quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Vinte e nove prólogos terá meu romance imprologável






 Imara Bemfica Mineiro
Doutoranda em Literatura Comparada / UFMG

 
http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2016/16%202/TEXTO%204%20IMARA.pdf

“Toda a Arte está em discussão como um todo. Eu sou, pois, mais bem um rotineiro
que um inovador em duvidar seriamente dela”.10 Assim, em um texto escrito por volta de 1927, Macedonio diagnostica tanto esse esforço epistemológico no qual se empenha o campo artístico, quanto algo que se aproxima muito da ideia de “tradição da ruptura”, que, em suas palavras, seria uma “rotina de inovação”. A dúvida que marca o olhar teórico de Macedonio sobre a arte em discussão aponta para o entendimento de que a Arte11 estaria em crise, tratando de olhar criticamente para si mesma, duvidando de si mesma. Sendo assim, Macedonio diz que “na Arte, maior confiança merecem as obras de dúvida de arte do que as
obras de certeza de arte”. Duvidar da arte é olhar para ela de maneira crítica, e, de acordo
com ele, tanto mais artística é a obra quanto mais dúvidas gere acerca de seu caráter artístico. No prólogo “Aos críticos”, de Museo de la Novela de la Eterna, os críticos são definidos como “eternos esperadores (sic) de perfeição” referindo-se à sua disposição em esperar que apareça algo perfeito. Esperam porque ainda não encontraram – desde Kafka, segundo Macedonio – nada que os satisfizesse, e por essa novidade continuariam esperando eternamente. Aquele que espera, espera por algo que não está aí, por algo diferente daquilo que contempla no presente. Esperar pela novidade é, portanto, uma aposta no futuro. Nesse sentido é que Macedonio, em outro prólogo do mesmo romance, pede aos críticos a gentileza
de considerar sua idade avançada e não publicarem resenhas que, não satisfeitas com o romance em questão, afirmem que seu autor seja um escritor de futuro promissor. Tal é a caricatura do crítico traçada pelo romance, como personagem impiedoso e incansável de
esperar pela perfeição. Outra característica que é possível ler nesse personagem é a sua
distância da esfera teórica ou literária (talvez por isso possa ser lido como caricatura). Esse personagem-crítico esboça a figura de alguém que se dispõe a emitir o juízo (questionado por
Said) de anúncio da novidade, e com isso ocupa o lugar fictício daquele que confere à arte a certeza de seu caráter artístico (criticado por Macedonio).
A afirmação de Said de que “a crítica é tanto uma forma de arte, como uma forma de
crise” parece estar também próxima à ideia de Macedonio ainda que novamente parta de outro lugar. 

Talvez seja possível sugerir, a partir da leitura de Macedonio, que para ele a
Arte seria tanto uma forma de crítica, como uma forma de crise, daí o emaranhado dessas noções que parecem se definir umas pelas outras. Daí também o fundamento da leitura do prólogo “Aos críticos” como o traçado de uma caricatura daquilo que se veste e se apresenta como crítico, mas que ao colocar-se a parte das reflexões teóricas e literárias não teriam efetividade em seu olhar crítico.
Conforme Vadimir Safatle, as obras de arte modernas “fiéis à forma crítica” se
organizariam a partir do desvelamento de seu próprio processo de produção.Esse
desvelamento estaria pautado na concepção de que a crítica funciona como dispositivo de distanciamento da produção artística (também crítica e teórica) em relação a conteúdos miméticos. Essas características apontadas por Safatle aparecem, de fato, cumprindo papéis cruciais na proposta estética de Macedonio: “a idéia de classificar e hierarquizar assuntos de arte é uma desgraça; é deprimente da arte impor e valorizar assuntos quando seu valor está na execução”. O distanciamento de qualquer intenção mimética se explicita, no caso do romance Museo de la Novela de la Eterna, quando este é definido em um de seus prólogos, como um manifesto contra o realismo, assumindo o absurdo como sua matéria-prima e solicitando aos leitores que não se empenhem em desenredar os sucessos confusos e independentes de qualquer lógica causal. Um dos fatores que dificulta a leitura do Museo de la novela de la Eterna como
romance é, sem dúvida, a infinidade de prólogos, anúncios, considerações que precedem os
capítulos, os quais, por sua vez, frequentemente expõem os personagens no interior do
romance, discutindo seus papéis, suas condições de personagens, etc. Mais do que um
romance, portanto, o Museo é um projeto de romance, um apanhado de esboços17 teóricos sobre o romance, leitor, personagens, estética e sobre qual seria a função da literatura. Como lemos no comentário de Macedonio sobre inovação, a moda de então era a obsessão pelos personagens de maneira que ele mesmo considera fazer algo sobre isso. De fato, essa vem a
ser uma das propostas do Museo, que começa a ser escrito na década de 1920 e em processo de escrita permanece durante o resto da vida do autor.18
“Vinte e nove prólogos terá meu romance imprologável [...], desenvolvo nele teoria da
Arte e doutrina do Romance...” comenta Macedonio Fernández em uma correspondência a
Ramón Gómez de la Serna.19 E em outra carta, a Alberto Hidalgo, afirma que os anúncios que fazia em volantes distribuídos sobre sua “Novela Futura” já eram o próprio romance.20 Esses dois eventos retomam a questão da definição da obra de Macedonio, bem como apontam para o fato de que tanto o romance e a teoria estão imbricados, quanto a propaganda do romance já se constitui como o próprio romance, criticando a forma tradicional e fechada do gênero realista. Macedonio diz que seu livro possui o “relato cerzido por cortes horizontais que
mostram o que os personagens do romance fazem a cada instante''

Tomando o Impossível como critério de Arte, esse relato se propõe a ser incoerente e a desnudar-se diante do leitor a
todo o momento. Dessa maneira pretende afastar-se de qualquer traço de realismo, de toda
intenção mimética. Se a Literatura tem, para Macedonio, a função de desestabilizar as certezas do leitor, de provocar algum sentimento de imortalidade, esses sentimentos não são incitados pelo estímulo sensorial (pela descrição de sentimentos com os quais o leitor se identificaria – uma espécie de mimese das emoções).
À literatura sentimental, realista e dramática, Macedonio atribui a alcunha de
Culinária. O estímulo do que ele considera Literatura propriamente é desencadeado pela exposição dos procedimentos artísticos. Essa exposição, em lugar de buscar uma identificação direta do leitor através de uma realidade representada pela arte, busca justamente o abalo
dessa identificação de maneira que o leitor chegue a duvidar de qualquer relação sua com o mundo exterior. De acordo com Safatle, a exposição do modo de produção é o artifício do qual lança mão a arte moderna para enfatizar seu distanciamento da atividade mimética e reforçar a ideia de que se define pela autonomia em relação às “representações naturalizadas
na realidade social”.23

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Pelo re-encantamento do mundo

 
As questões levantadas nesse texto mantêm, parece-me, sua atualidade e sua urgência:
"A extrapolação das tendências atuais na redução da biodiversidade implica um desfecho para a civilização dentro dos próximos cem anos." E o único caminho para reverter esse quadro, propõe o biólogo Paul R. Ehrlich"talvez seja uma transformação quase religiosa, que leve à apreciação da diversidade por si própria, independentemente de seus benefícios diretos para a humanidade". É o mesmo caminho proposto pelo coordenador da obra, o biólogo Edward O. Wilson", escreve Washington Novaes, jornalista, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 18-07-2008.

Eis o artigo.


A recente divulgação de mais um relatório da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO) da ONU, assim como novos congressos sobre desertificação no Brasil, trazem de volta o tema. O relatório da FAO, com um balanço dos últimos 20 anos, diz que a degradação do solo no mundo - medida pelo declínio nas funções e na produtividade de um ecossistema - já atinge mais de 20% das terras ocupadas pela agricultura, 10% das pastagens, 30% das áreas de floresta. E afeta 1,5 bilhão de pessoas, com insegurança alimentar, perdas agrícolas, perda da biodiversidade, necessidade de migrar. Também influi no clima, porque a perda de biomassa e de matéria orgânica no solo desprende carbono. E leva à redução do fluxo hidrológico, porque se reduz a capacidade de a terra desmatada reter água. A China está com 457 mil km2 afetados; a Índia, com 177 mil; a Indonésia, 86 mil; Bangladesh, 72 mil. Para o Brasil, o relatório aponta 46 mil km2, embora nossos relatórios nacionais mencionem 180 mil km2 em diferentes etapas do processo de desertificação, principalmente no Semi-Árido nordestino, mais Espírito Santo e Minas Gerais (11 Estados ao todo).

Os relatórios apontam situações difíceis em áreas que o mundo se habituou a considerar desenvolvidas e ausentes de questões dessa natureza. É o caso da Espanha, por exemplo, onde um terço do território é considerado como de "risco significativo" nessa área, principalmente por causa da escassez de água. Até o fim deste século, prevê-se que o fluxo hidrológico ali, especialmente no sul do país, diminua 22%. Barcelona, cidade admirada e invejada, enfrenta uma escassez inédita, que a leva a disputar com outras zonas as águas do Rio Ebro (que quer transpor e captar, para diminuir a crise). E até a proibir que se encham piscinas.

A Austrália é outra área com graves dificuldades, já que o fluxo das principais bacias hidrográficas caiu 41% - é o mais baixo em 117 anos, desde quando se têm registros - e afeta a produção de frutas, grãos e outros bens. Certamente é essa uma das razões que levaram o país (o maior exportador de carvão no mundo) a mudar sua posição e aderir ao Protocolo de Kyoto, sobre mudanças climáticas. As previsões dos cientistas para lá são de que as "ondas de calor" se tornarão muito mais freqüentes e afetarão ainda mais o fluxo dos rios (cada grau Celsius de alta na temperatura média pode reduzi-lo em 15%, dizem alguns cientistas).

O fato é que o drama da desertificação avança à razão de 60 mil km2 por ano no mundo. E seriam necessários, diz a ONU, pelo menos US$ 12 bilhões anuais para programas de informação, monitoramento e recuperação de áreas. Mas esses recursos não estão disponíveis, embora os prejuízos anuais sejam muito maiores que isso, sem falar no drama das migrações e conflitos que provocam. No Brasil mesmo, os R$ 500 mil anuais teoricamente disponíveis para o Fundo de Iniciativas Sociais no Semi-Árido têm sido reduzidos a ridículos R$ 25 mil/ano. Quando deveríamos ser muito mais cuidadosos. Além do Semi-Árido, as imagens de satélites mostram cada vez mais pontos problemáticos em todo o território nacional, da fronteira gaúcha ao sudoeste goiano. E já há alguns anos o Ministério do Meio Ambiente apontava uma perda de 90 milhões de toneladas anuais de solo fértil por ano no Cerrado, por causa de erosão; no Rio Grande do Sul, 80 milhões/ano; no País todo, 1 bilhão de toneladas anuais. É possível que o plantio direto nas lavouras de grãos tenha reduzido esses números, mas eles ainda são altos. E a área de pastagens degradadas é enorme: em Goiás, na última negociação com o Fundo do Centro-Oeste, foram apontados 70% das pastagens em algum estágio de degradação. No mundo, estima-se que a perda seja de 23 bilhões de toneladas anuais de solo. E leva 30 anos para o solo em descanso recompor uma polegada de terra fértil.

Enquanto tudo isso acontece, ganha mais corpo uma discussão que ao longo das últimas décadas se desenvolveu timidamente, confinada quase apenas a áreas ditas "ambientalistas". Um dos primeiros a expô-la foi o biólogo Paul R. Ehrlich, da Universidade de Stanford, na Califórnia - segundo quem o problema da relação do ser humano com seu meio físico e com as espécies das quais depende só terá encaminhamento com o que chama de "recuperação do sagrado", quando nossa espécie reconhecer o direito à vida de todas as espécies, independentemente de sua utilidade para os humanos (como alimentos ou materiais). Diz ele (Biodiversidade, Editora Nova Fronteira, 1997) que "a causa básica da decomposição da diversidade orgânica não é a exploração ou a maldade humana, mas a destruição de hábitats que resulta da expansão das populações humanas e suas atividades". Para ele, "muitos desses organismos que o Homo sapiens está destruindo são mais importantes para o futuro da humanidade do que a maioria das espécies sabidamente em perigo de extinção; as pessoas precisam mais de plantas e insetos do que precisam de leopardos e baleias (sem querer com isso menosprezar o valor dos dois últimos)". Seu prognóstico: "A extrapolação das tendências atuais na redução da biodiversidade implica um desfecho para a civilização dentro dos próximos cem anos." E o único caminho para reverter esse quadro "talvez seja uma transformação quase religiosa, que leve à apreciação da diversidade por si própria, independentemente de seus benefícios diretos para a humanidade". É o mesmo caminho proposto pelo coordenador da obra, o biólogo Edward O. Wilson, em outro livro - A criação, Companhia das Letras, 2007) - já comentado neste espaço. Wilson acha que a única possibilidade de mudança rápida no padrão civilizatório, capaz de rever os rumos, está numa aliança entre a ciência e a religião.

Pois não é que o Equador está discutindo incluir em sua Constituição os "direitos da natureza"?

Extraído de:
http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=15337

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

OLHO DA CÂMERA (10)



Cidade do São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Inventei um personagem para um filme. Tenho dezesseis anos de idade e minha idéia fixa sobre o personagem em questão é de que um aventureiro minimamente sensato se aventura primeiro na própria imaginação, lendo e estudando mapas dentro de um quarto isolado do mundo, nos diálogos com outros personagens obscuros sobre rotas de garimpo e em uma ou outra nuance que o olho-da-câmera possa transformar numa imagem de vídeo emocionalmente viva e reveladora. Só depois ele parte! Falei sobre isso ontem á noite no curso de roteiro que estou fazendo na Casa de Cultura Alemã, no Corredor da Vitória, ao defender a idéia central do meu pré-roteiro de curta-metragem. Mas não prestaram muito atenção, por causa da minha idade. TOMADA EXTERNA: (GAROTA: fique quieto com as mãos, que aqui todo mundo me conhece. JACK (irônico): Desculpe, espera um pouco (agora, um pouco atrapalhado andando ao seu lado, está examinando a garota, vinte anos, corpo bem feito, vestida modestamente, com uma rústica animalidade na fisionomia: entre o Mercado do Peixe e a Praça do Rio Vermelho, passando pelo antigo casarão de Jorge Amado e Zélia Gattai com um cigarro entre os dedos. ---- Está muito á frente do seu tempo(...)". Há meses, venho pensando em como fazer para que meu personagem saia para o mundo com um mínimo de dignidade, nada de brigas entre familiares, desespero financeiro, desilusão amorosa, etc. Nada disso: quero provar simplesmente que no mundo há pessoas assim, que de repente perdem a confiança num mundo movido por uma diabólica sujeira de bastidores e se vão com uma alegre excitação na alma e pronto (GAROTA: ei, vamos indo que vai começar á chover!) e não são poucas... - (e, em seguida, um tanto intimidada com a elegancia do automóvel que passou com o farol alto do nosso lado: -Que carrão!) - alegre excitação na alma por estar mudando o rumo da realidade segura e petrificada de cada dia através de um sistema de filtragem do imprevisível que é energia vital pura, eu disse isso no curso de roteiro ontem á noite e subitamente uma morena magra de óculos fundo de garrafa me questionou dizendo que eu estava com medo de poetizar o personagem e que ele iria acabar ficando sem graça e sua aventura seria entendida como um naufrágio existencial comum. Ela era muito mais velha do que eu, de modo que eu fiquei sem saber o que dizer. (JACK: -Amanhã converso com você, o que você pretende dizer com isso?), leio esse diálogo no meu pré-roteiro e imediatamente retruco á ela: --- O que você pretende dizer com isso(?) ---, a morena, inclinando-se em sua mesa e ajeitando os óculos em seu rosto, respondeu: --- Sei lá! ---, e voltou á uma atitude passiva e indiferente. (GAROTA: - Não tem rádio no carro?) - JACK, tomando o volante, fecha a porta e liga o carro: -Vamos embora dessa cidade, JÁ! - Olho em volta e estou discutindo sozinho dentro da minha mente com a morena de óculos fundo de garrafa, quero um diálogo de despedida diante de alguma coisa pegando fogo na frente de um terreno baldio, talvez um bar com ciganos e garimpeiros mau encarados, discutindo dívidas em voz alta. Talvez um tiroteio, correria, gritos. (JACK, ombro á frente ecoando rio abaixo: - Não pense que estou satisfeito com essa farra psicodélica(...) não estou satisfeito com isso, meu alter-ego não é um alucinado fajuto balbuciando doideras para as estrelas do mar: ele tem um dente de ouro no fundo da boca e tudo é importante para ele na vida, o peitoral contraído contra os feixes do cordão de prata e o grande crucifixo, indicando que ele é um mensageiro do espírito em luta contra as potências das sombras que tentam confundir e angustiar as pessoas promovendo falseados mitos de sucesso através do sistema de valor social (universidades, mídia, partidos políticos e multi-nacionais: Davi contra Golias) que controlam o espaço interno das pessoas contaminando a linguagem com um jogo onde espelho reflete espelho continuamente e as pessoas só conhecem os reflexos umas das outras, uma pesada imagem própria que temos todos que carregar e defender diante dos outros, que condiciona todos os nossos atos e reações, que é como um bicho feito de energia estranha para cada um, flutuando sobre a nossa cabeça, controlando as imagens mentais dentro de nós, se alimentando de nossa energia psíquica á cada reação nossa de medo, raiva, vaidade, preocupação, etc(...) ah, se cada um pudesse ver com os próprios olhos como funciona isso, essa medonha companhia de todas as nossas horas, nos tratando como comida e nos mantendo todos presos nessa condição para poderem fazer seu banquete dia após dia(.) JACK vê o CONTROLADOR GERAL fumando jogado na poltrona. Sob o ângulo formado por suas pernas a janela deixa passar o pisca-pisca dos anuncios de neon da cidade lá fora. Junto ao transmissor telepático do grande corpo social do império, o grande corpo social do império que tem a consistência e a inércia de uma telepática medusa varada, no grande corpo social do império que é como uma enorme e telepática medusa varada com toda sua rendondez sobre toda a redondez da TERRA, estão plantados os ELETRODOS. O CONTROLADOR-GERAL espreita cada passo de JACK na sua direção comum sorriso maligno. JACK olha em volta, analisando as dimensões megalomaníacas da sala de controle. São centenas, milhares de eletrodos, um número incalculável de eletrodos, de tipos tão diversos que inclusive já nem parecem eletrodos. O eletrodo-televisão, certamente, mas também o eletrodo-dinheiro, o eletrodo-remédios-de-tarja-preta, o eletrodo-assistencia-social, o eletrodo-bem-me-quer-mal-me-quer. Por meio desses milhões de eletrodos, de naturezas tão diversificadas que JACK subitamente renunciou a conta-los, O CONTROLADOR-GERAL mantém o plano encefalogramático da metrópole imperial. Por esses canais, imperceptíveis para a grande maioria da população, se emitem ininterruptamente informações, súbitas mudanças de ânimo, os afetos e contra-afetos, as simpatias e antipatias necessárias para se prolongar o sonho tóxico da população zumbi de um mundo devastado e dominado por trevas. E nota que JACK passa por alto todos os outros dispositivos agregados aos eletrodos principais, como jornalistas, sociólogos, policiais, intelectuais, críticos literários, pofessores e demais agentes de um incompreensível voluntariado ao qual se delegou a tarefa de orientar a atividade subalterna dos eletrodos) - ESCURECIMENTO. Uma ajudinha, Mariana! (JACK: -Pro inferno com essas festas em apartamentos, não vou mais (...) sabe onde eu dormi ontem á noite(?) - Depois, nadar. Ir para o colégio de ressaca, sentar do lado da carteira dela, pegar na sua mão na frente de todo mundo, como ela gosta, e assistir ao cinema vesgo das químicas e matemáticas. Olho o relógio: dez da manhã, sexta-feira metade do bairro mata aula e vai para a praia em frente. Á noite tenho uma competição de natação na Associação Atlética da Bahia, praia, piscina, professora de natação, namoradinha do colégio, quarto, solidão, vazio, avanço entre todos os delírios da realidade, saído junto com eles de uma mesma fornada ou jato de consciência. Toca adiante! (JACK, agora ele está parado diante da porta de um quarto num corredor. É uma porta razoavelmente velha no final de um corredor razoavelmente decrépito, naquele tipo de hotel barato que era novo no tempo em que o banheiro azulejado até o teto se tornou a base da civilização ocidental. Entra no quarto e recolhe seus pertences, é um despojadíssimo quarto de quinta categoria. Duas camas, uma cômoda claudicante, uma batéia de garimpo de ferro esmaltado e um jogo de peneiras para pedras preciosas no chão, que são dele mesmo. Cai na cama por um momento, os olhos fixos no teto. Em seguida, lentamente, volta-se para sua bolsa de couro sobre a cômoda. Olha-a demoradamente. ESCURECIMENTO. Agora ele está parado á margem de uma estrada, na periferia de uma cidadezinha de garimpo do interior da Bahia. Procura se proteger da chuva com o casaco, encosta numa parede. Os faróis de um caminhão surgem na escuridão. --- Vai para Salvador(?) ---- Vou... ----- Suba(.), é um velho caminhoneiro absolutamente comum, pacato e solidário ----, a janela é fechada, o caminhão parte ---- Onde vc estava hospedado? Encontrou algum ouro? - No Hotel Terminus. Uma mixaria só. O ouro aqui é todo fagulhado e 18 quilates. Uma poeira pesada demais debaixo dágua. Haja paciência(!). - Mas aqui não existe nenhum Hotel Terminus. - Isso é o que todo mundo diz pra mim (risos). Lembro que minha prancha de surf está jogada num terreno baldio, no caminho do colégio, e que o colégio está jogado no meio da rua, no caminho para a praia do Buracão. Olho o relógio de novo. É sabido que o surf tem uma origem iniciática, mítica, ritual. Era um rito para atualizar um mito. O homem sobre a prancha, um mantra, um yantra, uma mandala orgânica. Sua identidade essencial com o délfico, a domesticação das ondas, das ilusões, compulsões e obsessões, do espírito montado sobre o corpo: é Cristo potencial andando sobre as águas! (JACK: - Mesmo que seja na hora da aula(?) Caderno de capa verde... onde foi parar o JACK(?) na água, surfando(?) Só aparece para mim quando estou na rua ou em contato com outras pessoas. Chamo ele de JACK em homenagem ao escritor aventureiro Jack London. Mas qualquer hora dessas vou ter que dar á ele um nome bem brasileiro, talvez meu prórpio nome, justo. Decidi escreve-lo num caderno de personagens, que por acaso virou um pré-roteiro, mas as únicas impressões que colho do que escrevi até agora são de uma densa e impenetrável selva de imagens sem significado. Pensando bem... Talvez o ideal seja conversar mais com a morena de óculos fundo de garrafa, chama-la para sair, extrair dela a quintessencia do bom-senso cinematográfico, até amadurecer o conjunto da obra. Patrícia, seu nome. Flertei com ela no fim da aula e ela se sentiu embaraçada, por causa da minha idade. Acendo um cigarro. Se ela conhecesse a juventude do meu condominio, faria uma idéia mais forte de mim. Respaldo de grupo, nessa idade funciona perfeitamente. Ver para crer: praia do Buracão! (JACK: -Terei que decidir ainda... PATRÍCIA: -Como? -JACK: - Decidir se devo continuar como o personagem principal por mais quatro cenas, quatro cenas é muito tempo para mim ). De volta para a Babilônia-beach. Sagacidade corporosidade afiada e malandros de tudo que é lado cercando as garotas da rua por todos os lados. Garotas passam pela palha, cuspe no baseado mal apertado. JACK: - É realmente necessário continuar fumando essa farofa-fantasy(?) - Eu me sento á uma certa distância porque não pratico boxe como os outros e não gosto de fumar em público. (PATRÍCIA: -Sabia que ELE escreve (?) -GAROTA: -Nas horas livres, quando está com a corda dada...-, alguns segundos de embaraço mútuo : PATRÍCIA: -Cuidado para não dar corda demais nele, porque (PAUSA...) ele se perde com frequência no meio daquele jorro de imagens (.) -JACK(visivelmente contrariado): - Garçom, a conta por favor(...) JACK, tomando o volante, fecha a porta e liga o carro: -Vamos embora dessa cidade, JÁ! ). Mariana está olhando para mim sentado na areia. Cospe no teu próprio olho e acorda, JACK! Telegrama do mimo, senhas... Ela quer um diálogo com trechos inteiros plagiados de Wordsworth, romance, corações despedaçados, uma cena de sexo explícito num quarto de hotel, ela se levanta da cama e entra num banheiro azulejado até o teto, um circuito fechado com esses diálogos diante de alguma coisa pegando fogo na areia da praia, ela olha pela persiana do banheiro azulejado até o teto e vê o futuro. Babilônia-beach. As pessoas sob o sol parecem pedaços de mormaço falantes dentro de uma nuvem azulada de fumo. As palavras de Mariana são provocativas como fogo para minhas tripas. (MARIANA: - Me leva no cinema do shopping hoje(?) É que o pessoal do colégio(...) Me deixa ler o seu roteiro de novo, hoje á noite(?). CINEMA. TOMADA INTERIOR. Na tela, o filme está sendo projetado. JACK: - Somos namorados, Mariana(?) - MARIANA: - Tá vendo(!) ). Cacarejos de silêncio e beijos no escuro. Mariana! Me levanto e dou uma volta com ela na areia, a perna na frente da cinderela. Pego. Todos no colégio me tomam como seu namorado (JACK: - Não assumir nenhum compromisso até o próximo Domingo, porque... pensando bem, porque?(...) MARIANA: - Vou comprar cigarros(...) vou na sua casa hoje á noite, pretendo dormir com você(.) Seu pai é tão gente boa, muito inteligente(.) ). JACK, pensando comigo mesmo: --- Diga que está novamente seco por ela, então(!) - Digo, pronto, já está dito e estou mesmo seco por ela de novo(.) - MARIANA(:) - Lembre-se de dizer á sua mãe que foi você quem me caçou apaixonadamente no colégio, e lembre-se de ter uma conversinha comigo ao pé do ouvido de vez em quando, na frente de todo mundo do colégio(.) ---). Cospe no teu próprio olho, JACK! Essa obsessão dela com o colégio é foda, me deixa meio cismado(!) (JACK (agitado, impaciente), tomando o volante, fecha a porta e liga o carro: -Vamos embora dessa cidade, JÁ! ). RIMBAUD: --- Que as cidades se iluminem à noite. Minha temporada aqui acabou. O ar marinho queimará meus pulmões; os climas perdidos me curtirão. Voltarei, com membros de ferro, pele escura, olhar selvagem: por minha máscara, me julgarão de raça forte. Terei ouro. Me envolverei nos assuntos políticos. Serei salvo pela bancada do garimpo. (JACK: -Terei que decidir ainda... PATRÍCIA: -Como? -JACK: - Decidir se devo continuar como o personagem principal por mais quatro décadas, quatro décadas é pouco tempo para mim ). (JACK, ele entra afobadamente num quarto de hotel e recolhe seus equipamentos de garimpo num canto, é um despojadíssimo quarto de quinta categoria. Cai na cama por um momento, os olhos fixos no teto. Em seguida, lentamente, volta-se para sua bolsa de couro sobre a cômoda e lembra que ali está o último dinheiro que resta. Olha-a demoradamente, tentando decidir para que selva ir tentar a sorte. ESCURECIMENTO: agora, de rodoviária em rodoviária. Toca adiante! À medida que ele ganha experiência, consegue farejar uma fofoca de ouro só de pisar na rodoviária de uma cidade e encher as narinas com o vento enquanto toma um café no balcão da lanchonete olhando o aspecto dos indivíduos em volta: onde há ouro sendo desencantado por perto, há pessoas excitadas falando pelos cotovelos e querendo contar vantagem, demonstrando mais conhecimento, coragem e eficiência do que os outros em público. No Norte, chamam isso de garimpeiro ''bravo'', aquele que fala muito e sabe pouco. O garimpeiro ''manso'' sabe de tudo e não fala praticamente nada, só ri discretamente e olha para o chão. Acendo um cigarro. PATRÍCIA: -Cuidado para não dar corda demais nele, porque (PAUSA...) ele se transforma de verdade nos próprios personagens e some no mundo sem deixar rastro- -ARTAUD: --- Quem és, afinal? - perguntaram a um só tempo trezentas vozes enquanto vinte mil espadas cintilavam nas mãos dos fantasmas mais próximos. (...) Eu, Antonin Artaud, sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu mesmo. Eu represento totalmente a minha vida. RIMBAUD: --- Conheço ao menos a natureza? Conheço-me? — Não mais palavras. Sepultei todos os personagens em meu ventre e parti. Tambores, floresta, dança, dança, dança, dança! Não vejo a hora em que, os patrões de inumeráveis firmas estrangeiras de extração de ouro desembarcando, cairei no vácuo da praia poluída de braços abertos, implorando por um posto avançado dentro de um caixote de metal á 300 metros de profundidade no mar. ARTAUD: ---- O que queres, afinal(?)O que é, em nome dos céus, que estás tentando descobrir ?" -JACK: --- Não sei bem ao certo... Imagine um andarilho místico numa estrada entre duas montanhas, falando sozinho, suas palavras são um misto de poesia e aviso, ele é assim desde pequeno. Só uma imagem inicial clássica. Imagine agora um pirata de garimpo. Pense nas comunas de balsas piratas ilegais dos rios perdidos entre as escaldantes florestas tropicais do Brasil, como os bucaneiros, aquelas congregações misto de utopia e anarquia, gritando O BRASIL É NOSSO!, pense até mesmo nos hackers modernos, esses nômades piratas de dados a surfar na net oceano onde a noção de propriedade intelectual é uma miragem fadada ao desaparecimento, e pense num burilador de palavras especialmente inspirado a jorrar significados e imagens vertiginosamente num turbilhão borbulhante, caótico, recheado de mensagens mas igualmente lírico, num ritmo fluido que lembre o desregramento de todos os sentidos de Rimbaud ou o caleidoscópio de imagens subconscientes de James Joyce, ele se move por seus dados não de uma forma racional, mas como Salvador Dali teria formulado de maneira precisa: por um método crítico-paranóico, juntando dados aparentemente isolados, impensados, numa livre associação de camadas interrelacionadas em cujo ápice está esperando uma espécie de revelação humana da fonte da juventude eterna. De volta para a Babilônia-beach. MARIANA: -Como está o trampo na Universidade(?) RIMBAUD:- Os patrões do ouro desembarcaram. O canhão! É preciso submeter-se ao batismo, vestir-se, trabalhar. Não o tinha previsto! JACK: - Acho que a garota das Ciências Sociais que trabalha comigo na sala do diretor-de-departamento tá me dando mole(...) mas foi ela quem me caçou (rs) -MARIANA: - Não diga(!) Aposto que é um dragão(.) Vou comprar cigarros(.) -JACK: - Não é tão bonita quanto você(.) ----, precisão que dói: UM DRAGÃO! Li para a garota das Ciências Sociais um trecho de uma carta conjugal de Antonin Artaud numa tarde, durante o expediente: ''(...) tua alma é enferma e mal-formada como a minha(...) cada uma de suas cartas aumenta a incompreensão e a estreiteza de espírito das anteriores(...) todos seus rodeios e infinitas disputas não poderão impedir que você nunca entenda minha vida direito e siga me condenando por uma parte ínfima dela(...) sua imaginação te enlouquece(!) contigo qualquer discussão é impossível(!)'', ela ouviu com atenção e achou aflitivo e interessante. Considerou que eu era muito novo para ler esse tipo de coisa e sugeriu que eu lesse Kafka. Eu me defendi dizendo que já tinha lido O Processo e que para mim era difícil ver naquele livro de Kafka algo menos terrível que a revoltada carta conjugal de Artaud. Depois ela citou algumas estatísticas sobre comportamento de mulheres no casamento contemporâneo, e respondi á ela que eu era filho de dois sociólogos da universidade federal e que isso nunca tinha me impedido de acreditar mais nas letras de música pop do que em inúmeros textos acadêmicos sofisticados sobre "relações entre sexo, afeto e poder". (JACK: - Sou alguém que teme profundamente pela irrelevância dos estudos acadêmicos. A vida se tornou um teatro de clichês, logo as revistas femininas serão mais relevantes no debate sobre comportamento e afetos contemporâneos do que os estudos acadêmicos). Li para ela um novo trecho da carta de Artaud, alterando alguns trechos maliciosamente: ''tua alma é como a minha(...) essa membrana de dupla espessura, de múltiplos graus, de incontáveis fendas, essa membrana feita de vidro sensível, capaz de multiplicar-se indefinidamente, desmontar-se, de se recolher sobre si mesma com suas inumeráveis reverberações de fendas e começar um borbulhante formigamento de dados inteiramente novos a partir do nada(.)''. (JACK: - Talvez a condição de escrever sob o gosto de sangue e de saliva que tem a trincheira da vida real dê às revistas femininas mais consistência do que as elaborações sem corpo dos especialistas em afetos. Talvez um dos maiores medos humanos e que move o mundo desde sempre seja justamente o medo de perder a beleza e a juventude. Já que as ciências humanas mentem, a esperança é que as revistas femininas falem a verdade que não quer calar: ao final, temos mesmo é medo de sermos feios e mal-amados). Mariana telefonou para minha casa ontem á noite e conversou com meu pai, enquanto eu estava numa festa no apartamento da minha professora de natação. Tomei a direção errada: nem vale a pena falar com ela sobre isso. PROFESSORA DE NATAÇÃO: Fique quieto com as mãos, que aqui todo mundo me conhece. JACK:- Sabe onde eu dormi ontem á noite(?) ----, podemos rolar pelo declive do beco e parar exatamente embaixo de sua saia: MARIANA: -Se for na frente do colégio inteiro, pode até ser(!) ---, SORVETE: Alô, como vai(?) --- TELEFONE: -Vou comprar cigarros(.) - MARIANA: - Vamos nos encontrar de noite, na sua casa(.) Tudo bem(?) -, ela mordiscava os lábios do outro lado da linha. Olho o relógio. Lembro da minha professora de natação e sua exibição erótica no quarto, ninfomania conhecida de muitos alunos. Toca adiante! Como sugeriu Aldous Huxley: ''Cada pessoa, em cada momento é capaz de perceber tudo que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é a de nos proteger dessa massa inesgotável de informação''. O que se movia visivelmente dentro do invisível fluxo de consciência da ouvinte e do narrador? A reflexão no teto de uma lâmpada e cúpula, uma inconstante série de círculos concêntricos de variadas gradações de luz e sombra: uma catedral gótica em construção, sugerindo a invasão do universo inteiro por um sentimento metafísico noir desconhecido fora dos livros de Raimond Chandler. Em que direções estendiam-se a ouvinte e o narrador? Ouvinte, es-sudeste: narrador, nor-noroeste: no 53º paralelo de latitude, Norte, e no 6º meridiano de longitude, Oeste: em um ângulo de 45º em relação ao equador terrestre, provavelmente numa balsa de garimpo boiando sobre um rio tórrido. E em que estado de repouso ou movimento? Em repouso relativamente só a eles mesmos quando mergulhados subitamente no simbolismo poético dentro de cada personagem, mas produzindo um movimento simpático muito específico de convergência sentimental e física. Em movimento sendo ambos e cada um deles carregado para Oeste, para a frente e para trás respectivamente, pelo perpétuo movimento próprio da terra através de sempre mutáveis rotas de garimpo de sempre mutável espaço interior indeterminado dos personagens que copiam a vida real e vivem de pequenos pedaços dela fatiada em capítulos. Em que postura? A ouvinte: reclinada semilateralmente, para a esquerda, mão esquerda sob a cabeça, perna direita estendida em uma linha reta e descansando sobre a perna esquerda, fletida, na atitude de Géa-Tellus, completada, recumbente, plena de sementes e rasgos felinos de fisionomia. Narrador: reclinado lateralmente, para a esquerda, pernas cruzadas na poltrona, o dedo indicador e o polegar da mão direita descansando na ponta do nariz, na atitude de cumplicidade representada por um cigarro entre os dedos, dizendo para a ouvinte: ''A cada vez que se olha pela janela ou que se anda pela rua, a consciência descreve intermináveis círculos, vai de frente para trás e vice-versa, captando todo tipo de interferencia e sofrendo todo tipo de enriquecimento em fluxo, por isso uma das tarefas da arte é chegar o mais perto possível do mecanismo da percepção. Capiche?''. (PATRÍCIA: - O que você pretende dizer com isso(?) - JACK: - Que tal um filme em preto e branco: um velho homem de olhar mareado que do seu leito de morte observa as fluorescencias do hospital e sente que a vida lhe escapa pensando á todo momento: ''que PORRA será que vai acontecer AGORA?'''''que PORRA será que vai acontecer AGORA?'''''que PORRA será que vai acontecer AGORA?'''(...) - CINEMA. TOMADA INTERIOR. Na tela, o filme está sendo projetado. PATRÍCIA: -Sabia que ELE escreve (?) -MARIANA: -Nas horas livres, quando está com a corda dada...-, alguns segundos de embaraço mútuo : PATRÍCIA: -Cuidado para não dar corda demais nele, porque (PAUSA...) -JACK (apreensivo, farto): - que PORRA será que ela vai DIZER AGORA?(...) Garçom, a conta por favor(...) JACK, tomando o volante, fecha a porta e liga o carro: -Vamos embora dessa cidade, JÁ! - MARIANA: - Não tem rádio no carro(?) JACK: - Somos namorados, por acaso(?) - MARIANA: - Tá vendo(!) ei, vamos pra casa logo que vai começar á chover! ). ESCURECIMENTO. CRÉDITOS. FIM.


(continua)
KALKI-MAITREYA

domingo, 27 de outubro de 2013

Como lidar com os sinais que antecedem um sonho lúcido


Cleber Monteiro Muniz - 2001

Fonte:
http://gballone.sites.uol.com.br/colab/cleber2.html#2


Quando nos posicionamos para repousar e começamos a relaxar, surgem sinais que indicam a aproximação progressiva do estado letárgico.

A percepção consciente desses sinais é útil por nos avisar a respeito da necessidade de maior cuidado uma vez que em tal momento a hora de deixar o estado vigil está chegando. Temos sempre a tendência de crer que estamos longe da transição para o sono, mesmo quando ela está bem próxima.Essa crença equivocada se baseia na idéia inconsciente de que não há uma vigília em estados corporais profundamente letárgicos e em meio a cenas oníricas. Supomos que o fato de estarmos um pouco despertos é um indicador de que estamos longe do sono.

A aproximação progressiva do adormecimento corporal pode ser identificada pela maior nitidez das vozes internas. Poucos instantes antes de adormecermos, as vozes interiores falam em nossa cabeça com nitidez cada vez maior. A progressão da nitidez é sutil e acontece paralelamente ao processo de aprofundamento do sono.

Na medida em que o processo letárgico corporal aliado ao despertar conscientivo no mundo psíquico avança, as vozes são ouvidas como se fossem físicas e são acompanhadas por endopercepções de teores não-sonoros: visuais, táteis, gustativas e olfativas. Todas chegam à consciência com nitidez e intensidade equivalentes às proporcionadas pelas percepções externas e às vezes até maiores. Isso se deve ao alto grau de numinosidade das imagens internas.

Nessa etapa, tendemos a perder a vigilância devido ao poder altamente hipnótico dos pensamentos. Deveríamos intensificá-la e acompanhar a experiência para esperar o resultado.

A maioria dos praticantes que tentam alcançar as experiências oníricas conscientes tendem a reagir às primeiras imagens numinosas com espanto, medo, ansiedade, curiosidade ou uma imensa euforia por estarem adentrando a um mundo extrafísico. Essas reações podem afugentá-las, fazendo a prática fracassar.

O praticante precisa manter a constante recordação de que está presenciando uma realidade onírica e fantástica que corresponde ao seu universo imaginal, sendo totalmente distinta da realidade física. Se essa recordação for perdida, ele fica submetido ao poder hipnótico das imagens, se torna vítima de sua numinosidade e perde o estado positivo alterado de consciência, caindo em um sono/sonho usual. A experiência transcendente fracassa quando nos esquecemos que estamos em contato com cenas de um mundo onírico. Não devemos confundir a realidade externa com a interna, devemos discernir.

O recomendável é não reagir aos primeiros sinais com nenhum tipo de surpresa ou euforia e, ao mesmo tempo, conseguir acompanhá-los. Para tanto o ego deve ficar "amarrado". É preciso observar os sinais iniciais em imobilidade psíquica total, como se faz ao observar animais selvagens, e acompanhar seus movimentos subseqüentes sem espantá-los. Qualquer movimento brusco ou sutil do ego, seja de tipo sentimental ou intelectual (tentativa de entender ou encaixar o que está sendo visto em preceitos lógicos conhecidos etc.), os afugenta.

O trabalho é árduo porque temos que unir dois extremos: observar os sinais e, ao mesmo tempo, não afugentá-los. São dois processos que normalmente não se combinam muito, não se realizam simultaneamente. Também não devemos nos fascinar por nenhuma imagem mas sim receber seu caráter numinoso sem com ele nos identificarmos.
Procedendo assim, vamos muito longe na experiência.

Dormimos para este mundo e acordamos para o outro.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

ESTRANHOS EMBORA ÍNTIMOS (9)


 
À medida que eu ia avançando na tarefa de arrumar as mesas na beira da piscina e limpar sozinho toda aquela sujeira que trinta e poucos hóspedes de goela e intelecto hiper-ativos tinham deixado para trás, notei que todos foram se debandando para dentro da pousada ou dos próprios quartos, a maioria já um pouco altos, desiteressados do que o sábado á noite poderia lhes oferecer além dos limites daquela praia e casa. A ilha, em si, não tinha lá muitos atrativos urbanos, a não ser os habitantes locais andando no calçadão do centro comercial do distrito para lá e para cá monotonamente até as dez ou onze da noite. A última vez que entrei na pousada, para pegar um pano de chão, notei que Carmen e as outras garotas estavam tentando preparar um peixe assado na cozinha á oito mãos. Ainda faltava uma boa quantidade de serviço pela frente quando, saindo da cozinha, eu percebi ela sentada sozinha na cadeira de vime na varanda frontal ao mar. Com um copo de gim na mão, ela olhava fixamente para a escuridão silenciosa da praia através dos quiosques e coqueiros em frente á piscina iluminada. Tinha a compacta serenidade de uma árvore. Os cabelos loiros, a pele bronzeada e os olhos azuis-cinzentos eram de um só matiz na varanda cheia de sombras. Assim que me percebeu olhando para ela de dentro do quiosque, se moveu imperceptivelmente com uma ligeira presteza e me sorriu com um ar vago, como se tivesse acabado de examinar uma possibilidade de algo abstrato e, ao me ver ali, prontamente abandonasse a idéia. Continuei olhando para ela inquisitivamente e as pequenas reações imperceptíveis de seus movimentos foram ganhando uma rapidez de apreensão. --- O que foi(?), ela perguntou de lá. Não respondi. Apenas sorri, olhando para baixo, e acendi um cigarro. Os olhos dela agora mostraram um brilho mais duro, fora do comum. Talvez ela tivesse bebido e pensado demais, de longe eu já podia sentir um fator imprevisto agindo nela, um agente químico não usual interferindo em seu corpo. Como eu não respondi e permaneci impassível dentro da meia-escuridão do quiosque, fumando com um sorriso parcialmente camuflado por sombras, ela recuou calada para a posição inicial de árvore imóvel. Parecia divertidamente aborrecida de que, tendo sentido de um ângulo inesperado a propalada força do meu olhar inquisitivo, tivesse se mostrado também inesperadamente tímida diante dos próprios pensamentos ou acusado um sinal de fraqueza. À noite, sob a luz da Lua, sua amorfa instabilidade de ânimo era menos ameaçadora, mas sempre digna de algum cuidado. Meu sorriso tinha deixado ela francamente curiosa e meus olhos, que por um momento ela tinha encarado de frente á distância, refletiam, na completa ausência de reflexão racional do momento, o alumínio, o vento e o céu preto das grandes provocações silenciosas. Ela sabia que eu vivia permanentemente exilado lá no alto, na metálica vastidão acima das nuvens demasiadamente humanas e sentimentais. A súbita maneira dela tinha sido uma provocação também, ou contra-provocação, que procurava diminuir a importância da minha com um súbito dote de véus virginais ocultando o real conteúdo de sua mente diante de mim. Aquilo lhe devolveu imediatamente a leveza. Nosso relacionamento era como uma religião feita de ficções instáveis. Acabei de fumar e fui até lá falar com ela, assim que pisei na varanda eu disse: ---Não há mais nada para se fazer aqui senão ser feliz a cada dia que passa (...) ----, ela riu vagamente. Acertei: ela tinha bebido demais e estava envolta em névoas reminescentes profundamente alcóolicas. ---No quê você estava pensando, antes de me ver ali no quiosque(?)---, perguntei. Ela soluçou como uma garotinha antes de falar e eu não resisti ao impulso de pegar nos seus cabelos e me oferecer para ir até a cozinha pegar um copo de água. ----Só uma desculpa esfarrapada para ir ver a Carmen, ela e as outras garotas estão fazendo o jantar. Disse aos hóspedes que sábado á noite aqui era cada um por si, nem lembrei de ir no mercado fazer compras. Só tinha um monte de peixe congelado no freezer. ---, ela disse e colocou o copo sobre a mesa ao lado. Subiu os pés na cadeira e apertou os joelhos contra os seios como uma adolescente num camping. Continuei pegando em seus cabelos e perguntei de novo: --- No quê você estava pensando, parecia intenso á distância. ---, ela hesitou, um pouco contrariada, e respondeu: --- Credo, você parece uma ave de rapina premonitória, já não se pode mais pensar impunimente por aqui(.) Estava pensando sobre um monte de coisas que nunca te contei(.) ----, ela confessou, rindo um riso diferente, enlançou seus braços nos meus e continuou: --- Adoro suas mãos(.) ---, soluçou novamente. ----Você me disse isso outro dia(.) Vou lá dentro buscar um copo de água pra você e aí você me conta todas essas coisas que nunca me contou, ok(?!) ---, eu disse e me dirigi á cozinha, onde me deparei com um pequeno carnaval romano em volta do fogão industrial: Carmen, as outras três garotas, Arthur e Susana, Juan e Vitória, e um jovem pálido, alto e esquelético que com algum esforço eu identifiquei como sendo o junkie ciberpunk rico e leigo que apenas buscava ajuda para se livrar das drogas. Saulo, seu nome. Os homens estavam lado á lado contra a porta da geladeira segurando copos de cerveja. Em volta do fogão industrial, o trio de garotas comandava a preparação de um verdadeiro cardume esquartejado sobre o tabuleiro, temperados e arrumados em postas de filé com molho verde em cima. Minha primeira impressão foi de que eram exóticas e exageradamente bonitas, levemente esfuziantes entre as outras pessoas, simpáticas e repetitivas ao mesmo tempo, como se estivessem sempre sozinhas e amarradas uma na outra, tentando demonstrar espírito gregário por seis, quando na verdade eram apenas três e essa última qualidade simplesmente lhes faltava. Mas me pareceu também que se tornariam aceleradamente interessantes depois da segunda ou terceira dose de qualquer coisa. Juntas traziam consigo um estilo, algo como uma amabilidade distraída e auto-suficiente que as outras mulheres ali achavam extremamente charmoso e tentavam imitar sem suscesso. Divertidas á medida que bebiam e suportavam melhor a carga excessiva de gentileza com que eram tratadas pelos outros hóspedes. Pedi licença para os três homens e abri a porta da geladeira em busca da garrafa de água. Eles estavam rindo de alguma coisa que Arthur tinha falado antes de eu entrar: o riso dele era ainda aquele inervante rosnado, espantosa reversão facial que lhe transformava os olhos em estreitas fendas e lhe deformava o rosto como o rugido na cara de um leão num baixo-relevo assírio. Carmen, por sua vez, ainda que muito novinha, sentia que seu sexo lhe dava o direito de se aproximar e interagir naturalmente com as garotas em volta do fogão. Ela me olhou com o rabo do olho assim que eu entrei na cozinha e ficou surpresa com a rapidez e presteza com que enchi o copo de água e me retirei. Devia saber áquela altura que a única pessoa que restava lá fora era ela, sua mais recente ídola. E não descarto que tenha sentido uma infantil pontada de ciúmes... digo: dela, não de mim. Resta dizer que Susana e Vitória me pareceram completamente embriagadas e risonhas e que permaneci muito pouco tempo ali para perceber mais do que isso. Voltei para a varanda e ela continuava olhando para a praia escura fixamente com os braços em volta dos joelhos. --- Então(?) ---, eu disse, --- Você adora minhas mãos(.) Agora, me conte todo o resto(.) ---, ela pegou o copo de água da minha mão e sorveu-o de um só gole. ---- Você sempre com esse ar trivial e sem afetação, como se fosse o mais seguro e complacente dos homens, sempre(.) Não sei bem porque deixei de te contar todas essas coisas: por exemplo, que eu era ainda casada e dormia com meu marido na época em que começamos a nos encontrar(.) Digo: aquele tempo todo, sabe... estive com ele e com você ao mesmo tempo(.) ---, ela confessou, mas eu não sentia nenhum sentimento de culpa no tom levemente alcoolizado de sua voz, mesmo por que nunca tínhamos assumido nenhum tipo de compromisso até hoje. ---- Bem, é estranho só me contar agora(.) Mas que diferença poderia fazer se nunca nos prometemos nada(?) ---, ponderei neutramente, com o ar sóbrio de quem não estava se sentindo particularmente afetado pela sua revelação. --- Sei lá, acho que estava buscando inconscientemente ''apagar minha história pessoal'', como em Castaneda(.) Talvez tenha sido um pouco vulgar tudo aquilo(.) ---, agora ela falava como se procurasse afastar de nós dois aquele detestável ar de comadres cochichando entre si e realçar a perspectiva de que éramos dois bruxos amantes que nunca deveram nada um ao outro. --- Deixa isso pra lá, já passou(...) --- eu disse desinteressadamente e ela retrucou: ---Você é o tipo de homem com quem as mulheres gostam de fazer experiências gratuitas, além do mais já morou junto com várias mulheres e acabou perdendo aquela aflição irritante dos homens muito obedientes ás regras do circuito social, aquela baixa energia constante de quem vive constantemente defendendo a imagem social de si mesmo entre os outros(.) --- interrompi sua tentativa de comentário elogioso antes que ele mergulhasse nas sombras dos meus evidentes defeitos anti-sociais e ela concluísse dizendo que eu era apenas uma alma penada munida de volúpia carnal. Perguntei: --- Você ficou com medo de que eu fizesse alguma coisa para que ele ficasse sabendo de nós(?) Acha que ele teria vindo se entender comigo(?) Com um revólver, por exemplo(?) ---, círculos de vibração, tão finos como molas de relógio, oscilaram na superfície do gim dentro do seu copo. Eu ri, pensando que havia surgido agora uma inesperada e nova poesia noir nos olhos daquela mulher. ----Claro que não, como você é bobo(!) Mas se ele tivesse me apresentado alguma prova acho que teria contado sobre você(.) Ele já quase não me procurava mais na cama, era como um navio com o casco trincado afundando lentamente no mar de um casamento extinto(.) Sempre que tentava provocar nele alguma reação de ciúme, ele se mostrava tão tristemente sem tato e irônico que eu acabava me sentindo magoada e deprimida(.) Quando eu te conheci naquela festa, imediatamente senti que estava diante de um futuro parceiro sexual(.) Calculei tudo: que você era jovem e não tinha muito dinheiro, possuía uma saúde de ferro e poucos vínculos humanos, vivia longe da família ou nem sequer tinha uma, que provavelmente andava pelo mundo ao léu como um cigano solitário e indiferente á dureza da vida a sua volta(...) Por isso logo me tornei sua amiga, pedi o número do seu celular e perguntei aonde você estava hospedado(.) É um defeito feminino, tentar sexualizar a amizade tão rápidamente(.) ---, ela disse e olhou para mim com um golpe de água reminescente brilhando nos olhos. --- De jeito nenhum, faça o favor de continuar sexualizando nossa amizade(.) É um dom, não um defeito feminino(.) De fato, lembro que você me chamou na recepção daquela pensão caindo aos pedaços em Amaralina, onde eu estava morando provisoriamente, e ignorou completamente a presença do porteiro, dizendo: --- ''Escuta, estou com uma fixação por você desde aquela noite em que dormimos juntos(.) não sei como me expressar direito, você vive num mundo muito diferente do meu(.)'', e me beijou(.) ---, eu relembrei, achando graça de quando olhei para o porteiro e supreendi ele com o olhar suspenso num transe de expectativa, como se fôssemos dois personagens que tivessem invadido aquela pensão de repente para gravar uma cena da novela das oito. --- É verdade, foi assim que começou(...) he he(...) ---, ela concluiu e me puxou pelo braço para perto de si, agachei desajeitadamente e beijei seus braços e joelhos. A partir de então, passamos a buscar áreas mais imprevisíveis de Salvador no carro dela. Descíamos depois de rodar muito por todos os lados da cidade e andávamos de mãos dadas através dos odores marinhos no cais da Cidade-Baixa ou da luz ofuscante dos holofotes em frente ao Soho, sempre em busca do restaurante obscuro perfeito, com mesa no canto, ausência de conhecidos do mundo de negócios imobiliários dela ou da clínica do marido. Falávamos de nós dois, de frente um para o outro, fazendo confissões que mesmo depois de horas de conversa continuavam seladas em âmbar, roçando nossas mãos longamente em pequenas admoestações recíprocas carregas de paixão sexual violenta. --- Adoro suas mãos, de novo(.) Gosto que elas peguem em mim(.) Quer saber: me senti culpada pelo meu marido, naquela época(...) Nunca foi difícil para mulher nenhuma enganar um cônjugue na primeira vez, porque a pessoa enganada não dispõe de anti-corpos, não está vacinada pela suspeita e não dá atenção aos atrasos, aceita as explicações mais absurdas, permite que os mais desajeitados remendos de histórias e horários consertem os grandes rasgões de ausência do cotidiano(.) ---, ela disse, parecendo falar com a propriedade de uma perita no assunto. ---- Uma vez uma namoradinha me passou para trás, mas eu gostava tão pouco dela que preferi encarar a coisa pelo lado mais pragmático(.) Além do mais, meu coração reage diferente á esse tipo de coisa, porque nunca tive que me preocupar com a opinião dos outros... porque nunca existiram outros na minha vida(.) Aos poucos me acostumei com a idéia de que, pelo menos nos lugares por onde andei a maior parte do tempo, as pessoas não valiam absolutamente nada logo de partida(.) Mas pelo menos das mulheres que eu realmente amei guardo uma graciosa recordação e um sentimento de profunda amizade, embora nunca mais tenha visto a maior parte(.) ---, eu concluí e ela imediatamente voltou com os flash-backs do ex-marido: --- ''Que roupa amarrotada é essa (?)'', meu marido me perguntou numa noite daquelas em que eu e você nos encontrávamos na casa de madeira da minha família, em Guarajuba(.) Olhei para mim mesma no espelho e vi três fios de cabelo seus presos na minha saia de veludo. Olhando, apenas senti uma coisa quente e molhada palpitando dentro de mim e não falei nada, sentindo que minha arisca pantomima silenciosa estava encharcada da lembrança dos nossos corpos dentro daquela casa de madeira(.) Silenciosamente, eu obrigava meu espírito á estabilidade e á dissimulação, enquanto meu corpo dentro da saia continuava preso á erupção do seu(.) Ele me olhou desconfiado aquele dia e eu lhe devolvi um derradeiro olhar sombrio, que provavelmente dizia mais do que ele queria saber, até que um dia ele tomou coragem e me perguntou(:) ''Você está tendo um caso(?)'', com o rosto retorcido pelo choro e o corpo todo tremendo(.) Me limitei a dizer que não, mesmo sabendo que já era impossível convencê-lo e que da minha fisionomia jorrava uma fria, serena e metálica expressão de superioridade, de um belo segredo sexual continuamente experimentado(.) ---, assim que ela acabou de falar, eu voltei a me lembrar nos mínimos detalhes daquela casa de madeira no condomíno em Guarajuba. Era assim, ainda mais segura e remota que qualquer motel que já tivéssemos ido. Raríssimas vezes ela tinha ido com o marido até aquela casa. Dentro de sua segurança obscura, parcialmente invisível entre coqueiros e ipês amarelos, a casa dominava a vista da lagoa de água salgada que nas margens parecia um oásis de areia branca rodeado por um vidro escuro. O cheiro do mar que se infiltrava pelas persianas era mais salino e acre do que o do mar em frente á pousada. Durante aqueles encontros clandestinos na casa de madeira, ela já me parecia atlética e flexível como agora, talvez sem a atual ressonância agitada, mas já com essa agradável e acentuada firmeza entre as pernas que me recordava, na minha passagem para dentro do seu corpo, certa corruptibilidade de cortesã francesa, que hoje se abrandou um pouco por causa do divórcio. A cintiliação neural do rosto dela estava sempre acalmada diante de mim após fazer amor. Mas lembro de vê-la várias vezes no começo da noite tateando com certa premência ao lado da cama, procurando o relógio de pulso entre as roupas jogadas no chão. Sempre que nos encontrávamos na casa de madeira ela deixava o relógio discretamente visível. ---- Já percebi que você não gosta muito de conversas indiscretas(.)---, ela disse, provavelmente vendo que eu me afundava em filamentos de memória brilhando estranhamente nos meus olhos. Estendi a mão num ato reflexo para pegar o copo vazio da mão dela, sem entender direito o alcance de tudo aquilo que ela tinha acabado de contar. Mas a verdade era que pouco mais do que aquilo havia para ser recordado das comunicações de nossos corpos em transe, nada além daquela lenta e prolongada ascensão física em sua companhia para os platôs de êxtase da casa de madeira, branqueados pelo luar da janela sob o qual ela se apresentava á mim felina como uma onça. E por fim, muito grata, loquaz e apressada. Eu vinha para aquele ponto de nossos encontros num carro popular caindo aos pesdaços dentro da luz das guaritas que apareciam longamente acima da lagoa de água escura, transbordante ou quase seca nas margens de areia branca, de acordo com a maré do dia, e encontrava ela sentada de sutiã e calcinha no sofá de couro, um cigarro entre os dedos e uma ligeira pressão de ansiedade em volta dos globos oculares. Ela imediatamente nos servia dois drinks esverdeados que eu não lembro direito o que era e os copos começavam a suar. Feito isso, funcionávamos perfeitamente na cama de casal como uma caixa de música com a corda toda dada. Cada qual esperava que o outro compreendesse claramente o mecanismo erótico da união de ambos e silenciosamente fizesse os ajustes necessários para a coisa ir de vento em popa. --- Nosso amor é como o amor dos elementos, nos leva de volta num redemoinho á um eu mais jovem e mais limpo de complicações psicológicas e compromissos (.)---, assim ela lançava no ar, para que eu percebesse, a sugestão de que seu marido era em contra partida um homem mais delicado do que eu, algo que talvez nos enfraquecesse como confidentes mas nos forlalecesse como amantes, pois o que ela queria dizer na verdade é que ele era delicado demais e eu mais impetuoso e satisfatório, sem dúvida. Ela falava dele como se olhasse um vago vulto baixo numa pequena praia enevoada por recordações broxantes ao lado da cama. Quando ela se levantava satisfeita da cama sobre o piso de taco solto do quarto, segurando uma ou outra peça de roupa contra os seios, suas nádegas dançavam reluzentes sob a luz da Lua, o luar ali sempre mostrava uma saturação prateada que transbordava do seu corpo suado e saciado em camera lenta. ---Cada dia que passa você conhece o meu corpo melhor do que ninguém(.), ---, ela observava, e pensando melhor agora, dizia aquilo como se ainda existisse alguém em outro lugar, delicado em excesso e desajeitado. Mais tarde, dirigindo meu carro popular em ruínas através do gás fétido da Avenida Paralela, lembro de ter me perguntado vagamente se ela ia para cama com mais alguém além de mim. Achei graça de mim mesmo experimentando uma pontada de ciúmes lembrando daquela sombra de personagem que eu ainda não sabia ser seu próprio marido. --- Ele sempre me fará lembrar um elfo paternal e delicado(.) Como isso é deprimente(!) Paternal e compassivo demais para me manter excitada(!) Uma vez, antes de nos casarmos, lembro que fiquei sozinha com ele num sofá durante uma reunião de amigos que tínhamos em comum, e ele começou a alisar minhas costas como se eu fosse um bebê e ele quisesse me fazer arrotar depois de dar a mamadeira(.),--- concluiu ela depreciativamente, sobre o ex-marido. Aquilo tudo tinha acontecido em pleno verão tórrido de Salvador, e o verão de qualquer lugar, mas o das cidades tropicais em especial, parece ás mulheres um amante que é preciso reverenciar sexualmente antes que ele se vá de repente. O suor mancha suas maquilagens e empasta seus penteados na rua sob o escaldante céu, adiantando a suadeira das noites á dois. --- Me fazia falta sua juventude de golpes bem dados, seu rosto de garoto e olhos que se avermelham ás vezes como um bicho, mas que é apenas o movimento superficial de algo que acontece com você por dentro(.) Energia compactada, mas sempre fluindo como um rio(.) ---, ponderou ela, elogiosamente, e dessa vez me senti ligeiramente lisonjeado. Tudo que se referisse ao meu trabalho energético bem feito me envaidecia. Foi exatamente no fim daquele verão que ela anunciou que sua família estava vendendo a casa de madeira e que nos dias seguintes teríamos que nos encontrar no flat de uma prima sua em Stella Maris. O apertado flat ficava á beira de uma praia morreada por cactus gigantes muito frequentada por surfistas, que fincavam suas pranchas na relva sobre as dunas para fumarem maconha agachados em pequenas rodas. Eu nadei ali quase todo dia de manhã antes do café, enquanto o verão se desintegrava. Foram dias mais estranhos que os anteriores (provavelmente por que já se aproximava o divórcio), nos quais ela me procurava possuída por uma intensidade animal até então desconhecida. O fim do casamento devia estar bem próximo, pois faria todo sentido. Ela fazia salada de lagostas com batatas e nós líamos durante a tarde inteira, quando não estávamos ocupados na cama. O de sempre: livros policiais. Eu nadava entrecortando o açoite violento das ondas dali, voltava para casa fumando um cigarro e algum tempo depois do café fazia amor com ela como se fosse um marinheiro recém-chegado de seis meses de mar. Naquele final de verão, em especial, ela forçou a barra de propósito para que eu a sentisse como uma prostituta. Para mim era uma novidade essa qualidade catártica de prostituta, a disposição para fazer toda e qualquer vontade sexual minha e extrair seu próprio prazer como uma sub-divisão do meu. Seu corpo simplesmente tinha perdido todo e qualquer sentido de inibição ou vergonha, como se um antigo bloqueio tivesse desmoronado dentro dela de repente. Um melhoramento indiscutível, depois de alguns mínimos ajustes e compensações de atitude.

 
(continua)

KALKI-MAITREYA



quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Eduardo Viveiros de Castro e a renovação da antropologia



Juvenal Savian Filho e Wilker Sousa
Fotos: Lucas Zappa
"Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual." Essas palavras são do antropólogo e pensador francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) a respeito da obra do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. Professor de antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele é reconhecido nacional e internacionalmente por seus estudos em etnologia indígena – o ensaio "Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio", publicado em 1996, recebeu traduções para diversas línguas e foi incluído em duas antologias britânicas de textos-chave da disciplina, a primeira centrada na antropologia da religião, a outra dedicada à teoria antropológica geral. Em 2009, publicou na França o livro Métaphysiques Cannibales, no qual resume as implicações filosóficas e políticas de suas pesquisas entre os povos indígenas brasileiros. No Brasil, seu livro mais conhecido é A Inconstância da Alma Selvagem, publicado em 2002, que reúne estudos escritos ao longo de sua carreira até então. Uma segunda coleção, trazendo seus ensaios mais recentes, está em preparação, devendo ser publicada pela editora CosacNaify em 2012, sob o título A Onça e a Diferença.
Seu currículo inclui atividades intelectuais em âmbito mundial. Foi professor-associado nas universidades de Manchester e Chicago e ocupou a cátedra Simón Bolívar de Estudos Latino-americanos da Universidade de Cambridge. Foi diretor de pesquisas no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, tornando-se membro permanente da Equipe de Pesquisa em Etnologia Ameríndia. Ainda na França, foi agraciado em 1998 com o Prix da La Francophonie, concedido pela Academia Francesa.
Aos 59 anos de idade, construiu uma obra potente e irretocável. Viveiros de Castro recebeu a reportagem da CULT em sua sala no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e falou sobre seu trabalho, a atual política indigenista, a crise ambiental e a inserção do Brasil na economia mundial.
 
CULT – Como se dá seu trabalho de campo e com que regularidade o senhor visita as comunidades indígenas?
 

Eduardo Viveiros de Castro – O principal de minhas pesquisas de campo com os povos indígenas da Amazônia fez-se entre os anos 1975 e 1988. Estive por breves períodos entre os Yawalapiti do Parque do Xingu, em Mato Grosso (hoje o estado deveria ser chamado de Mato Ralo), os Kulina do Rio Purus, no Acre, os ianomâmis da Serra de Surucucus, em Roraima, e finalmente entre os Araweté do Igarapé Ipixuna, no Médio Xingu, Pará. Apenas entre os Araweté realizei o que se pode chamar de uma pesquisa etnográfica, que requer uma convivência demorada com o povo estudado, o aprendizado da língua nativa (no meu caso, bem incipiente) e o envolvimento emocional e cognitivo – o compromisso existencial – com as questões e preocupações da vida da comunidade que generosamente aceitou receber o antropólogo. Minha estada com os Araweté não foi tão longa quanto deveria: morei no Ipixuna por cerca de dez meses, entre 1981 e 1983, quando precisei deixar a área por motivos de saúde (malárias repetidas). Depois voltei algumas vezes, em visitas curtas, perfazendo 14 meses até 1995. Isto é, na melhor das hipóteses, a metade do que se precisa para fazer um bom trabalho de campo. Mas cada um faz o que pode. Há quem aprenda mais depressa, outros precisam de mais tempo. Além disso, há povos que demandam muitos anos de convivência até que as coisas comecem a fazer sentido para o pesquisador, e outros que são mais abertos e mais diretos. Por fim, tudo depende daquilo que se quer estudar. De qualquer maneira, não me vejo como um grande pesquisador de campo. Sou um etnógrafo apenas razoável.
Há cerca de um mês, após 15 anos de ausência, voltei ao Ipixuna para uma rápida visita. A desculpa para uma ausência tão demorada, a rigor indesculpável, foi que a vida me levou para longe da Amazônia: ensino, família, períodos de residência no exterior, o lento trabalho da escrita, o peso da idade… Isso para não mencionar algumas dificuldades que acabei tendo com a autoridade indigenista local, em Altamira (PA), por causa das empresas evangélicas que queriam se instalar entre os Araweté. Aos olhos desses missionários, eu era uma espécie de Satã que estava ali entravando a almejada conquista espiritual dos índios. Assim que parei de ir com mais frequência ao Ipixuna, esses missionários conseguiram se insinuar nas aldeias, com a complacência da administração indigenista. O estrago que causaram, até agora, ainda não parece ter sido grande demais. O mérito, naturalmente, é dos próprios Araweté.
Retornei a convite dos Araweté – não foi o primeiro que me fizeram, nesses 15 anos – e da nova administração da Funai em Altamira, com quem tenho a firme intenção de colaborar, nessa fase histórica tão difícil que se abre agora para os povos indígenas do Médio Xingu, com a construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte. Está na hora também de passar o bastão e apresentar alguns de meus estudantes do Museu Nacional aos Araweté, para que possam continuar o trabalho.
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O senhor concorda que, nas últimas duas ou três décadas, os "índios" têm aparecido mais no debate político e nos veículos de comunicação? Por que isso demorou tanto tempo?
 

Em seu livro Tristes Trópicos, Lévi-Strauss conta uma anedota reveladora. Era o começo dos anos 1930, ele estava de partida para o Brasil, onde ia ensinar sociologia na USP. Lévi-Strauss encontra o embaixador brasileiro na França, Luiz de Souza Dantas, em um jantar de cerimônia, e lhe pergunta sobre os índios brasileiros, que já então muito lhe interessavam. Ao perguntar ao embaixador como deveria proceder para visitar alguma comunidade indígena, este lhe respondeu: "Ah, meu senhor, no Brasil há muito tempo não há mais índios. Essa é uma história muito triste, mas o fato é que os índios foram exterminados pelos portugueses, pelos colonizadores, e hoje não há mais índios no Brasil. É um capítulo muito triste da história brasileira. Há muitas coisas apaixonantes a serem vistas no Brasil, mas índios, não há mais um só…" Lévi--Strauss conta que, naturalmente, quando chegou ao Brasil, descobriu que não era bem assim.
Isso não quer dizer que o embaixador (cuja aparência física, diz maliciosamente Lévi-Strauss, indicava uma óbvia contribuição indígena) estivesse mentindo deliberadamente, procurando negar uma realidade vergonhosa mas sabida. De fato, o embaixador não sabia que havia índios no Brasil; o Brasil que ele representava diplomaticamente não continha índios. O Brasil era um país desesperado para ser moderno, então não havia, porque não podia haver, mais selvagens aqui. Outro fato curioso: em 1970 (portanto, 40 anos depois do diálogo de Lévi-Strauss com o embaixador), o censo indígena da Funai indicava, para o estado do Acre, a notável população de "zero indivíduo". Oficialmente, não havia mais índios no Acre. Aí começam a abrir as estradas por lá, a derrubar a mata, a botar boi, e eis que começam a aparecer índios a atravancar a expansão dos pastos e a destruição da floresta. (Junto com índios, como se sabe, começaram também a aparecer os seringueiros, que se imaginava como mais outra "raça" em extinção. E bem que se tentou extingui-los naquela época – lembrem-se de Chico Mendes.) Ora, índios sempre houve lá no Acre, todo mundo no Acre sabia que eles estavam lá, mas eles não existiam em Brasília, ou melhor, para Brasília. Agora sabe-se e aceita-se que o estado do Acre abriga, atualmente, 14 povos indígenas, alguns de significativa expressão demográfica, como os Kaxinauá e os Kulina. O Acre é um estado profundamente indígena, dos pontos de vista cultural, histórico e demográfico. Na verdade, ele é hoje o principal exportador de práticas e símbolos indígenas (mais ou menos transformados) para o Brasil urbano atual.
 
A que mais se deve essa redescoberta dos índios nas últimas décadas?
 

Tudo começou com uma iniciativa fracassada do governo militar, em 1978, que visava extinguir os índios, entenda-se, acelerar o processo de desconhecimento da população indígena, consagrar seu não reconhecimento como um componente diferenciado dentro da chamada "comunhão nacional". Completar o processo de "assimilação", isto é, de desindianização, que se entendia como inexorável e desejável ao mesmo tempo. O governo propôs um projeto de lei para "emancipar" os índios, isto é, extinguir a tutela oficial do Estado que os protegia. O verdadeiro objetivo da medida era liberar as terras indígenas, terras públicas, de domínio da União, inalienáveis, para que entrassem no mercado fundiário capitalista. Ao declarar que esta ou aquela população indígena não "era mais" índia, porque seus membros falavam português, ou usavam roupa etc., o que o projeto de lei pretendia era entregar as terras públicas de posse dos índios nas mãos dos interesses proprietariais particulares. Simplesmente se queria tirar os índios da frente do trator do capital: em vez de índio, que venham o gado, a soja, os madeireiros, o latifúndio, o mercado de terras, a mineração, a estrada, a poluição e tudo que vem junto. E que muitos chamam de "desenvolvimento".
Mas, naquele momento, os idos de 1978, quando estava se consolidando a resistência organizada à ditadura, muito da insatisfação política da classe média, dos intelectuais principalmente, se cristalizou em torno da questão indígena, como se ela fosse uma espécie de emblema do destino de todos os brasileiros. É também nesse momento que tomam ímpeto o movimento negro, o movimento feminista, a politização ativa da orientação sexual, a emergência de diversas minorias, diversas diversidades por assim dizer: étnicas, locais, sexuais, ocupacionais, culturais etc. A luta de classes assumia cada vez mais o caráter de uma integração parcial de uma série de diferenciais traçados sobre outros eixos que a economia pura e simples (as relações de produção). Começam a surgir outros atores políticos. É o momento da especulação e da experimentação generalizadas: outras práticas do laço social, outras imagens da sociedade, que não se reduzem ao par Estado-classes sociais, mas que envolvem outras formas de vida, outros territórios existenciais. Os índios foram importantes por sua força exemplar, seu poder de condensação simbólica. Eles apareceram como portadores de outro projeto de sociedade, de outra solução de vida que contraprojetava uma imagem crítica da nossa.
Mas, desde o século 16, a vida indígena aparece como uma imagem crítica da vida "ocidental".
 

Sim, sem dúvida. Há uma frase de um jovem filósofo que eu admiro muito, Patrice Maniglier, um grande especialista em Lévi-Strauss, aliás: "A antropologia nos devolve uma imagem de nós mesmos na qual nós não nos reconhecemos". É por isso que ela é importante, porque nos devolve algo, ela nos "reflete". Mas a gente vê essa imagem e não se reconhece nela. "Então nós, humanos, somos assim também? Podemos ser isso? Somos isso, em potência? Temos em nós a capacidade de viver assim? Essa é uma solução de vida ao nosso alcance, como espécie?" Em suma: "É possível ser feliz sem carro, geladeira e televisão?". Isso nos dá um susto, um susto com valor de conhecimento. Os índios, desde o século 16, desempenharam essa função para a reflexão político-filosófica ocidental (para uma muito pequena parte dela, na verdade). E essa mesma função, mas modernizada, especificada e tornada mais evidente pelo fato de que os índios brasileiros da década 1970 – a década que inicia a ocupação destrutiva em larga escala da Amazônia – eram nossos conterrâneos e nossos contemporâneos, eles nos ensinavam algo não só sobre nós mesmos como sobre nosso projeto de país, o Brasil que queríamos, e que não era certamente o Brasil que tínhamos. Então, foi em torno das sociedades indígenas como diferença emergente que se constituiu a resistência contra o projeto de emancipação: uma resistência contra o projeto de privatização econômica, o branqueamento político e a estupidificação cultural do Brasil.
Os antropólogos, nesse contexto, começam a se organizar como categoria, aliando-se aos índios como atores políticos. Houve, é claro, antropólogos que tiveram um papel importantíssimo na história não só da causa indígena, mas da própria República, como Roquette Pinto ou Darcy Ribeiro, antes de (e durante) essa época. Mas naquele momento, no fim da década de 1970, os antropólogos se constituem como corporação para interpelar o governo e se opor ao projeto de emancipação. Essa mobilização sensibilizou a sociedade, entenda-se, outros intelectuais, militantes políticos de outras causas, advogados, juristas, artistas, e também as camadas médias urbanas, os estudantes… Ao mesmo tempo, e muito mais importante, os índios como que "acordaram" para seu poder de intervenção nos circuitos nacionais e internacionais de comunicação. Eles deixavam ali de ser um elemento do folclore nacional, de um passado vago e distante, e passavam a atores políticos do presente, signos críticos e urgentes de uma ultracontemporaneidade: signos do futuro, na verdade.
Enfim, é nesse momento, fim dos anos 1970, que ganha vulto todo o movimento de auto-organização de coletivos que não são mais redutíveis nem aos partidos nem aos sindicatos: a célebre "sociedade civil organizada". É então também que começam a aparecer figuras indígenas individuais com destaque político. A primeira delas foi Mário Juruna, um deputado que foi tratado folcloricamente pela imprensa, mas que teve um papel estratégico para a emergência dos índios no cenário político-ideológico nacional e internacional (lembremos do Tribunal Russell). Juruna, que marcou presença por alguns gestos muitos simples, de grande "pega" midiática, ficou famoso com seu gravador – um edificante signo do poder da "tecnologia" nas mãos de um "selvagem"; melhor ainda, e agora de verdade, um dispositivo que preservava a potência e a imediatez da oralidade, o registro semiótico em que os indígenas se sentem completamente em casa – que armazenava as promessas e declarações de autoridades e políticos. Depois, promessa quebrada, declaração falseada pelos fatos, Juruna tocava seu gravador na frente da "otoridade" e dizia: "Mas não foi o contrário que o senhor falou?" "O senhor não havia prometido isso?" Depois de Mário Juruna, o protagonismo indígena, coletivo e individual, proliferou: associações, federações, líderes de grande expressão como Ailton Krenak e David Kopenawa.
 
Qual o papel da Constituinte de 1988 nesse processo?
 

Esse processo do fim da década de 1970 culminou em 1988, com a Constituinte e a Constituição, que tiveram um papel fundamental para formalizar a presença dos índios dentro da comunhão nacional. É aqui que se começa a reconhecer direitos coletivos, coisa que, salvo engano, mal existia no Brasil: direitos difusos, direitos coletivos, comunidades sujeitos de direito, índios, quilombolas. Uma vitória imensa, atestável no ódio que a Constituição de 1988 desperta na direita, sempre à espreita de uma oportunidade para "reformar" a Constituição, isto é, para desfigurá-la, e sempre eficaz na protelação da indispensável regulamentação de diversos artigos constitucionais.
O senhor vê com bons olhos as políticas de proteção dos direitos indígenas na era Lula?
 

Houve grandes conquistas, a mais importante, sem dúvida, o reconhecimento da terra indígena Raposa Serra do Sol. Mas manteve-se, ou mais, acentuou-se o projeto de governo baseado na equação falaciosa entre desenvolvimento e crescimento, em uma ideia de crescimento a qualquer preço e, nesse sentido (eu sublinho: apenas nesse sentido), o governo Lula manteve sua continuidade com todos os governos anteriores, pelo menos até Vargas e incluindo os governos da ditadura. Uma ideia de que é preciso conquistar o Brasil, ocupá-lo, civilizá-lo, modernizá-lo, desenvolvê-lo, implicando com isso a ideia de que os índios não são brasileiros, não estão lá, não vivem em suas terras segundo seus próprios esquemas civilizacionais, não possuem uma cultura viva e eficaz. Tudo isso se baseia em um modelo cultural falido, a ideia de modernidade.
E qual é esse modelo?
 

É o modelo de industrialização intensiva, poluente, de exportação maciça de matéria-prima, monocultura, agronegócio, transgênicos, agrotóxicos, petróleo… Ele bate de frente com os interesses das populações indígenas e, arrisco-me a dizer, com as perspectivas de toda a população do país e do planeta. O que precisamos é imaginar uma forma econômica com algum futuro, capaz de assegurar o suficiente para todos, uma vida que seja boa o bastante para as gerações vindouras. Então, eu tenho sérias restrições não à política indigenista do governo Lula – aliás, o atual presidente da Funai [Márcio Augusto Freitas de Meira] é um colega que admiro e respeito –, mas o problema é que essa política indigenista sempre teve de se dobrar aos imperativos de uma geopolítica nacional e internacional ambientalmente desastrosa. Toda vez que algum setor do governo ameaçou criar dificuldades para essa geopolitica desenvolvimentista, foi obrigado a entrar na linha, ou sair de cena. Veja Marina Silva. No caso da Funai, a tendência foi seguir os limites estreitos de manobra deixados pela Casa Civil e seu implacável desenvolvimentismo.
Qual seria, então, a alternativa a esse modelo?
 

O Brasil tem a oportunidade única de ser um dos poucos lugares da Terra onde um novo modelo de sociedade e de civilização poderia se constituir. Somos um dos poucos países do mundo que tem recursos suficientes para inventar outra ideia e outra prática de desenvolvimento. Parece que aprendeu muito pouco com a história recente do mundo. Quando se exporta soja e gado, está se exportando o quê? O solo, a água do país. Para fazer 1 quilo de carne, são necessários 15 mil litros de água; para 1 quilo de soja, são necessários 1.800 litros. O Brasil é o maior exportador de "água virtual" do mundo. Isso para não falarmos nos insumos venenosos: hormônios para o gado, fertilizantes, agrotóxicos… O Brasil é o maior consumidor de defensivos agrícolas do planeta. Imagine o risco sanitário a que estamos expostos. Todas essas maravilhas que tanto aumentam a produtividade agrícola (e ao mesmo tempo baixam a qualidade e a segurança dos alimentos) são-nos enfiadas garganta abaixo por grandes companhias transnacionais como a Monsanto, cuja ficha ambiental e política é mais que suja, é imunda.
E está em curso a polêmica sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Quando se fala em hidrelétricas, bem, de fato talvez seja melhor do que a energia nuclear – em princípio, uma vez que a questão do lixo nuclear está bem longe de ser resolvida, além dos problemas de segurança –, mas quais são as implicações do ponto de vista, por exemplo, do abastecimento de água? E, aliás, para quem vai o principal da energia elétrica que é produzida por uma grande hidrelétrica como Tucuruí, ou Belo Monte? Vai para a população ou para as fábricas de alumínio, os projetos de extração e processamento de cobre e níquel da Amazônia? O que fazem essas fábricas de alumínio? Latas de saquê e cerveja, principalmente. Por que as fábricas de alumínio estão aqui? Por que países como o Japão não querem gastar uma imensa quantidade de energia para mover as cubas eletrolíticas onde se funde o alumínio? É melhor que um país grande, periférico e perdulário detone seus rios. A usina de Tucuruí, concebida durante o regime militar, significou 2 bilhões de reais de subsídio para as indústrias de alumínio, como constatou um especialista recentemente. O destino real da energia produzida pelo Complexo Hidrelétrico de Belo Monte ainda é uma espécie de segredo de Estado. Mas parece que essa energia virá principalmente para o Sul e o Sudeste, ou servirá para alimentar novas indústrias eletrointensivas – cobre, bauxita, níquel – no Norte, algumas aliás
não nacionais (a direita vive falando no perigo de uma invasão estrangeira da Amazônia; ela já aconteceu, mas como é uma invasão do capital, parece que pode…). Os benefícios para a população, e especialmente para a população local, são muito duvidosos.
Como se deu seu contato com o pensamento de Lévi-Strauss?
 

Meu contato com Lévi-Strauss antecede meu contato com a antropologia. Foi enquanto eu fazia ciências sociais, em um curso de teoria literária dado por Luiz Costa Lima. Foi ele quem me aconselhou a fazer antropologia. Isso foi nos idos de 1969, 1970. Naquele momento, o estruturalismo antropológico estava penetrando em diversas áreas das ciências humanas, como a psicanálise e a crítica literária, então o Costa Lima, professor de literatura e grande teórico da área, resolveu dar um curso sobre As Mitológicas na sociologia da PUC-Rio, onde eu estudava.
O senhor poderia apresentar-nos o conceito do perspectivismo indígena?
 

Esse é um assunto sobre o qual hesito um pouco em falar, porque o termo "perspectivismo indígena" se tornou excessivamente popular no meio antropológico, e a ideia que ele designa começa a sofrer o que sofre toda ideia que se difunde muito e rapidamente: banalização, de um lado, despeito, de outro. Passa a servir para tudo, ou a não servir para nada. De qualquer forma, não fui eu quem inventou sozinho a teoria do perspectivismo indígena; foi um trabalho de grupo, em que se destaca a colaboração formativa que mantive com minha colega Tânia Stolze Lima. Tomamos emprestado do vocabulário filosófico esse termo de perspectivismo para qualificar um aspecto marcante de várias, senão de todas, as culturas nativas do Novo Mundo. Trata–se da noção de que o mundo é povoado por um número indefinidamente indeterminado de espécies de seres dotadas de consciência e cultura. Isso está associado à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é uma "roupa" que oculta uma forma interna humanoide, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Até aqui, nada de muito característico: a ideia de que a espécie humana não é um caso à parte dentro da criação, e de que há mais gente, mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias, é muito difundida entre as culturas tradicionais de todo o planeta.
O que distingue as cosmologias ameríndias é um desenvolvimento sui generis dessa ideia, a saber, a afirmação de que cada uma dessas espécies é dotada de um ponto de vista singular, ou melhor, é constituída como um ponto de vista singular. Assim, o modo como os seres humanos veem os animais e outras gentes do universo – deuses, espíritos, mortos, plantas, objetos e artefatos – é diferente do modo como esses seres veem os humanos e veem a si mesmos. Cada espécie de ser, a começar pela nossa própria espécie, vê-se a si mesma como humana. Assim, as onças, por exemplo, se veem como gente: cada onça individual vê a si mesma e a seus semelhantes como seres humanos, organismos anatômica e funcionalmente idênticos aos nossos. Além disso, cada tipo de ser vê certos elementos-chave de seu ambiente como se fossem objetos culturalmente elaborados: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, o barreiro em que se espojam as antas é visto como uma grande casa cerimonial, os grilos que os espectros dos mortos comem são vistos por estes como peixes assados etc. Em contrapartida, os animais não veem os humanos como humanos. As onças, assim, nos veem como animais de caça: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram, pois todo ser humano que se preza aprecia a carne de porco selvagem. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes também se veem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem plantas cultivadas, enquanto veem a nós humanos como se fôssemos espíritos canibais – pois os matamos e comemos.
E o que é o humano?
 

É essa capacidade de socialidade. Antes, tudo era transparente a tudo, os futuros animais e os futuros humanos, vamos chamar assim, se entendiam, todos se banhavam num mesmo universo de comunicabilidade recíproca. Lévi-Strauss tem uma definição muito boa, dada numa entrevista. O entrevistador pergunta: "O que é um mito?". Lévi-Strauss responde: "Bom, se você perguntasse a um índio das Américas, é provável que ele respondesse: ‘Um mito é uma história do tempo em que os animais falavam’". Essa definição, que parece banal, na verdade é muito profunda. O que ele está querendo dizer é que o mito é uma história do tempo em que os homens e os animais estavam em continuidade, se comunicavam entre si. Na verdade a humanidade nunca se conformou por ter perdido essa transparência com as demais formas de vida, e os mitos são uma espécie de nostalgia da comunicação perdida.
Essa é de fato uma noção universal no pensamento ameríndio, a de um estado originário de coacessibilidade entre os humanos e os animais. As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam atributos humanos e não humanos, em um contexto de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual. O propósito da mitologia, com efeito, é narrar o fim desse estado: trata-se da célebre separação entre "cultura" e "natureza" analisada nas Mitológicas de Lévi-Strauss. Mas não se trata aqui de uma diferenciação do humano com base no animal, como é o caso em nossa mitologia evolucionista moderna. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. Os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos; os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais. Se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora sido "completamente" animais, permanecemos, "no fundo", animais –, o pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmo continuam a ser humanos, mesmo que de modo não evidente.
Se tudo está impregnado de humanidade, quais são as consequências disso para o modo de vida indígena?
 

Se tudo é humano, nós não somos especiais; esse é o ponto. E, ao mesmo tempo, se tudo é humano, cuidado com o que você faz, porque, quando corta uma árvore ou mata um bicho, você não está simplesmente movendo partículas de matéria de um lado para o outro, você está tratando com gente que tem memória, se vinga, contra-ataca, e assim por diante. Como tudo é humano, tudo tem ouvidos, todas as suas ações têm consequências.