segunda-feira, 29 de julho de 2013

Trecho de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro

 
Augusto, o andarilho, cujo nome verdadeiro é Epifânio, mora num sobrado em cima de uma chapelaria feminina, na rua Sete de Setembro, no centro da cidade, e anda nas ruas o dia inteiro e parte da noite. Acredita que ao caminhar pensa melhor, encontra soluções para os problemas; solvitur ambulando, diz para seus botões.
No tempo em que trabalhava na companhia de águas e esgotos ele pensou em abandonar tudo para viver de escrever. Mas João, um amigo que havia publicado um livro de poesia e outro de contos e estava escrevendo um romance de seiscentas páginas, lhe disse que o verdadeiro escritor não devia viver do que escrevia, era obsceno, não se podia servir à arte e a Mammon ao mesmo tempo, portanto era melhor que Epifânio ganhasse o pão de cada dia na companhia de águas e esgotos, e escrevesse à noite. Seu amigo era casado com uma mulher que sofria dos rins, pai de um filho asmático e hospedeiro de uma sogra débil mental e mesmo assim cumpria suas obrigações para com a literatura. Augusto voltava para casa e não conseguia se livrar dos problemas da companhia de águas e esgotos; uma cidade grande gasta muita água e produz muito excremento. João dizia que havia um ônus a pagar pelo ideal artístico, pobreza, loucura, escárnio dos tolos, agressão dos invejosos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso. E provou que tinha razão morrendo de uma doença causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar seu romance de seiscentas páginas. Que a viúva jogou no lixo, junto com outros papéis velhos. O fracasso de João não tirou a coragem de Epifânio. Ao ganhar um prêmio numa das muitas loterias da cidade, pediu demissão da companhia de águas e esgotos para dedicar-se ao trabalho de escrever, e adotou o nome de Augusto.
Agora ele é escritor e andarilho.
RUBEM FONSECA
 

SACUDÍ O PÓ DE VOSSOS PÉS



'' - Onde vc está hospedado?
- No Hotel Terminus.
- Mas aqui não existe nenhum Hotel Terminus.
-Isso é o que o Sr. pensa.''

Campos de Carvalho em A VACA DE NARIZ SUTIL

(...)

''Os beatniks estão sempre em movimento e é inútil tentar acompanha-los''

Carl Solomon
(...)


Uma vez li em algum lugar que boa parte da versão original da obra-prima de Jack Keroauc ''ON THE ROAD'' (a Bíblia da geração Beatnik) havia sido escrita em rolos de papel higiênico dentro de quartos de hotel sem luz nem água quente.
(...)




Não utilize o telefone
As pessoas jamais estão dispostas a responder
Utilize a poesía.

Jack Kerouac

(...)


"E se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquela casa ou cidade, sacudi o pó de vossos pés."


– Jesus. (Mateus, 10:14)

A passagem do Dragão através do Khien

 
Exame da passagem do Dragão através do Khien, hexagrama da perfeição em si:
O Dragão "inteligência cujas modificações são ilimitadas, símbolo das transformações da via racional (tao) da atividade expressa por Khien" I Ching: capítulo I § 8, comentário Tsheng-tse) se coloca sobre o primeiro traço (traço inferior e positivo, sem solução de continuidade); ele representa "o ponto de partida do princípio dos seres". É o "Dragão oculto".
A extrema atividade da Perfeição não se produz, não se revela por qualquer ato de vontade, mesmo por qualquer pensamento; logo ela é oculta, quer dizer não inteligível ao homem. É o período do não agir (wu wei). E por período deve-se entender a idéia de estado metafísico, como, pela palavra "situação", deve-se entender o "lugar geométrico", todas as concepções devendo ser aqui independentes das relatividades do tempo e do espaço.
Pousado sobre o segundo traço, o Dragão emerge: a atividade começa a se fazer sentir sobre a superfície da terra: é o "Dragão no arrozal". A extrema atividade do céu ainda não se manifesta, mas o homem se dá conta de que ela existe, Este sentido dá a tendencia geral do hexagrama. Os dois traços correspondentes sendo aqui todos os dois positivos, resulta que o sentido do Khien é reforçado, quer dizer a atividade do céu é extrema, contínua, eterna e que o Céu não é concebível fora da ideia de sua atividade.
Esta segunda situação resume-se perfeitamente por esta comparação de Shiseng: "O éter positivo começa a engendrar, assim como a luz do sol começa a clarear todas as coisas, antes que este apareça no horizonte".
Pousado sobre o terceiro traço, o Dragão se manifesta: ele
ele está sobre a situação superior do primeiro trigrama: é o momento da lenda onde, subindo ao topo das águas ruidosas, ele vai se lançar no ar e aparecer como ele é na realidade. Se as escamas do Dragão saem das águas, então o homem conhece a ciência e a lei. É o "Dragão visível". A incessante atividade, chegada do alto de um trigrama, supera o abismo que a separa do segundo trigrama. Matéria para grande circunspecção.
Há cuidados e perigo a evitar em "ver o rosto do Dragão", quer dizer conhecer a Ciência e a Lei., se não se está suficientemente preparado pelos estados anteriores. Eis a vontade de expansão de todos os seres, muito perfeita posto que ela é o coroamento da atividade, mas muito perigosa, posto que ela pode alcançar à multiplicidade, quer dizer às formas e à desunião.
Ousado sobre o quarto traço, o Dragão tende a deixar o mundo, quer dizer desaparecer, posto que estando manifestado, se tornará , se permanecer, inteligível ao homem, e não mais será a Perfeição em si; mas ele não voa ainda; "ele é como o peixe que salta fora da água, com a vontade, mas sem os meios de desaparecer: é o Dragão igualmente pronto a se extinguir no éter dos espaços celestes e nas profundezas dos abismos, onde se encontra o lugar de seu repouso" (I Ching, cap. I § 14; comentário de Tsouhi).
A incessante atividade, o extremo do salto, pode tomar as asas do Dragão e desaparecer no alto, ou conservar as nadadeiras do peixe e desaparecer em baixo: há a liberdade de avançar ou de recuar. Eis o símbolo da liberdade e da independencia com as quais o universo se move e entra na sua via (Tao).

ele está sobre a situação superior do primeiro trigrama: é o momento da lenda onde, subindo ao topo das águas ruidosas, ele vai se lançar e aparecer como ele é na realidade. Se as escamas do Dragão saem das águas, então o homem conhece a ciência e a lei. É o "Dragão visível". A incessante atividade, chegada do alto de um trigrama, supera o abismo que a separa do segundo trigrama. Matéria para grande circunspecção.
Há fascinação e perigo em "ver o dorso do Dragão", quer dizer conhecer a Ciência e a Lei., se não se está suficientemente preparado pelos estados anteriores. Eis a vontade de expansão de todos os seres, muito perfeita posto que ela é o coroamento da atividade, mas muito perigosa, posto que ela pode alcançar à multiplicidade, quer dizer às formas e à desunião.
Ousado sobre o quarto traço, o Dragão tende a deixar o mundo, quer dizer desaparecer, posto que estando manifestado, se tornará , se permanecer, inteligível ao homem, e não mais será a Perfeição em si; mas ele não voa ainda; "ele é como o peixe que salta fora da água, com a vontade, mas sem os meios de desaparecer: é o Dragão igualmente pronto a se extinguir no éter dos espaços celestes e nas profundezas dos abismos, onde se encontra o lugar de seu repouso" (I Ching, cap. I § 14; comentário de Tsouhi).
A incessante atividade, o extremo do salto, pode tomar as asas do Dragão e desaparecer no alto, ou conservar as nadadeiras do peixe e desaparecer em baixo: há a liberdade de avançar ou de recurar.

Pousado sobre o quinto traço, o Dragão, inteiramente manifestado, age na sua plenitude e rege o mundo. Ele deixou a terra para desaparecer, mas sobre o ponto de alcançar os limites, ele ainda não despareceu, e sua influencia benfeitora se espalha por toda parte; é o Dragão voador, que, neste instante, propicia, apenas por sua visão, a idade de ouro da humanidade. É a expansão feliz do Universo na Totalidade que não cessa de ser a Unidade. A extrema atividade faz esta totalidade: a presença do Dragão faz esta unidade: e para falar uma linguagem menos metafísica, a criação existe inteiramente, mas ela não tem formas.
Lembremos que o quinto traço é o traço mediano do trigrama superior e que corresponde por simpatia ao segundo traço: sendo o segundo traço uma vontade de ação não formulada e o quinto traço é esta ação formulada.
Pousado sobre o sexto traço, o Dragão desaparece; "a altura conveniente, diz Tsouhi, é superada, a extrema unidade é alcançada, há excesso de elevação". Este comentário só deve ser entendido em relação ao universo visível. Eis o "Dragão que começa a desaparecer; e com ele começa a desaparecer também esta estase de perfeição absoluta, que aportava com ela este desgosto da impossibilidade de sua manutenção (por causa ao mesmo tempo da perfeição relativa e da extrema atividade do céu). "O que está completamente realizado, diz Confúcio, não pode durar muito". E assim o homem é tão imperfeito que a ideia mesmo de perfeição leva com ela o temor de perdê-la. Eis a criação tangível, ou melhor, a divisibilidade da unidade pela multiplicação das formas, e o estabelecimento da dualidade relativa da perfeição inteligível ao homem, pelo desaparecimento do Dragão que simbolizava a Unidade através do veículo universal.
É a estase atual que atravessamos, no ciclo ao qual pertence nossa humanidade. O desgosto desta humanidade engendra seu desejo único, denominado idealismo, e que é de fato o desejo de entrar de novo no estado de unidade.

domingo, 28 de julho de 2013

Preparar lo que se puede decir

 

Todo lenguaje es el acontecimiento de este decir en el que a un pueblo se le abre histórica-mente su mundo y la tierra queda preservada como esa que se queda cerrada. El decir que proyecta es aquel que al preparar lo que se puede decir trae al mismo tiempo al mundo lo indecible en cuanto tal.
 
Forma parte de la esencia del poeta que en semejante era es verdaderamente poeta
el que la poesía y el oficio y vocación
del poeta se conviertan en cuestiones poéticas. Es por eso por lo que los
«poetas deben decir expresa y poéticamente la esencia de

la poesia.

 Nosotros, los demás, debemos aprender a escuchar el decir de
estos poetas
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 «El poema» puede significar: el poema en general, el concepto de poema, válido para toda la literatura universal. Pero «el poema» puede significar también: el poema excepcional, marcado por el hecho de que él solo nos afecta por destino, porque él nos poetiza a nosotros mismos el destino en que estamos, lo sepamos o no, tanto si estamos dispuestos a aceptar un destino en él como si no.

EL POEMA

EL POEMA
Martin Heidegger
Traducción de José María Valverde en HEIDEGGER, M., Interpretaciones sobre la poesía de Hölderlin, Ariel, Barcelona, 1983, pp. 193-203

http://www.heideggeriana.com.ar/textos/el_poema.htm


Texto revisado de la conferencia para el 70.° cumpleaños de Friedrich G. Jünger el 25 de agosto de 1968 en Amriswil.

Hablar sobre el poema querría decir: desde lo alto, y por tanto desde fuera, averiguar qué es el poema.

¿Con qué derecho, con qué conocimiento podría ocurrir eso? Faltan ambas cosas. Por tanto, sería arrogancia querer hablar sobre el poema. Pero ¿qué hacer si no?

Más bien así: que nos dejemos decir por el poema en qué consiste su peculiaridad, en qué descansa.

Para percibirlo de un modo suficiente, debemos estar familiarizados con el poema. Pero verdaderamente familiarizado con el poema y el poetizar sólo lo está el poeta. El modo apropiado al poema de hablar de él sólo puede ser el decir poético. En él, el poeta no habla ni sobre el poema ni del poema. Poetiza lo peculiar del poema. Pero eso sólo lo logra cuando poetiza a partir de la disposición de su poema y poetiza únicamente esa misma.

Un poeta extraño, si es que no misterioso. Existe: se llama Hölderlin.

Sólo que él -así parece- nunca está tan cerca de nosotros que nos alcance su palabra, que nos haya alcanzado, que .seamos nosotros los alcanzados - y lo sigamos siendo.

En la poesía de Hölderlin experimentamos poéticamente el poema. «El poema» - esa palabra revela ahora su ambigüedad. «El poema» puede significar: el poema en general, el concepto de poema, válido para toda la literatura universal. Pero «el poema» puede significar también: el poema excepcional, marcado por el hecho de que él solo nos afecta por destino, porque él nos poetiza a nosotros mismos el destino en que estamos, lo sepamos o no, tanto si estamos dispuestos a aceptar un destino en él como si no.

Que Hölderlin poetiza al poeta y .su determinación, y por tanto lo peculiar del poema, lo suyo propio, lo muestran títulos de poemas como Vocación de poeta, Ánimo de poeta, y estos poemas mismos en sus diversas versiones.

Además, el pensar poético de Hölderlin trata también de la poesía en forma de artículos y esbozos: Sobre el modo de proceder del espíritu poético, Sobre la diferencia de los modos de poetizar, Sobre las partes del poema (StA IV, p. 241 SS.); y más ampliamente aún por la comprensión poética, en sus traducciones de las Tragedias de Sófocles, en las Observaciones sobre el Edipo, en las Observaciones sobre Antígona (StA V, p. 193 ss., 263 ss.).

Sólo que esos Artículos sobre... y Observaciones sobre... reposan en la experiencia poética de su poema y su determinación que constantemente se pone a prueba.


Lo propio de .su poema no lo ha inventado el poeta. Le ha sido asignado. Se acomoda a su determinación y sigue la vocación. Hölderlin la nombra en una variante del mismo canto.

En la obra poética de Hölderlin y su transmisión en manuscritos hay una situación especial con las variantes. Las palabras y giros que no se aceptan en el poema terminado, contienen a veces bruscas y profundas miradas penetrantes en lo peculiar de su poema. El modo de leer de los versos 45/46 de Pan y vino dice (StA II, p. 597):
Antes del tiempo! es vocación de los cantores sagrados y así
también sirven y transforman adelantándose a un gran destino.

«¡Antes del tiempo!» ¿Antes de qué tiempo dicen su palabra los poetas vocados a ello? ¿Qué es ese gran destino? Hölderlin habla del tiempo en referencia al cual el poeta habla antes de tiempo, en el cántico Mnemosyne (StA II, p. 193, v. 16 ss.):

Largo es / el tiempo.

Qué largo entonces, preguntamos. Tan largo, que llega incluso más allá de nuestra presente época sin dioses. Correspondiendo a ese largo tiempo, debe también estar mucho antes -aguardando hacia mucho más allá- la palabra antes de tiempo del poeta. Debe poetizar la venida de los dioses presentes.

Pero ¿debe entonces advertir todavía lo que está «presente»? «Advenimiento» no quiere decir aquí: haber llegado ya, sino el acontecer del advenimiento temprano. Los que así advienen se muestran en un peculiar acercamiento. En ese venir están a su manera en presencia del poeta: los que advienen son dioses presentes, en presencia. Los dioses presentes que lo son porque advienen así, claro que no son los dioses huidos que regresan, los dioses de la antigua Grecia, aunque también éstos permanecen presentes a su manera para Hölderlin, en cuanto que son los huidos, y afectan al poeta. El comienzo de la segunda estrofa del himno Germanía dice así (StA II, p. 149):
Dioses huidos! también vosotros, oh presentes, entonces
más verdaderos, vosotros tuvisteis vuestro tiempo!

Los presentes antaño más verdaderos no han pasado, no se han extinguido, sino que sólo se han apartado. El advenimiento de los dioses presentes no significa por tanto de ningún modo el regreso de los antiguos dioses. Del advenimiento que Hölderlin percibe poéticamente, habla más claramente otra variante de la elegía Pan y vino (StA II, p. 603, 19 ss.):
Larga y difícil es la palabra de ese advenimiento pero
blanco es (esto es, luminoso) el instante. Servidores de los celestiales son
pero, sabedores de la tierra, su paso es contra el abismo
de los hombres.

Si pudiéramos interpretar bien este texto, nos ofrecería una ayuda para percibir lo peculiar del poema que Hölderlin se aprestó a poetizar. Pero este texto ofrece para la meditación a que ahora nos atrevemos dificultades demasiado grandes; por tanto elegimos otra palabra del poeta.

Inmediatamente nos sale esa palabra, con toda la densidad poética de su articulación, al encuentro de nuestra pregunta por el poema de Hölderlin. Las palabras del poeta a continuación comentadas son también una variante, y precisamente de su gran cántico El archipiélago v. 261-268 (StA II, p. 111).

Son siete versos. Los publicó por primera vez Friedrich Beissner en 1951 en la segunda mitad del segundo tomo de la edición hölderliniana de Stuttgart (p. 646). El texto dice así:
Pero porque están tan cerca los dioses presentes
debo estar yo como si estuvieran lejos, y oscuro en las nubes
debe estarme su nombre; sólo que, antes que la mañana
se me ilumine, antes que la vida arda al mediodía,
me los nombro yo en silencio, para que el poeta tenga
su haber, pero cuando desciende la luz celeste
me gusta pensar en la del pasado, y digo: ¡florece sin embargo!

Tan pronto como Hölderlin tiene «lo suyo» está firmemente en la determinación que le corresponde, es el poeta de su poema. Preguntamos por la peculiaridad de éste. Ha ,de percibirse cuando nos metamos en las siguientes preguntas:

¿Qué es «lo suyo» para el poeta? ¿Qué es lo propio que le ha correspondido? ¿Hacia dónde le obliga a ir su necesidad? ¿De dónde viene esa necesidad? ¿De qué modo obliga?
Pero porque están tan cerca los dioses presentes
debo estar yo como si estuvieran lejos, y oscuro en las nubes
debe estarme su nombre ...

Oímos dos veces «deber». Una, al comienzo del segundo verso, otra al comienzo del tercero. «Debo» se refiere a la relación del poeta con la presencia de los dioses presentes. El otro «debe» se refiere al modo de los nombres con los que el poeta nombra a los dioses presentes. En qué medida el uno y el otro «deber» se corresponden mutuamente y afectan a lo mismo, esto es, el poetizar, se echará de ver en cuanto se haga más claro a qué modo de poetizar debe ajustarse el poeta.

Pero antes preguntamos: ¿De dónde viene esa obligación? ¿Por qué ese mandato de dos vertientes?

El primero de los siete versos da la respuesta, que abarca todo lo sucesivo:

«Porque están tan cerca los dioses presentes».

Es extraño, se pensaría, si los dioses presentes están tan cerca del poeta, entonces el nombrar sus nombres surgiría por sí mismo y no requeriría de ninguna apelación especial al poeta. Sin embargo el «tan cerca» no significa «suficientemente cerca» sino «demasiado cerca». El himno Patmos empieza:

«Cerca está y difícil de captar el dios.» El «y» significa «y por eso». El dios está demasiado cerca para que sea fácil de captar. La misma palabra que «cerca» [nahe] se manifiesta en «exacto» [genau]. El antiguo genau significa: aproximándose. En el mismo himno Patmos leemos en el v. 78 ss. (StA II, p. 167) estos versos difíciles de entender:
Amaba el portador de tempestades la sencillez
del discípulo y veía al hombre atento
el rostro del dios exactamente [genau] ...

Demasiado cerca, acercándose demasiado, están los dioses que advienen en la dirección hacia el poeta, en presencia de él. Patentemente, ese venir dura mucho tiempo, por eso es aún más opresivo y por tanto más difícil de decir que la presencia completa. Pues también ésta no la puede percibir el hombre inmediatamente recibiendo así el bien otorgado. Por eso se dice al final de la quinta estrofa de Pan y vino (StA II, p. 92/93 v. 87 ss.):
Así es el hombre, si está ahí el bien, y le provee de dones
un dios mismo para él, él no lo conoce ni ve.
Llevarlo debe por adelantado;

Hasta que se ha encontrado la palabra y ha florecido, es preciso sustentar lo difícil y pesado. Este difícil lleva el decir poético a la necesidad. Obliga. Viene de la «esfera del dios». El elemento de lo divino es lo sagrado. Por eso dice Hölderlin en el cántico A la fuente del Danubio (StA II, p. 128, v. 89 ss.):
Te nombramos, movidos por sagrada necesidad, te nombramos
oh Naturaleza!, y nuevo, como del baño surge
de ti lo divinamente nacido.

«Movidos por sagrada necesidad» - esas palabras sólo las oímos una vez en este lugar dentro de toda la obra poética de Hölderlin. Expresa la exigencia dominante por todas partes en ella sin expresarse y bajo la cual está su poetizar. Esas palabras significan para nosotros el «debe» que obliga al poeta «para que tenga su / haber».

¿Hacia dónde se encuentra el poeta obligado?
Pero porque están tan cerca los dioses presentes
debo estar yo como si estuvieran lejos, y oscuro en las nubes
debe estarme su nombre; sólo ...
...
me los nombro yo en silencio ...

El poeta se ve «obligado» a un decir que «solamente» es un nombrar en silencio.

El nombre en que habla ese nombrar debe ser oscuro.

El lugar desde el que debe nombrar el poeta a los dioses, debe ser de tal modo que los que han de .ser nombrados en la presencia de su venida le estén lejanos, y así precisamente sigan siendo los que vienen. Para que esa lejanía se abra como lejanía, debe el poeta retrotraerse de la cercanía de los dioses que le apremia y «nombrarles sólo en silencio».

¿De qué índole es tal nombrar? ¿Qué significa en general «nombrar»? ¿Consiste el «nombrar» en que algo sea dotado de un nombre? ¿Y cómo llega eso a tener un nombre?

El nombre dice cómo se llama algo, cómo suele llamarse algo. El nombrar está remitido a un nombre. Y el nombre resulta del nombrar. Con esa explicación damos vueltas en un círculo.

El verbo «nombrar» deriva el sustantivo «nombre», nomen önma. En él se esconde la raíz «gno», gnÇsiw, esto es, conocimiento. El nombre da a conocer. Quien tiene un nombre, es conocido de lejos. Nombrar es un decir, esto es, mostrar que abre como qué y cómo ha de percibirse algo y mantenerse en su presencia. El nombrar desvela, patentiza. Nombrar es el indicar que deja percibir. Pero si esto ha de ocurrir de tal modo que se aleje de la cercanía de lo que se ha de nombrar, entonces tal decir de lo lejano se convierte en decir en la lejanía para llamar. Pero si lo que hay que llamar está demasiado cerca, su nombre debe ser «oscuro» para que lo llamado permanezca preservado en su lejanía. El nombre debe velar. El nombrar es al mismo tiempo un ocultar en cuanto llamada desveladora.

La palabra «Naturaleza» que acabamos de oír es el nombre verdaderamente oscuro, velador y desvelador, en la poesía de Hölderlin. Si precisamente el nombrar está «divinamente obligado», entonces los nombres en que ella llama, deben ser nombres sagrados.

En la estrofa conclusiva de la elegía Retorno a la patria, que surgió poco después del regreso de Hölderlin desde Suiza -el poeta había residido allí sólo unos pocos meses como preceptor doméstico en Hauptwil, cercana aquí a nosotros- se dice (StA II, p. 99, v. 101):

Callar debemos a menudo: faltan nombres sagrados ...

Callar; ¿significa esto solamente no decir, permanecer mudos? ¿O sólo puede verdaderamente callar quien tiene algo que decir? En este caso callaría en suprema medida quien fuera capaz de dejar aparecer lo no dicho en su decir y precisamente únicamente mediante éste, y precisamente en cuanto tal.

Hölderlin confiesa:
... sólo que, antes que la mañana
se me ilumine, antes que la vida arda al mediodía
me los nombro yo en silencio ...

¿Va a significar esto que el poeta se guarde meramente para sí lo que hay que nombrar y no deje resonar nada de eso ante los demás hombres? Si así ocurriera, entonces se habría hecho infiel a su vocación poética.

El poeta se nombra «en silencio» «los dioses presentes». «En silencio» significa: el ajustarse a lo asignado, en cuanto que corresponde a la sagrada obligación y con ello se contenta. En el cántico de Hölderlin Fiesta de la paz vuelve a hablar una vez y otra la palabra «en silencio».

El nombrar silencioso ocurre «antes que la mañana / se me ilumine, antes que la vida arda al mediodía».

«Antes» es una determinación temporal, y precisamente del tiempo que se temporaliza sólo por advenimiento y cercanía, por huida y elusión de los dioses.

El nombrar por sagrada obligación debe acontecer antes que empiece el verdadero advenimiento en la mañana del día de los dioses y llegue a su plenitud en el mediodía, cuando arde el fuego en el cielo. En ese tiempo aparece «El dios envuelto en acero». Así dice Hölderlin en la estrofa final del Himno al Rhin (StA II, p. 148, v. 210 ss.). En el esbozo para una poesía posterior (StA II, p. 249, v. 6 ss.) habla del «acero de fuego del hogar con calor de vida». (El acero produce chispas y queda así referido al fuego.) «El dios envuelto en acero» significa: el dios envuelto en el fuego del cielo, o en nubes. El fuego celeste que ciega los ojos no es menos velador que la oscuridad de las nubes.

La determinación temporal «antes» significa ese «antes del tiempo» al que los poetas están lanzados por delante con su decir nombrador. «sólo ... / me los nombro yo en silencio» -el «me» podría referirse al Yo de la persona de Hölderlin, si no siguieran, excluyéndolo directamente, estas palabras en el mismo verso:
... para que el poeta tenga / su haber ...
«Me», es decir, al poeta le están asignados los dioses presentes, los que se acercan desde lejos, como los que hay que nombrar en la llamada. Su presencia demasiado cercana le obliga a retrotraer su decir nombrador al lugar ya citado de la lejanía.

¿Qué le aguarda allí? Hölderlin lo dice en el comienzo de su último gran himno Mnemosyne, que surgió el año 1800 (StA II, p. 197, v. 5 ss.):
Y mucho
como en los hombros
una carga de leños
ha de mantenerse.

La lejanía del dios que se acerca relega a los poetas en la dirección hacia ese lugar de su existencia donde se le hunde y desaparece a ésta el suelo, el fundamento sustentador. La ausencia de ese fundamento es lo que Hölderlin llama el «abismo». En la citada variante de la elegía Pan y vino que empieza «Larga y difícil es la palabra de ese advenimiento» dice Hölderlin de los «servidores de los celestiales», esto es, de los poetas:

Su paso va contra el abismo / de los hombres.

«Contra» significa: en dirección hacia el abismo.

Al poeta le está asignado durar tenazmente en el decir de la palabra del advenimiento: «para que tenga su / haber». El acento no está puesto sólo en la palabra «lo suyo», «su haber», sino igual y aún más en el «haber», palabra que está destacada en el comienzo de la siguiente línea. Se trata de llevar a plenitud el auténtico haber de lo propio. Se trata de «mantener la carga». Se trata de prevalecer y durar en la necesidad del decir nombrador del advenimiento. Se trata de llevar «en .silencio» ese nombrar.

Pero lo suyo no le pertenece tampoco al poeta como una posesión que se haya ganado él mismo. Lo suyo consiste más bien en que el poeta pertenezca a aquello para lo que se le necesita. Pues el decir del poeta está tomado, indicando, velando al desvelar, en su uso de dejar aparecer el advenimiento de los dioses, que necesitan la palabra del poeta para su aparición, para que empiecen a ser ellos mismos en su aparecer.

En la octava estrofa del himno El Rhin se dice (StA II, p. 145, v. 109 ss.):
Pues como
los más bienaventurados nada sienten por sí mismos,
es preciso, si está permitido decir
tal cosa, en los nombres de los dioses
tomando parte, que sienta Otro,
el que necesitan ellos...

Y en el canto surgido un año antes (en torno a 1800) El archipiélago dice Hölderlin (StA II, p. 104, v. 60 ss.):
Siempre necesitan, como los héroes la corona, los consagrados
elementos, para gloria, el corazón que sienten.

Gloria y glorificación han de pensarse aquí en el sentido pindárico y griego, como «dejar aparecer». El que siente por delante del corazón de los hombres que sienten, es el poeta. Es el Otro, el necesitado y usado por los dioses.

Con esa palabra arriesgada tímidamente sobre la necesidad de los dioses y el correspondiente ser necesitado del poeta, Hölderlin reposa en la experiencia básica de su condición poética. Para pensar esa experiencia conforme a la realidad, para preguntar por el dominio en que se desarrolla, todavía no se ha puesto a la altura debida el pensamiento hasta ahora.

El poema, el poema de Hölderlin reúne el poetizar como el nombrar, por sagrada obligación, necesitado por los celestiales, de los dioses presentes en ese decir articulado que, desde que lo ha dicho Hölderlin, habla en nuestra lengua, tanto si se lo oye como si no.

La oda titulada Animación, acabada por el poeta a comienzos del año 1801, empieza con una llamada: « ¡Eco del cielo!» Ese eco es el poema de Hölderlin.
oscuro en las nubes
debe estarme su nombre, sólo que, antes que la mañana
se me ilumine, antes que la vida arda al mediodía
me los nombro yo en silencio, para que el poeta tenga
su haber, pero cuando desciende la luz celeste
me gusta pensar en la del pasado y digo: ¡florece sin embargo!

Martin Heidegger

A iniciação ismailí ou o esoterismo do verbo


 
Aqui se maneja a tradução de María Tabuyo y Agustín López para o editorial Destino, Barcelona, 1995). Daí procedem estas explicações do grande islamólogo francês Henri Corbin:
·
Este conhecimento não se improvisa; o ta’wîl, a hermenêutica (interpretação criadora) dos símbolos, assim como o tanzîl, a revelação literal, não se inventam nem se reconstroem á golpes de associações de idéias comuns, ponderações eruditas ou silogismos. É preciso o HOMEM INSPIRADO, aquele que te põe na via única através da qual voce poderá encontrara PALAVRA PERDIDA. Este é todo o sentido da iniciação, que implica como postulado que o tempo dos profetas nãoestá terminado ainda... (p. 102)
·
''O tempo dos profetas nãoestá terminado ainda''; este é um dos lemas do ismailismo e do xiísmo duodecimano, que provoca a incompreensão e o escândalo dos sunnitas ortodoxos. Isso significa que a comunicação entre o Divino y o humano não é algo definitivamente encerrado ou concluído; os IMANES, investidos do carisma de uma hermenêutica espiritual, são os iniciadores de um novo ciclo profético (a walâyat), posterior aoProfeta Maomé (a Paz seja com ele) e baseado no ta'wîl. Sem eles, sem airmandade dos ''Amigos de Deus'', a Palavra dada pelo Profeta (a Paz seja com ele) aos homens estaria''PERDIDA'' , ou seja, vazia espiritualmente, ao restar reduzida á sua dimensão literal e alimentar o fanatismo e a superstição
 
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sábado, 27 de julho de 2013

AGENTE DE FUERZAS HETERÓCLITAS

 
A Gregorovius, agente de fuerzas heteróclitas, le había interesado una nota de Morelli: "Internarse en una realidad o en un modo posible de la realidad, y sentir cómo aquello que en una primera instancia parecía el absurdo más desaforado, llega a valer, a articularse con otras formas absurdas o no, hasta que del tejido divergente (con relación al dibujo estereotipado de cada día) surge y se define un dibujo coherente que sólo por comparación temerosa con aquél parecerá insensato o delirante o incomprensible. Sin embargo, ¿no peco por exceso de confianza? Negarse a hacer psicologías y osar al mismo tiempo poner a un lector –a un cierto lector, es verdad– en contacto con un mundo personal, con una vivencia y una meditación personales... Ese lector carecerá de todo puente, de toda ligazón intermedia, de toda articulación causal. Las cosas en bruto: conductas, resultantes, rupturas, catástrofes, irrisiones.

RAYUELA(Júlio Cortázar)
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sexta-feira, 26 de julho de 2013

A mística oblíqua na escritura de Clarice Lispector


Rodrigo Guimarães*
Pesquisador Fapemig-Unimontes
rodrigo.guima@terra.com.br
Há, para alguns entre os quais me incluo, certo recato (ou delito) na gestualidade que busca aproximar a escritura de Clarice Lispector ao gasto pano de fundo das narrativas existencialistas ou místicas (de feição cristã ou oriental). Por certo que a textualidade assinada por Clarice, em algumas de suas obras, sobretudo em A maçã no escuro e A paixão segundo G.H., refere-se a todos esses gestos e não somente. Não sendo exatamente contra o "todos esses gestos", mas inclinado ao "não somente", busco investigar, no âmbito deste ensaio, como o texto de A paixão segundo G.H. constrói um peculiar desmoronamento da linguagem e do sujeito, ao colocar em circulação virtualidades insuspeitas que nos possibilitam aceder aos domínios de experiências que supostamente carecem do comércio da palavra.
Ao reverso, a linguagem evidenciada em A paixão segundo G.H., ao encarnar o lugar vazio e pleno da palvra literária, mediante um processo de mútua exclusão ou de pressuposição recíproca, inaugura e valida o que se poderia chamar de "mística oblíqua" (a expressão não se esgota no achado semântico, mas coloca em questão o trâmite dialético imanência/transcendência e outros conceitos que já se encontram sob a proteção dos dias comuns).
Avessa à hemorragia existencial e à construção "sentimentária" das vivências de linguagem, Clarice Lispector não permite que suas personagens se embaraçem nas armadilhas de dizer o que as coisas são; apenas evocam pluralidades indefinidas das possibilidades de existir e a maneira como esses existentes nos afetam. Nesse sentido, a desmedida das coisas e dos processos de sujetivação é a "medida" do homem. No entanto, não há como negar que a distribuição da linguagem se faz sempre por cortes, como bem observou Barthes; daí a possibilidade, legítima sob certos aspectos, de situar a escritura de A paixão segundo G.H. como um percurso místico, assim como fez um dos mais abalizados críticos da obra de Clarice, Benedito Nunes.
No entanto, é preciso ler esse texto com acuidade para que sua grandeza não fique singularmente diminuída pela localização da escritura de PSGH em um endereço certo: a "mística" em sua acepção tradicional.[1] Mas, para entender o alcance dessa formulação, alguns pontos da mística cristã que se estabelece no horizonte da obra de Clarice, serão aqui apresentados.
As margens da mística
 
Senti e experimentei não ser para admirar que o pão,
tão saboroso ao paladar saudável,
seja enjoativo ao paladar enfermo,
e que a luz, amável aos olhos límpidos,
seja odiosa aos olhos doentes.


Santo Agostinho

 
O lugar é a palavra. O lugar e a palavra, é um só,
e não fosse o lugar, a palavra não existiria.


Angelus Silesius
Em seu texto de introdução à obra O livro da divina consolação e outros textos seletos, que se refere ao místico cristão Meister Eckhart (1260-1328), Leonardo Boff assinala dois caminhos de encontro com Deus: o do "seguimento" e o da "mística". No primeiro, percebe-se a prontidão em relação à vontade do Pai, em crer e aderir sem experimentar, ou em resistir, mesmo quando não se dispõe de nenhuma saída. A via mística, por assim dizer, diz respeito à vivência da unidade, seja pela irrupção de Deus no homem, seja pela imerção do homem no mundo.
O conhecimento advindo dessa experiência de participação em Deus está relacionado a uma forma intuitiva (e não representativa) de apreensão da realidade, portanto, opera sem a mediação da palavra ou do pensamento. Isso não implica, por sua vez, que não haja a multiplicidade e a diferenciação contida na unidade, o que nos possibilita, como consciências "autônomas", a nomeá-la. Se as especulações teológicas e metafísicas a respeito dessa unidade variam imensamente nas diferentes tradições místicas do Oriente ou do Ocidente, o que parece ser consenso entre elas é que o Uno é "em si", incriado, e a tudo envolve, inclusive os pólos dialéticos como Bem/Mal e todos os outros sistemas que se manifestam no múltiplo. Justamente por ser absolutamente "envolvente" e ultrapassar as esferas dialéticas ou qualquer forma disjuntiva, é que o Uno é referido pelos místicos mediante uma linguagem hiperbólica, repleta de paradoxos, injunções, ambigüidades ou mesmo contra-sensos. [2]
Santo Agostinho, palmilhando o caminho do "seguimento" (ainda que relate em Confissões o seu "encontro com Deus"), parece querer incluir na cera densa da imutabilidade, o vôo sutil das abelhas. Os olhos, límpidos ou doentes, correspondem à parte que se transforma frente à luz inviolável que emana de Deus. Para a retórica agostiniana, faz-se necessário que Deus seja imutável, pois tudo o que se pode corromper é inferior ao incorruptível, e o que não é suscetível de mudança é superior ao deteriorável. Não se trata aí de um simples alinhamento com a tradição platônica ou de tomar partido contra a escola heraclitiana (para Heráclito, o constante fluir sempre é recolocado em questão). A sofística agostiniana, que busca imobilizar o Uno, é necessária para compor um sistema de pensamento que tem como uma das metas driblar a grande pedra de tropeço da teologia cristã: o problema do Mal. [3]
Ao enquadrar tudo o que se transforma na categoria "corruptível" e hierarquizá-la como elemento inferior, Santo Agostinho não poderia deixar de repetir o gesto platônico de "rebaixar a escritura", esse campo espectral que não cessa de assombrar a regularidade dos discursos engastados nas paisagens.
Em Confissões, Agostinho relata que, quando criança, desembaraçava-se das "peias da língua" quando ia evocar a Deus. Já em sua obra O Mestre, o professor de retórica, em um diálogo à maneira platônica, busca demonstrar ao seu filho, Adeodato, que as "realidades significadas devem ser tidas em maior conta que os sinais. Com efeito, tudo o que é por causa de outra coisa, merece necessariamente menos estima do que aquilo por causa do qual é". [4] Nessa mesma obra, Agostinho cita também o texto bíblico 2 Coríntios 3,6: "A letra mata e o espírito vivifica". Se todo elemento transitório é colocado em suspeita, qual o sentido de se valer da palavra escrita para "Confessar a Deus o que Ele já conhece?". Seria apenas para "excitar" o seu afeto para com Deus e o daqueles que lêem suas páginas, como afirma Agostinho? Como não suspeitar de um homem que "publica a sua mortalidade, arrastando o testemunho do seu pecado?". [5]
Diferentemente do diálogo filial que Agostinho estabelece com a Igreja e com o Pai, muitos místicos cristãos, tais como Mestre Eckhart e Angelus Silesius, ostentam significativa autonomia em relação ao discurso hegemônico da tradição Católica. É possível identificar, em uma linhagem não oficial que ficou apartada da Igreja, um pensamento místico-especulativo de feição "cristã" que constitui um corpus textual denominado teologia negativa, que, grosso modo, vale-se de uma concepção de Deus no interior da qual não se aplicam proposições positivas, enunciados predicativos ou judicativos.
Essa forma de "designar" excluindo todas as categorias, atributos, qualidades e coisas constitui-se no que ficou conhecido como "método apofático", que, por sua vez, não utiliza apenas proposições negativas (ao dizer o que Deus não é), mas de uma teia complexa de paradoxos, autonegação de enunciados, duplas proposições e tantas outras formas de "consistências alógicas" evidenciadas no processo de enunciação e que excedem às possibilidades usuais da linguagem.
Não apenas Deus, mas também a consciência e o "eu" participam desse processo de esvaziamento referencial. Não é por acaso que, logo na abertura de sua obra A paixão segundo G.H., Clarice Lispector cita um pensamento de Bernard Berenson em que se evidencia a possibilidade de anulação completa da "consciência": Uma vida completa talvez seja uma que finalize em tão completa identificação com o não-eu que não existe eu algum para morrer.
Assim como na palavra poética, a maneira como se dá esse desabamento dos lugares de enunciação e de designação varia imensamente. Como atesta o personagem do conto "A escrita do Deus", de Jorge Luis Borges, "o êxtase não repete seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor; há quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa" (BORGES, 2000: 666).
Na mística de Eckart, por exemplo, mesmo a concepção do símbolo (ainda comprometida com a esfera representativa) é aniquilada por uma especulação filosófica bem mais matizada, embora o pensamento também não constitua a forma de "apreensão" do divino, pois um "Deus pensado" passa quando o pensamento passa, diz Eckhart. A imagem, forma como a alma "opera", tampouco é uma maneira legítima de relação com o Deus (que é totalmente ausente de imagens). Para Eckhart, não só toda linguagem é grosseira, mas há uma impossibilidade radical de sabermos o que Deus opera no fundo do ser. Se a alma atua com imagens próprias e que vêm de fora (do mundo sensório), resta-nos apenas a intuição de sabermos que somos - e a impossibilidade de conhecer o que somos e como somos.
Como um fio na trama do Uno, Eckhart tece a sua máxima: "Por isso é que seis não são duas vezes três, mais seis vezes um" (BOFF, 1999: 32). Portanto, tudo passa pelo Um que "desce" a todas as coisas, unindo-as, sem deixar de ser o Um. Se os seres possuem a negação em si (pois uma criatura não é a outra), o Um é "a negação da negação", portanto, pura afirmação, absoluta positividade à qual nada pode ser acrescentado.
E o homem, criatura que carrega em si a negação, acolhe a Deus mediante total pobreza e desprendimento. Tal disponibilidade dá acesso a Deus, que deve ser acolhido em alguma coisa. Só a pura "pobreza" da criatura, o esvaziar-se pleno (o não-ter, o não-saber e o não-querer) pode encontrar-se tão perto do Nada, "que coisa alguma é sutil bastante para nele ter lugar, a não ser Deus somente. [...] Mas o desprendimento toca tão de perto o Nada que não há o que se interponha entre o desprendimento perfeito e o Nada [...] Fora de Deus nada há senão o Nada" (BOFF, 1999: 149).
Difícil é localizar onde se encontra esse Nada (grafado com maiúscula) em uma formulação em que a imanência (o 6 x 1) adquire proeminência na maior parte dos textos de Eckhart. Como rastrear o zero, o Nada que se encontra "fora" do 6 x 1 (que a tudo envolve), se não evocarmos, a um só tempo, o pensamento da transcendência? Mas essa interrogação acarreta outra: há uma falta no Um (que "revela deficiência em Deus") ou Eckhart sede às necessidades da linguagem? Ou ainda, algo falta para que o círculo seja perfeito, como pontua Derrida? A essa dificuldade se abre outra: como buscar a Deus sob a ótica da trina negação (não-ter, não-saber e não-querer) se em toda busca está implicado um desejo em relação a um algo?
Eckhart, assim como Agostinho, também afirma a imutabilidade de Deus e a ineficiência da linguagem. No entanto, diferentemente do bispo argelino, o místico cristão tenta formular um pensamento que, no extremo, diz respeito a uma instância pré-reflexiva em que Deus sequer pode ser nomeado pelo homem. Por estar vazio de todas as coisas, Deus "é todas as coisas". O estar vazio da forma e ser a forma (todas as coisas) é uma maneira de golpear a concepção dual da realidade. Assim, Eckhart se esquiva da abordagem puramente apofática, pois, simplesmente dizer "o-que-Deus-não-é" não dissolve o binarismo forma/conteúdo, como se observa na afirmação de Ludwig Wittgenstein, em Tractatus Logico-Philosophicus: "a proposição positiva deve pressupor a existência da proposição negativa e vice-versa" (5.5151).
Na realidade, essa questão já foi colocada por Platão, quando denunciava a impossibilidade de pressupor os números pares sem que os ímpares estejam implicados. Isso significa, entre outras coisas, que o Nada referido por Eckhart, em cumplicidade estrutural com o pensamento da positividade absoluta (Deus), tem que ser grafado com maiúscula, pois diz respeito a um esvaziamento radical de qualquer conceitualidade.[6]
Contudo, para evitar uma possibilidade de ultrapassamento do Uno ou de acrescentar ou subtrair algo a Ele, Eckhart tem que retroceder ainda mais, e situar-se aquém do par Deus/Nada: "Mas quando por livre decisão saí e recebi o meu ser criado, aí sim tinha eu um Deus: pois antes que as criaturas fossem, Deus não era ainda ‘Deus’. Ele era, antes sim, aquilo que era" (BOFF, 1999: 191).
Um ser que "nada quer" certamente não pode, como declara Eckart, tomar a decisão de "sair" e receber o seu ser criado. É evidente que há uma lacuna na lógica discursiva que se vê impotente diante da pergunta: "como um ser que nada deseja pode buscar a Deus?". Eckhart elabora um tipo de construção circular para instaurar, como objeto do desejo, um desobjeto, ou seja, o seu próprio ser: "O que eu queria, isto eu era, e o que eu era, isto eu queria" (BOFF, 1999: 191). Como conceber um desejo sem nenhum movimento de apropriação ou que transporta em si sua própria suspensão?
Por certo que Lacan precisou criar um elaborado sistema para dar conta de um desejo que não pode ser realizado pelos objetos do mundo (pois o objeto de desejo não se encontra no mundo, não está "aí"), porém, é assinalado pelo movimento "inapreensivo" da cadeia significante que constitui o próprio sujeito.
O caso de Eckhart difere radicalmente da formulação psicanalítica do desejo. O místico cristão precisou construir um mecanismo, declaradamente sofístico, em que desejo e ser são equacionados em um tipo de relação fora do tempo: desejar é ser, ser é desejar. Só assim o "objeto" do total desprendimento se assenta no puro "nada". Esse apagamento das distâncias entre o desejo e o ser, ou a tentativa de anteceder o surgimento ontológico do sujeito e do objeto, retira o pensamento eckhartiano da imanência e o lança numa metafísica que não se vê capaz de apreender um domínio determinado do real (a não ser que essa realidade fosse circunscrita por um simples jogo de linguagem, no sentido wittgensteiniano, o que não condiz com um pensamento especulativo formulado no século XIII e que se encontra submetido ao Um e à "tradição" cristã). [7] Assim, sem abrir mão de um pensamento argumentativo, Eckhart tenta situar-se, por vezes, entre a razão e o que não é ela.
Angelus Silesius, ainda que não seja tão formalizador quanto Eckhart, apresenta, por sua vez, um dos textos mais vivos já escritos na "tradição" da teologia negativa. Mais afeito à palavra "poética", Angelus Silesius propicia uma reserva de linguagem inusual, pois se recusa, frontalmente, ao "devir-o-mesmo" do discurso revelado. Silesius transpassa o limite da linguagem ao desenraizar a linguagem como limite. Suas formulações não contraem núpcias com os discursos católicos ou pagãos localizados em um sítio historial bem demarcado e reabsorvidos pela soberania das semelhanças.
O "nem nem" de Silesius é muito mais difícil de ser apreendido do que a negação apofática, embora o místico cristão mescle diferentes procedimentos numa mesma cadeia de enunciados. "Deus não é verdade, nem unidade, nem um, ele não é aquilo que chamamos divindade" (SILESIUS, 1988: 21).
Percebe-se, na escritura de Silesius, que suas proposições (nem sempre negativas) deslocam o seu próprio lugar de elocução. Elas assinalam a possibilidade de uma abertura afirmadora ao postular que todo enunciado é "além daquilo que é", como formalizou Derrida em sua obra, pouco citada, Salvo o nome. Ao invés de igualar "desejo e ser", como o fez Eckhart, Silesius perde a sua "montagem humana", para reapropriá-la em um outro lugar, mediante uma supraconsciência que alega, "hereticamente": "Eu não sei o que sou. Eu não sou o que sei [...] Eu sou como Deus, e Deus é como eu. Eu sou tão alto quanto Deus: Ele é tão pequeno quanto eu" (SILESIUS, 1988: 10).
Não se trata, nesses aforismos desconcertantes de Silesius, de uma presunção do eu em querer se igualar a Deus - note-se bem: o nome de Deus está grafado com maiúscula, enquando o "eu" está em minúscula. Porém, essa voz que enuncia, ao tranbordar a si mesma, parece beirar-se a uma espécie de ateísmo, e, por meio de um dispositivo desmantelador, evoca um devir-nada que desagrega qualquer lugar de crença ou de dogma. Deve-se ir além de Deus, diz Silesius, caminhar para o deserto.
Como observa Deleuze, o espaço do deserto refere-se a um lugar em que a via não está traçada, portanto, inexiste a certeza conferida pela estrada. As pistas, conforme o sistema de referências escolhido, podem levar ao excedente em relação à linguagem, ao mais como heterogeneidade absoluta. Esse devir como engendramento do outro constitui, na escritura de Silesius, o gesto "possível" de ir ao "mais impossível ainda que o impossível" (DERRIDA, 1995: 19).
Não há aí contra-senso algum. Da mesma forma que a intuição, por meio de um movimento abstratizante, concebe o infinito composto pelos números naturais - "maior" do que o infinito formado apenas pelos números pares. O impossível mais que impossível é uma forma "excessiva" de dizer sobre a possibilidade infinda de ultrapassar, pela linguagem, qualquer ordenação sintética e totalizadora das possibilidades de nomear. Observa Derrida: "Salvo o nome que não nomeia nada que afirme, nem mesmo uma divindade, nada cujo ocultamento desloque qualquer frase que tente comparar-se a ele. ‘Deus’ é o nome desse desmoronamento sem fundo, dessa desertificação sem fim da linguagem" (DERRIDA, 1995: 37). [8]
Silesius tenta, como outros místicos da teologia negativa, salvar o nome, não um nome qualquer, mas o nome de Deus. Excetuando-o, ao mesmo tempo em que o coloca em circulação, inaugura-se aí o movimento de conjunção-disjunção, o sistema sem-com do qual fala Derrida, que se pauta em Deixar e deixar Deus ser "para além de ser qualquer coisa" (DERRIDA, 1995: 68). [9]
Portanto, salvar o nome de Deus é vivificá-lo e matá-lo a um só tempo, apagar o seu nome no mesmo golpe que o nomeia. Mas, como nos lembra Silesius, "nenhuma morte é sem vida".
As margens de G.H.
Mas se seus olhos não me viam, a existência dela me existia
- no mundo primário onde eu entrara,
os seres existem os outros como modo de se verem.
G.H.
Em A paixão segundo G.H., o "relato" faz-se meio de descoberta, e não como narrativa para expor o que já foi descoberto. Nesse sentido, talvez não seja propriamente um relato sobre um fato passado, mas o topos de uma palavra que é lugar (Silesius) em um passado-presente que não se restringe a relembrar, e sim em recriar para poder dizer:
...estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu [...] não quero me confirmar no que vivi. (LISPECTOR, 1964: 9)
O romance, narrado na primeira pessoa, parte de um não-começo (já precedido por traços) em que G.H. é lançada em uma vivência radical de "despersonalização" quando se dirigia ao quarto abandonado da empregada com o propósito de arrumá-lo.
Logo na abertura do romance, a personagem-narradora (G.H.) já anuncia o lugar de onde fala e a maneira como irá relatar o vivido: "É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que seja de novo a mentira de que vivo [...] Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo?" (PSGH, p. 10-11). G.H. admite que terá que correr o risco do acaso, abrir mão do destino e passar a contar com a probalidade.
Seu relato, entretanto, constitui o que Benedito Nunes chamou de "paradoxo egológico", pois, ao narrar o seu processo de "desapossamento do eu", o seu próprio eu se reconquista. O lugar onde ocorre esse descentramento do eu é o quarto de empregada, que adquire, ao longo do romance, dimensões psíquicas de imanência e de transcendência. O fio de pólvora que parece detonar toda a vivência de G.H. resume-se no encontro da narradora com as imagens rabiscadas com carvão na parede do quarto. A personagem depara-se com um desenho de um homem, de uma mulher nua e "de um cão que era mais nu do que um cão. Nos corpos não estavam desenhados o que a nudez revela, a nudez vinha apenas da ausência de tudo o que cobre: eram os contornos de uma nudez vazia" (LISPECTOR, 1964: 39). [10]
O que impressionou a personagem-narradora não foi apenas o traço grosso e a rigidez das linhas, mas o aspecto "atoleimado" das imagens, autômatos dissociados, figuras soltas, sem nenhuma ligação entre si, "como três aparições de múmias". O Quarto, significante móvel por excelência, ora é nadificado ("era de um igual que o tornava indeterminado"), ora se transforma em espaço de exclusão ("mesmo dentro dele, eu continuava de algum modo do lado de fora"), ou, ainda, é relatado como campo de pura imanência: "e quem entrasse (no quarto) se transformaria num ‘ela’" (LISPECTOR, 1964: 45-46). [11]
Se, por um lado, é possível identificar na escritura de PSGH um traço marcadamente "místico", assim com o fez Benedito Nunes, por outro, os elementos do "grotesco" e a palavra descarrilada da narradora muito se distanciam dos textos da tradição apofática de dicção cristã. A via de acesso ao Quarto, por exemplo, é relatada por G.H. como uma passagem estreita e difícil, que se dá por intermédio da barata. Enojada e seduzida pelo inseto, G.H., em um ímpeto desmedido, avança sobre a barata e a come.
A absurdidade da cena é minimizada em seu caráter de estranheza quando uma relação de completa imanência é relata, momento em que G.H. se identifica não só com a barata, mas com a sua perna, o silêncio gravado na parede, a borboleta mais antiga ou qualquer outra coisa-existência: "O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas" (LISPECTOR, 1964: 66).
Não há, em nenhum momento da vida pregressa de G.H., uma ascese, um desprendimento da criatura para receber Deus. Ao contrário, sua imersão no Ele acontece como um edifício que desaba após receber uma elevada carga de tensão colocada, dia após dia, sobre a sua estrutura. Esse "acúmulo de séculos automaticamente se empilhando" desmorona de súbito, e, depois do dilúvio, "sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas" (LISPECTOR, 1964: 68-70).
A narrativa de G.H., nesse pequeno trecho, sugere uma passagem ao ato, no sentido psicanalítico, em que o inconsciente rompe o dique da censura e invade a consciência de forma abrupta, levando o sujeito ao ek-stases (situação de estar fora de si mesmo). A posteriori, G.H. reconhece que, ao colocar na boca a massa da barata, não estava se despojando de si mesma como fazem os santos, mas estava querendo o acréscimo. Vê-se aí não a negação trina de Eckhart, mas a reafirmação do desejo que, em algumas passagens, se equaciona à maneira de uma fome absoluta: o "inferno do querer".
Mesmo os místicos cristãos mais subversivos, como Angelus Silesius, não tensionam tanto as imagens antitéticas como o faz G.H., chegando à completa inversão de sua carga valorativa com: "tenho saudade do inferno"; "Eu entrara na orgia do Sabath", entre tantas outras expressões que tangenciam o escatológico e o teológico, como pontuou Benedito Nunes. Sua "anti-mística" chega até a identificar em Deus uma necessidade infinita, uma violência descomunal: "Com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós, Ele nos escolhe e nos violenta" (LISPECTOR, 1964: 152).
Outras vezes, G.H. é guiada pelo nojo ou pelo desejo de matar, cujo gesto a consome de prazer. Mas assassinar o outro (a si mesma) é uma forma de roubar-lhe a morte, de desdobrar o eu no "mim" e contemplar tudo como um ele, inclusive o eu. [12]
Nesse jogo escritual de PSGH, têm-se, portanto, o eu, o mim, o ele e o Quarto, que é o lugar-palavra do relato e que exige uma "atualidade simultânea" das outras três instâncias precedentes, bem como um tempo que flui em todas as direções (KAPLEAU, 1978: 310). Há um mim que enuncia sobre um ele - "uma barata nunca se descontinua" -, assim como um eu que diz: "ficar dentro da coisa é loucura". Daí a dis-tensão incomum do relato de G.H., movimento que não encontra equivalência na mística oriental ou ocidental.
No entanto, é possível identificar ressonâncias da gestualidade "atormentada" de G.H. nas palavras de Mallarmé: "Ao sondar o verso a esse ponto, encontrei, lamentavelmente, dois abismos que me desesperam. Um deles é o Nada... (a ausência de Deus, o outro é a sua própria morte)". [13]
Essa possibilidade das coisas desconexas, das múmias, "de uma janela solta e três maletas", como diz G.H., se assemelha ao Nada de Mallarmé, que, por sua vez, não estabelece relação alguma com o Nada da mística especulativa de Mestre Eckhart (o Nada eckhartiano, como foi visto, se encontra em pressuposição recíproca com Deus).
A vivência intuitiva desse Nada que fissura o discurso, que abre um espaço de incomunicabilidade absoluta entre instâncias, é mais bem explicitada nos escritos dos loucos: "Deus não sabia nada sobre os homens vivos [...] Ele precisava apenas manter comunicação com cadáveres". [14]
Obviamente que o Nada, como pura imanência, existe somente como abstração, pois não pode ser concebido à revelia de um crivo que lhe extrai alguma coisa, como observou Deleuze.
No entanto, é justamente a percepção desse Nada capaz de abrir fendas no discurso representativo que possibilita à voz enunciativa (pluralizada ou não) deslizar entre o que é e o que não é (sem eleger os extremos como lugar de morada). Portanto, nem a bala perdida, nem Deus como anti-acaso.
O que difere a palavra de G.H. do método apofático é que o segundo fala sempre em nome do Pai e repousa na verdade. Mesmo valendo-se de paradoxos, apófases ou outros recursos de indeterminação semântica e ontológica, sempre é possível identificar, na teologia negativa, certas consistências que fazem com que a enunciação se dê n’Ele, com Ele, e, sobretudo, por Ele. Em outras palavras, o parricídio nunca se consuma plenamente.
Se matar o Pai não é possível, resta-nos, em um "ato ínfimo" e deseroicizado, dar-lhe um Quarto, um nome (salvo o nome), independente de uma ordem a criar:
[...] e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. - - - - - - (LISPECTOR, 1964: 182) [15]
A palavra literária é justamente o que subverte a última proposição do Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se silenciar" (Proposição 7)
G.H. não se cala. A vida Nela não tem o seu nome. E, frente a uma boca comendo, não adianta dizer o que se vê - o acréscimo dos acontecimentos -, pois o que se vê não habita o que se diz. Mas o lugar é a palavra. E se a hospitalidade precede a propriedade, como afirmou Derrida, é preciso receber a fome em seu fio de sede e ir ao mais impossível que o impossível
NOTAS
[1] Ao me referir à obra A paixão segundo G.H., adotarei, ao longo deste ensaio, a abreviação PSGH.
[2] Esse deslizamento da linguagem abala a ontologia semântica e, por extensão, a sobrecarga de verdade e as logicidades que repousam nas certezas típicas da palavra eclesial e de suas instituições. Daí a afirmação de Leonardo Boff: "A instituição religiosa assentada particularmente sobre seguranças que exigem os mecanismos de controle, dificilmente, convive com a experiência dos místicos". Cf. BOFF, Leonardo (Org.) 1999, p. 27. Essa relação imediata com Deus libera o místico da necessidade de se submeter a qualquer palavra de autoridade, crença ou dogma, o que ocasionou diversas acusações e perseguições por parte da Igreja. Mestre Eckhart, por exemplo, não saiu ileso das perseguições da Igreja Católica.
[3] Em um segundo momento das Confissões, Santo Agostinho faz belas manobras para tentar demonstrar a inexistência do mal enquanto substância. Partindo de outros pressupostos, Agostinho reformula sua argumentação nos seguintes termos: "Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse. [...] Se, porém, fossem privadas de todo o bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e já não pudessem ser alteradas, seriam melhores porque permaneceriam incorruptíveis". Agostinho finaliza seu edifício argumentativo reconhecendo a primazia dos elementos superiores sobre os inferiores, mas "a criação em conjunto vale mais que os elementos superiores tomados isoladamente". Cf. AGOSTINHO, 1980, p. 140-141.
[4] Nesse diálogo, Santo Agostinho tenta persuadir Adeodato no sentido de que "mais se aprende o sinal por meio da realidade conhecida, do que a própria realidade por um sinal dado". Em alguns momentos, Agostinho é ainda mais enfático e chega a afirmar que, pela palavra, nós não aprendemos nada. Cf. AGOSTINHO, 1980, p. 81, 93-94.
 
[6] A referência ao vazio-pleno, ou ao sem-forma que é a base de todas as formas (sunyata) é uma constante na mística budista. Também em relação à consciência, em seus estados mais altos, "não encontramos nem identidade nem não-identidade" (cf. GOVINDA, 1989, p. 27). De maneira próxima à mística cristã, a experiência da Unidade (e não de Deus) está além de toda conceitualização, porém, não se trata de uma vivência estática, sendo que a percepção da "iluminação" é "capaz de crescer infinitamente". A não essencialização dos sistemas e categorias alcança sofisticada formulação metafísica em algumas escolas budistas, como no Zen, por exemplo, quando Dogen Kigen (1200-1253) escreve: "O tempo tem a qualidade de passar, por assim dizer, de hoje para amanhã, de hoje para ontem, de ontem para hoje, de hoje para hoje, de amanhã para amanhã" (cf. KAPLEAU, 1978, p. 310).
[7] É verdade que o pensamento de Eckhart ultrapassa as formulações teológicas da Igreja de seu tempo. E, mesmo se opondo a muitos "mestres", em momento algum Eckhart contesta as Sagradas Escrituras. No entanto, a dicotomia entre corpo e espírito - e tantas outras que fundam uma lógica binária -, é evidenciada em algumas passagens de seus escritos, bem como palavras que pessoalizam Deus (tais como "Ele prefere", "Deus gosta", "Ele despreza", etc.).
[8] Salvar o nome, no contexto do ensaio derridiano, permite uma "leitura dupla e simultânea": de salvar ou de excetuar o nome: Elle sauf lê nom. Por mais que haja, como frisa Derrida, um "desmoronamento sem fundo", assinalado pelo significante Deus, é possível identificar certas "consistências" nos paradoxos e apófases presentes nos textos dos místicos cristãos.
[9] Derrida utiliza-se das palavras quitter e laisser no sentido de "deixar". Mas a primeira evoca um gesto mais vigoroso, ativo, de liberar, romper, partir, expatriar, enquanto laisser sugere uma forma mais passiva de não intervenção, de consentir, de ceder, etc. A escolha que fiz foi a de grafar a forma mais ativa com a inicial em maiúscula.
[10] Assim como "o mais impossível que o impossível" de Silesius, o "mais nu" clariciano traz em si a possibilidade de subtrair-se ou desbordar-se indefinidamente. Ao longo do romance, esse tipo de logicidade é reafirmado sob diferentes roupagens: "se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? A lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda mais. E se eu olhar a claridade com uma lente, com um choque verei apenas a claridade maior" (LISPECTOR, 1964: 20).
[11] Na interpretação de Benedito Nunes, após a vivência do êxtase por G.H. (momento em que não há diferença entre sujeito interno e objeto externo), a personagem entra em uma "existência em terceira pessoa, na qual ‘os seres existem os outros como modo de se verem’. A diferença entre sujeito e objeto reaparece interiormente como desdobramento do eu num ele, que exerce a ação de existir. [...] O eu não se relaciona com um tu, mas com um ele que também é. [...] O outro (vida, mundo, nada), que o sujeito também é, manifesta-se no vácuo do eu desdobrado". Esse outro (desdobramento do eu) "passa a existir reflexivamente na forma do mim. Instância ambígua do diálogo, nem completamente pessoal (falo de mim a mim como se falasse de um ele), nem inteiramente impessoal (falo a mim mesmo como se falasse a um tu). O mim será, para G.H., o lugar da identidade plena do sujeito e do outro" (cf. NUNES, 1995, p. 73, 74).
[12] Todos esses rasgos anteriormente citados distanciam a mística de PSGH da tradição apofática ocidental, o que leva Benedito Nunes a identificar traços da tradição hindu e budista no misticismo da personagem G.H.: a impessoalidade de Brama ou o vazio nirvânico confere a essas místicas uma concepção do Uno não como "ser pessoal, providencial e transcendente" (NUNES, 1995: 68).
[14] Sentença do "esquizofrênico" Presidente Schreber, estudado por Freud. Cf. BRANCO, 1988: 107.
[15] A voz "tímida" de G.H. está completamente nua. Há nela uma autoridade advinda de uma disposição a receber, o que difere da impostação autoritária de Eckhart: "E me oponho a todos os que contestam tal juízo e não lhes devo explicação. Pois o que disse é verdadeiro e a verdade o fala por si" (cf. BOFF, 1999: 200).
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NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1995, 171p.
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* Rodrigo Guimarães. Doutor em Literatura Comparada pela UFMG. Pesquisador bolsista-Pós-Doutor vinculado à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) e à UNIMONTES (Universidade Estadual de Montes Claros)
© Rodrigo Guimarães 2008
Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid