peculiar, não aquela de experimentos de laboratório, e sim um tipo de regularidade irracional. O oriente baseia muito da sua ciência nesta regularidade e considera as coincidências como a base confiável do mundo, não a causalidade. O sincronismo é o preconceito do oriente, a causalidade é o preconceito moderno do ocidente. Quanto mais nos ocuparmos dos sonhos, mais poderemos ver estes acasos-coincidências. Lembrem-se de que o mais velho livro científico chinês é sobre o possível acaso da vida. (págs 44-45)

Em uma nota de rodapé à palestra de 27 de novembro de 1928, lemos que: "Algumas das idéias que Jung estava experimentando na sua palestra reapareceram em seu discurso em memória de Richard Wilhelm (1930), vol.15, parágrafos 81-82, onde ele publicou pela primeira vez uma referência à "sincronicidade"" (p. 412)

Como se pode notar, o conceito aqui ainda está muito ligado ao princípio científico chinês e à questão da acausalidade devido à influência de Richard Wilhelm, como veremos depois.

As referências ao tema continuam e, em uma carta de 1934 ao físico Pascual Jordan, Jung cita pela primeira vez o seu interesse pela física, a aproximação desta com a psicologia e a influência de Wolfgang Pauli dizendo que "apesar de eu não ser um matemático, me interesso pelos avanços da física moderna, que está cada vez mais se aproximando da natureza da psique, como tenho visto há muito tempo. Muitas vezes falei sobre isso com Pauli". Como veremos mais adiante, a contribuição de Pauli foi fundamental para Jung no sentido de lhe dar uma fundamentação científica para o conceito de sincronicidade. A partir da década de 40, as referências de Jung se afastam cada vez mais do oriente para se aproximar da física moderna.

A última referência escrita de Jung à sincronicidade é feita em uma carta endereçada a Stephen Abrams onde ele fala sobre os fenômenos ESP. Esta carta é de 1960, portanto pouco antes de Jung falecer:

A teoria matemática da informação está além do alcance do meu entendimento, no entanto parece-me interessante. É bem possível, até mesmo provável, que o homem tenha uma quantidade muito maior de ESP a sua disposição do que a que ele realmente supõe. Isso deve ser verdade se a sincronicidade pertence às qualidades básicas da existência.

Jung escreveu um grande trabalho sobre o tema que consta em "Sincronicidade" (vol. VIII CW) porém encontramos várias outras referências ao assunto no prefácio de "O Segredo da Flor de Ouro"; nas "Tavistock Lectures" (vol XVIII CW); no prefácio ao "I Ching" e em "Um Mito Moderno Sobre Coisas Vistas no Céu" (vol. X/4 CW). Esse princípio também foi citado nos seminários "Dream Analysis", "Visions Seminar" e "Nietzsche’s Zarathustra", que não se encontram ainda traduzidos para o português. Igualmente ainda sem tradução está a importante fonte de dados que foi a correspondência completa de Jung. Uma descrição de todas as referências em ordem cronológica é fonte rica para uma análise, porém escapa ao âmbito deste trabalho.

Jung sugere como ponto de partida de suas reflexões sobre o conceito de sincronicidade suas conversas com Albert Einstein, quando este estava em Zurique no período de 1909/1910 e 1912/1913. Em uma carta endereçada ao jornalista e crítico teatral suíço Carl Seeling em 25/02/1953 escreve Jung:

O professor Einstein foi meu convidado em várias ocasiões para jantar... aquele era um período inicial onde Einstein estava desenvolvendo sua primeira teoria da relatividade, [e] foi ele quem me fez começar a pensar sobre uma possível relatividade do tempo assim como do espaço e sua condicionalidade psíquica. Mais de trinta anos depois este estímulo levou-me ao relacionamento com o físico Prof. W. Pauli e à minha tese da sincronicidade da psique. (LETTERS - p. 109, v.2).

A lembrança de suas conversas com Einstein, mesmo que "como não-matemáticos nós, psiquiatras, tivéssemos dificuldade em seguir o seu argumento" (ibid), mais do que ao conceito de sincronicidade levaram Jung a buscar uma base ou fundamentação teórica dentro da física moderna a este princípio, embora as primeiras idéias a respeito do conceito advenham do estudo feito por Jung da filosofia oriental, principalmente do I Ching.

Talvez possamos estabelecer dentro da construção da teoria da sincronicidade duas etapas complementares sendo que a primeira corresponderia a uma fase oriental e a segunda fase estaria ligada à fundamentação física e a uma ampliação do conceito em que este passa a fazer parte de uma idéia mais abrangente, a das "ordenações não causais". Da mesma forma que podemos propor duas fases também podemos propor a influência de dois autores sobre Jung e a cada um deles corresponderia uma diferente fase; na primeira fase, que vai até a metade dos anos 40, o papel de Richard Wilhelm é marcante e na segunda fase, que vai até o final dos anos 50, a relação de Jung com Wolfgang Pauli é fundamental.



A INFLUÊNCIA DE RICHARD WILHELM

Jung conheceu o sinólogo Richard Wilhelm (tradutor da melhor versão para o ocidente do I Ching) no final dos anos vinte e os dois tornaram-se amigos e colaboradores até a morte prematura de Wilhelm em 1931. Mesmo antes de conhecer Wilhelm, Jung já se interessava pela cultura oriental através de sugestões de Antônia Wolff e já fazia uso do antigo texto chinês de sabedoria e oráculo, o I Ching na tradução de James Legge.

Desde o início de seu trabalho com sonhos, Jung observou que os motivos oníricos tendem a coincidir relativamente com situações reais, com um significado semelhante ou mesmo com situações reais idênticas. Ele só se expressou oficialmente a respeito deste tema no final dos anos 20 falando a respeito do princípio científico chinês, que é baseado numa idéia totalmente diferente de nossa hipótese da causalidade e que é particularmente importante em conexão com o I Ching.

Jung já há muito vinha observando fenômenos reais que não se enquadravam na visão ocidental causalista. A filosofia oriental, com seu pensamento não-linear, comprovou-lhe que o acaso e a coincidência podem ser levados em consideração e que a causalidade é meramente uma hipótese, não uma verdade absoluta. Na China antiga, a filosofia, a medicina, a arquitetura e outras ciências humanas eram baseadas na ciência da coincidência.

Além de um contato mais aprofundado com a filosofia oriental, a relação com Wilhelm trouxe um texto fundamental para Jung - o tratado Taoísta chinês "Segredo da Flor de Ouro", para o qual Wilhelm pediu-lhe que fizesse o prefácio. Segundo Gerhard Wehr, "(...) o texto Taoísta parece ter tido um efeito que afetou Jung como uma iniciação. Somente depois dessa experiência é que ele foi capaz de se dedicar intensivamente à tradição alquímica"(WEHR, 1989: p. 75). Antes dele Jung já havia se interessado pela alquimia "mas foi de Wilhelm que Jung recebeu o ímpeto de iluminar os paralelos entre a alquimia e a psicologia profunda."(ibid, p. 76)

Mesmo antes do final dos anos vinte, Jung vinha procurando entender as imagens da mitologia, as imagens de seus pacientes e as de seu próprio confronto com o inconsciente. Foi através da alquimia que Jung pôde entender todas estas imagens porque a alquimia se expressa em uma linguagem simbólica, que é uma das linguagens da psique (a outra é conceitual). A alquimia vem dar uma forma ao processo de individuação e assim os conceitos principais de Jung como o de inconsciente coletivo e arquétipo ficam mais claros depois de 1928. Dentre os conceitos alquímicos que influenciaram a concepção de sincronicidade, destacam-se o de unus mundus e o de macro e microssomo.

Junto com a alquimia vem o encontro com Pauli e conceitos como o de psicóide e o de sincronicidade tomam forma e se abre uma nova forma de compreensão da relação entre psique e matéria.



A INFLUÊNCIA DE W. PAULI

A relação de Jung com o físico alemão Wolfgang Pauli começa com um pedido de análise por parte de Pauli em 1930, em função de um colapso pessoal. Em 1928 sua mãe, então com 48 anos de idade, havia se suicidado e em 1929 Pauli casou com Käthe Deppner, mas a união não deu certo. Após esse casamento fracassado e o suicídio de sua mãe, com quem tinha um forte vínculo afetivo, a condição emocional de Pauli, que já não era estável, se deteriora a ponto de ele beber em excesso e sofrer de isolamento, como resultado também da sua língua mordaz e ferina. Por sugestão de seu pai, Pauli vai procurar ajuda com Jung. Ao invés de assumir ele mesmo o caso, Jung encaminha Pauli para Erna Rosenbaum, uma jovem analista. Um dos motivos para esse encaminhamento foi a dificuldade de Pauli na sua relação com as mulheres e com a sua função sentimento. Um outro motivo alegado por Jung foi a sua percepção de que Pauli era uma personalidade excepcional e que requeria um tratamento especial. Jung encaminhou-o de propósito a uma principiante: não queria que o material que ele trazia fosse influenciado por nenhum conhecimento aprofundado anterior. Em "Psicologia e Alquimia" Jung escreve:

Vale a pena observar pacientemente o que se processa em silêncio na alma. A maioria das transformações e as melhores ocorrem quando não se é regido pelas leis vindas de cima e do exterior. Admito de bom grado que é tal meu respeito pelo que acontece na alma humana, que receio perturbar e distorcer a silenciosa atuação da natureza, mediante intervenções desajeitadas. Por isso renunciei a observar pessoalmente o caso que nos ocupa, confiando a tarefa a uma principiante, livre do peso do meu saber - tudo isto para não perturbar o processo. Os resultados que aqui apresento são simples auto-observações conscienciosas e exatas, de uma pessoa de grande firmeza intelectual, que ninguém jamais sugestionou e que não seria passível de ser sugestionada. Os verdadeiros conhecedores do material psíquico reconhecerão facilmente a autenticidade e espontaneidade dos resultados aqui expostos. (parag.126)

Pauli, por sua vez, dedicou ao seu inconsciente a mesma paixão brilhante que dedicava à física. Ele registrou e espontaneamente ilustrou quase 400 sonhos em seus dez meses de análise. Esses sonhos que Jung analisou posteriormente, serviram de fundamento para um dos seus escritos mais importantes: "Individual Dream Symbolism in Relation to Alchemy", a segunda parte de "Psicologia e Alquimia".

Jung e Pauli passam a se corresponder com mais freqüência. Pauli apoiou o princípio da sincronicidade como sendo científico. A contribuição mais famosa de Pauli à física - o Princípio de Exclusão pelo qual ele recebeu o Prêmio Nobel - implicava a descoberta de um padrão abstrato que se oculta debaixo da superfície da matéria e que determina seu comportamento de modo "acausal". Jung auxiliou Pauli na sua compreensão dos fatores coletivos e arquetípicos na psique. Desenvolve-se assim uma longa colaboração e influência teórica mútua, culminando em 1952 com a publicação de "The Interpretation of Nature and the Psyche" com dois textos, um escrito por Pauli "The Influence of Archetypal Ideas on the Scientific Thoughts of Kepler" e outro por Jung "Sincronicidade: Um Princípio de Conexões Acausais" (vol.VIII). Em agosto de 1957, sem nenhuma razão aparente, a correspondência entre os dois se interrompe.

Para Pauli o encontro com Jung o levou a um conhecimento pessoal dos processos inconscientes e de seu papel vital na integração e equilíbrio da personalidade humana. Como cientista ele também foi despertado para o significado que as pesquisas de Jung têm para a ciência. Em particular, ele reconheceu as profundas implicações que o conceito de arquétipo tem para a ciência e as suas derivações epistemológicas. (Ver: "Ideas of the Unconscious from the Standpoint of Natural Sciences and Epistemology" - 1954; "Science and Western Thought" - 1955)

Para Jung o encontro com Pauli trouxe à tona certos aspectos da natureza da realidade que o levaram à posterior expansão do conceito de arquétipo e que deram ao conceito de sincronicidade e suas aplicações posteriores um melhor embasamento científico. Esta última formulação da hipótese dos arquétipos está fundada no paralelismo percebido por Jung/Pauli entre a psicologia do inconsciente e a teoria quântica, paralelismo este que foi aprofundado por Marie-Louise von Franz em livros como "Number and Time" e "Psyche and Matter". Jung foi tocado pelo fato de que a pesquisa psicológica à medida que se aprofunda chega ao limite de certos irrepresentáveis, os arquétipos, e a pesquisa na física quântica de maneira similar também chega aos irrepresentáveis, as chamadas partículas elementares que constituem toda a matéria mas para as quais nenhuma descrição espaço/temporal é possível. Desde que a psique e a matéria estão contidas em um e mesmo mundo, Jung usou o termo "unus mundus" para descrever esse aspecto transcendente e unitário que sustenta a dualidade da mente e da matéria.

O conceito de sincronicidade e a conceituação de uma ‘ordenação acausal geral’ têm amplas implicações na física moderna. Em seu artigo "The Archetypal Hypothesis of Wolfgang Pauli and C.G. Jung: Origins, Development, and Implications", o físico Charles R. Card afirma que: "Esta hipótese arquetípica [de Jung e Pauli] tem implicações que hoje mais do que nunca podem ser vistas como relevantes a algumas das maiores preocupações das bases da física moderna - em particular no tratamento de fenômenos não-locais na mecânica quântica e em fenômenos ‘caóticos’ na dinâmica não-linear."(p. 362) A noção de ordenação acausal lançou uma nova luz sobre fenômenos que antes não tinham explicação porque escapavam à causalidade como a lei da meia-vida na decomposição radioativa; a imprevisibilidade do comportamento de um átomo individual na mecânica quântica; o "brilho fóssil" no background cósmico; o pêndulo de Foucault e o paradoxo Einstein-Podolski-Rosen (EPR), além de também lançar luz sobre a controvertida relação entre psique e matéria.

Um novo artigo, desta vez abordando o conceito de sincronicidade em si, poderá ser encontrado neste mesmo site em uma nova atualização.



Bibliografia



CARD, Charles. Symposia on the Foundations of Modern Physics. Editado por K.V. Laurikainen e C. Montown. Singapore: World Scientific, 1993.

JUNG, Carl Gustav. Dream Analysis. Editado por William Mc Guire. Bollingen Series: Princeton University Press, 1983.

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______ Letters. Editado por Gerhard Adler. 1. ed. New Jersey: Princeton University Press, 1973. v.1.

______ Letters. Editado por Gerhard Adler. 2a. ed. New Jersey: Princeton University Press, 1991. v. 2.

______ Nietzsche’s Zarathustra. Editado por James L. Jarrett. Bollingen Series: Princeton University Press, 1988.

______ Psicologia e Alquimia. 4a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes: 1991. V. XII

______ Sincronicidade. 5a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. v. VIII/3.

______ Um mito moderno sobre coisas vistas no céu. 2a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. v. X/4.

______ Visions Seminar. Editado por Claire Douglas. Bollingen Series: Princeton University Press, 1997.

SAMUELS, Andrew. Why it is difficult to be a Junguian Analyst in today’s world. Anais do "13th Congress of the International Association for Analytical Psychology" realizado em agosto de 1995 em Zurich.

WEHR, Gerhard. An Illustrated Biography of C.G. Jung. 1a.ed. USA, Boston: Shambhala, 1989.

WILHELM, Richard. I Ching. 16a ed. São Paulo, SP: Pensamento. 1997.

______ O Segredo da Flor de Ouro. 8a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.



A Psicologia do Satori





Erich Fromm
 http://www.filosofiaesoterica.com/ler.php?id=744#.UXusZUqyDSg
 
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O texto a seguir é reproduzido do boletim “O Teosofista”, de
outubro de 2009. Ele foi traduzido da obra  “Zen Buddhism and
Psychoanalysis”, de D.T. Suzuki, Erich Fromm e R. De Martino,
First Evergreen edition, 1963, EUA, 180 pp., ver pp. 115 a 118. Na
edição brasileira da obra, o título é “Zen Budismo e Psicanálise”.
 
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Se quisermos expressar o que é a iluminação em termos psicológicos, eu diria que ela é um estado em que o indivíduo está completamente em sintonia com a sua realidade interna e externa, em que está plenamente consciente da realidade e a capta de modo integral.  Ele está consciente dela, isto é, não se trata do seu cérebro, nem qualquer outra parte do seu organismo, mas ele, o homem inteiro.  Ele está consciente dela; não como se a realidade fosse um objeto que ele capta com seu pensamento, mas ele capta a flor, o cachorro, o homem, em sua realidade completa.

 

Aquele que desperta está aberto e é capaz de responder ao mundo, e ele pode ser aberto e ser capaz de responder ao mundo porque renunciou a agarrar-se a si mesmo como uma coisa, e assim tornou-se vazio e capaz de perceber.  Estar iluminado significa “o completo despertar da personalidade total diante da realidade.”

 

É muito importante compreender que o estado de iluminação não é um estado de dissociação ou de transe no qual o indivíduo acredita que está desperto, quando na verdade está profundamente adormecido. O psicólogo ocidental, naturalmente, terá uma tendência a acreditar que satori [a iluminação] é apenas um estado subjetivo, e mesmo um psicólogo tão simpático em relação ao Zen quanto o dr. [Carl] Jung não consegue evitar o mesmo erro.  Jung escreve: “A própria imaginação é uma ocorrência psíquica, e portanto, não faz diferença alguma se uma iluminação é qualificada de real ou imaginária. O homem que tem a iluminação, ou alega que a tem, pensa em qualquer caso que é iluminado  (......) Mesmo que ele estivesse mentindo, a sua mentira seria um fato espiritual.” [1] 

 

Isso faz parte, é claro, da posição geral de relativismo adotada por Jung em relação à “verdade” da experiência religiosa. Ao contrário dele, eu acredito que uma mentira nunca é “um fato espiritual”, nem qualquer outro fato, na verdade, exceto o fato de ser uma mentira. Mas, de qualquer modo, a posição de Jung certamente não é compartilhada pelos zen budistas. Bem pelo contrário. Para eles é de crucial importância saber a diferença entre a experiência autêntica de satori, na qual a aquisição de um novo ponto de vista é real, e portanto verdadeira, e uma pseudo-experiência que pode ser de natureza histérica ou psicótica, na qual o estudante Zen está convencido de haver obtido satori, enquanto o mestre Zen tem que demonstrar que ele não obteve. Uma das funções do mestre Zen é, precisamente, estar vigilante em relação à confusão que o seu aluno faz entre a iluminação real e a iluminação imaginária.

 

O completo despertar para a realidade significa, falando em termos psicológicos, ter alcançado “uma orientação completamente produtiva”. Isso significa não relacionar-se com o mundo de modo receptivo, explorador, acumulativo, ou mercantilista; mas sim criativamente, ativamente (no sentido de Spinoza).  No estado de completa produtividade não há véus que separem o eu do “não-eu”. O objeto não é mais um objeto; ele não fica contra mim, mas está comigo. A rosa que eu vejo não é um objeto para o meu pensamento, da maneira pela qual, quando eu digo “vejo uma rosa”, apenas afirmo que o objeto, rosa, cai na categoria “rosa”; mas da maneira em que se diz que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”. 

 

O estado de produtividade é ao mesmo tempo o estado da mais alta objetividade. Eu vejo o objeto sem as distorções provocadas pela minha cobiça e pelo meu medo. Vejo-o como ele é, e não como eu quero que ele seja, ou que não seja. Neste modo de percepção não há distorções paratáxicas [através do  uso das palavras] .  Há completa vitalidade, e existe uma síntese de objetividade e subjetividade. Eu tenho uma experiência intensa --  e no entanto é permitido ao objeto que ele seja como ele é. Eu trago o objeto à vida, e o objeto me traz à vida. O satori parece misterioso apenas para a pessoa que não está consciente de até que ponto a sua percepção do mundo é puramente mental, ou paratáxica.  Se o individuo estiver consciente disso, ele também perceberá uma consciência diferente, que se pode chamar de consciência completamente realista.  O indivíduo pode ter experimentado apenas vislumbres dela: no entanto, ele pode imaginar como ela é. Um garoto pequeno que estuda piano não toca como um grande mestre. No entanto a performance do mestre não é um mistério: trata-se apenas da perfeição da experiência rudimentar que o garoto tem.

 

O fato de que a percepção não distorcida e não-cerebral da realidade constitui um elemento essencial da experiência Zen é expressado muito claramente em duas histórias Zen.  Uma delas conta a conversa de um mestre com um monge:

 

“Você faz algum esforço para tornar-se disciplinado na verdade?”

“Sim.”

“Como você se exercita nisso?”

“Quando tenho fome, eu como; quando estou cansado, eu durmo”.

“Isto é o que todo mundo faz; podemos dizer então que todos estão fazendo o mesmo exercício?”

“Não.”

“Por quê?”

“Porque, quando eles comem, eles não comem, mas estão pensando em várias outras coisas, e assim permitindo-se ficar perturbados; quando eles dormem, eles não dormem, mas sonham com mil e uma coisas. É por isso que eles não são como eu.” [2]

 

A história dificilmente precisa de alguma explicação. O indivíduo comum, levado pela insegurança, pela cobiça, pelo medo, é constantemente imerso em um mundo de fantasias (e nem sempre é consciente disso), no qual ele vê o mundo como se tivesse qualidades que ele projeta sobre o mundo, mas que não estão lá. Isso era um fato quando esta conversa ocorreu; e continua sendo um fato verdadeiro hoje, quando quase todos veem, ouvem, sentem e saboreiam mais com base em seus próprios pensamentos, do que com base naquelas funções dentro de si que são capazes de ver, ouvir, sentir e saborear.

 

A outra história, igualmente cheia de significado, é a afirmação de um mestre Zen que disse: “Antes que eu alcançasse a iluminação, os rios eram rios e as montanhas eram montanhas. Quando comecei a ficar iluminado, os rios não eram mais rios, e as montanhas não eram montanhas. Agora, desde que estou iluminado, os rios voltaram a ser rios e as montanhas são montanhas.” 

 

Outra vez, temos o novo enfoque da realidade. O indivíduo comum é como o homem na caverna de Platão, que olha só as sombras e pensa que elas são a substância. Quando reconhece este erro, ele sabe apenas que as sombras não são a substância. Mas quando se torna um iluminado, ele troca a caverna e a sua escuridão pela luz do dia. Então ele vê a substância e não as sombras. Ele está desperto.  Enquanto permanece no escuro, ele não pode entender a luz. (Como diz a Bíblia: “Uma luz brilhou na escuridão e a escuridão não a entendeu.”[3] )  Uma vez que está fora da escuridão, ele compreende a diferença entre a sua visão anterior do mundo como sombras, e a sua visão atual do mundo como realidade.

 

 

NOTAS:

 

[1] Do prefácio de Carl Jung para a obra de D.T. Suzuki intitulada “Introduction to Zen Buddhism”, London,  Rider, 1949, p. 15.

 

[2] D.T. Suzuki, “Introduction to Zen Buddhism”, p. 86.

 

[3] Evangelho segundo João, 1: 5. (Nota do editor de “O Teosofista”.)