quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Pound paideuma

 
Ezra Pound

 

 http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_visual/pound_padeuma.html

[ideogramização da poesia]


Haroldo de Campos*

* o objetivo desta introdução é a obra de pound em si: pound, o inventor de formas. pound no paideuma da  poesia contemporânea.
* há una cultura verbal, do mesmo modo que ha uma cultura visual ou sonora. sob certos aspectos, pode-se falar de pound. criador de formas verbais, com a mesma naturalidade com que se falaria de mondrian, inventor de formas plásticas, ou de webern, inovador do universo sonoro.

* pound puxa paideuma. isto quer dizer que pound teve a preocupação de levantar, para a arte poética de nosso tempo, uma nova tradição, a margem do rango acadêmico das histórias da literatura dessuetas e das  antologias serôdias.  seus ensaios, de the spirit of romance ao guide to kulchur, passando pelo a. b.  c. of reading, sao cortes paidêumicos : "separações drásticas" de um elenco de autores culturalmente atuantes  no momento histórico.

* pound, critico, vê a poesia dum angulo criativo: do  ponto de vista de quem esta empenhado em inventar novas formas poéticas. pound põe "make it new" ou seja — "culturmorfologia": transformação quaÏitativa da cuitura. determinados autores, cuja obra era de eficácia imediata e urgente no panorama artístico onde e. p.  atuava (por exemplo : arnaut daniel e os provençais; guido cavaicanti; os simbolistas franceses da linha "coloquial-irônica" — laforgue e corbière; etc.), foram chamados à linha de tiro, em
lances incisivos de estratégia intelectual, enquanto outros, sem rodeios, foram postos fora de campo (miiton, por exemplo, cujas construções latinizantes, segundo pound, artificializavam a língua).  a cultura necessita
dessas injeções de coramina : seu coração também envelhece.

* pound propõe ideograma. o método ideogrâmico, como princípio organizador dos cantos, é tão importante para a poesia contemporânea, como o princípio serial para as estruturas da música atual. o ideograma elimina as cortinas de fumaça do silogismo : permite um acesso direto ao objeto. duas ou mais palavras, dois ou mais blocos de ideias, postos em presença simultânea, criticando-se reciprocamente, precipitam um jogo de relações com uma intensidade e uma imediatidade que o discurso lógico não seria capaz sequer de evocar. fenollosa & pound (a escrita
chinesa como itistrumento para a poesia) : "neste  processo de composição, duas coisas conjugadas não produzem uma terceira, mas sugerem alguma relação fundamental entre ambas". ex.: "sol + Ïua" = "processo de luz total" ("ming"   fffj    ). os cantos,cada um deles em relação a suas partes componentes; cada canto em particular ou cada grupo de cantos (os grecoromano-provençais ; os malatestianos; os americanos = "jefferson/nuevo mundo" ; ,os sienenses = "reformas leopoldinas”; os chineses; os do ciclo john adams; os pisanos; os da "secção perfuratriz de
rochas"— 85 a 95, últimos até agora publicados) em relação ao corpo total do poema, compõem um imenso ideograma da cosmovisão poundiana, que se multiarticula em séries de ideogramas menores até a mínima unidade do poema: — o verso, que é também substituído diretamente por um ideograma ou então se constitui em membro de uma estrutura ideogrâmica básica.

* por estranha que pareça a aproximação aos observadores de superfície, impressionados com a exclusão de mallarmé das preferências literárias de e. p., o método ideogrâmico de composição, teorizado e praticado por
pound, conota intimamente, do ponto de vista da invenção formal, com "as subdivisões prismáticas da ideia" do autor de un coup de dés (poema que valery — varitéé ii — chamou de "espetáculo ideográfico duna crise ou aventura intelectual"). hugh kenner (the poetry of ezra pound) entreviu, embora sem descer em profundidade à comparação, esse cam-
po de contacto: "a fragmentação da ideia estética em imagens alotrópicas, teoria iniciada por mallarmé, foi uma descoberta cuja importâancia para o artista corresponde a da fissão nuclear para o físico". ambos se inspiraram em estruturas musicais : mallarmé fala da "música ouvida em concerto", onde se encontram "vários meios" por ele utilizados, por lhe terem parecido
"pertencer às letras"; refere-se a "motivo preponderante, secundário e motivos adjacentes", a "contraponto prosódico", a organização semelhante a da sinfonia (prefácio a um lance de dados).  pound compara os cantos à fuga : "tome uma fuga : tema, resposta, contra-tema. não que eu pretenda uma exata analogia de estrutura" (carta de 1937 a j. l. brown / the Ïetters of e. p.).

" os cantos são uma "épica sem enredo" (h. kenner). não se prestam ao ordenamento lógico-cronológico de princípio-meio-fim.  não possibilitam o traçado de um fio histórico-narrativo. os elementos dos cantos, através do ideograma (princípio que eisenstein, por sua vez, aplicou à montagem cinematográfica), se catalizam em torno de "focos de interesse" subordina-
dos a uma hierarquia geral de valores (histórico-econômicos, ético-políticos, estético-críticos). o ideograma é a forca que, como um imã, ordena "a rosa na limalha de ferro" : um estilhaço arrancado à crônica de sigismundo malatesta, um aforisma extraído dos analectos de confúcio, excertos da correspondência de jefferson ou de john adams, reminiscências pessoais
do poeta como as de seu aprisionamento no campo de pisa, interagem polarizados em cadeias de relações, desenhado o organismo geral do poema.

* o léxico de pound é um léxico de objetividades.  pound não lida com a metáfora pura ou de tipo gongorino.  não especula com abstrações (como mallarmé).  sua linguagem é direta. tem a vivacidade do coloquial.  a
partir dos cantos pisanos (principalmente) ganha a celeridade com que os pensamentos se articulam no cérebro : seu poema passa a ser uma épica da memória. "dichten == condensare" é o postulado valido para o léxico poundiano: uma língua de "essências e medulas", de "definições precisas". a extrema síntese de sua dicção pode iludir em seu despojamento eliptico; nada mais distante, porém, do "automatismo psíquico" dos surrealistas, da linguagem onírica, a-causal, vaga. as seqiuências mnemônicas dos cantos pisanos se integram nas linhas de força do poema: são coagulações de discurso direto, núcleos e cernes de dicção objetiva, gravitando, em constelações semânticas, em torno dos eixos de ideias mestras, cuja "vis attractiva" domina a obra inteira.

* a obscuridade de pound não é de palavra. é uma obscuridade de referência. o melhor intérprete de e. p. é sua obra paralela aos cantos (seus ensaios, suas traduções, seus panfletos, sua correspondência),
pound opõe-se à ambiguidade de tipo surrealista.

* pound pode ser considerado um poeta espacial. a disposição dos blocos de ideias num dado segmento dos cantos (com especial intensidade a partir dos pisanos) responde a uma função rítmica também visual: contribui para a fixação sensível da estrutura ideogrâmica. através do corpo dos cantos a composição tipográfica é invadida pela pitografia chinesa, com função semafórica : "trazer ao foco" determinados grupos de ideias, mediante a ativaição direta do olho (o processo — que leva os experimentos de e. p, até o dado meramente gráfico, a textura material do poema — recru-desce na "secção perfuratriz de rochas" — rock-drill, cantos 85 a 95, onde aparecem, inclusive, com análoga função, hieroglifos egípcios e, em preto e vermelho, os naipes do baralho). com razao observa h. kenner:

"pound atingiu, durante o seu trabalho de mais de trinta anos nos cantos, uma crescente perícia retórica, alcançando novas altiitudes nas seqiuências mais recentes, nas quais a disposi^ção espacial de cada palavra é funcional". e charles madge ("a elipse nos cantos pisanos", "in" ezra pound, simpósio coligido por peter russel) : "ademais, para pound como para mallarmé, o aspecto visual de seus poemas é importante : o espaço através do qual a centeiha poética tem que voar é um espaço real numa página impressa. o que se conjuga com uma paixão pelo caligráfico ideograma chinês. “

* pound puxa paideuma. um trfbuto a e. p. é um tributo à vivacidade. falar numa ortodoxia poundiana é ser anti-e. p. poand arma a jovem poesia de um sentido qualitativo de processo. nenhum "paraíso perdido" de decoro estético.  nenhum "enxame de sentimentos inarticulados". sua presença instiga o artista criativo a uma opção radical: ao levantamento urgente de um paideuma, com ação instantânea sobre a conjuntura poética contemporânea, como ponto de partida para a invenção de novas formas de cultura verbal. nesse paideuma, a obra de e. p. será, necessariamente, uma das linhas mestras. dizer paideuma, é dizer justaposição das partes vivas de uma cultura: — corpo de conhecimentos que funciona—  mera ortodoxia é um problema de hipnose.

* o ideograma tem um futuro próprio, que não se esgota no edifício "maior" dos cantos. é a linguagem adequada para a mente contemporânea. permite a comunicação no seu grau mais rápido. entra em conjunção
com as experiências da música e das artes visuais realmente criativas. os cantos não fecham a poesia num beco sem saída. representam uma tensão para um novo mundo de formas.

* "a poesia difere da prosa pelas cores concretas de sua dicção" (fenollosa & pound).

Haroldo de Campos
 
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*Prefácio do livro “ezra pound cantares”, tradução de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Publicação do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura”, sem data (presumivelmente em 1960, pouco antes da mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília). No original não aparece o subtítulo “ideogramização da poesia”, que foi colocado para deixar mais clara a intenção do prefácio.
 
Post Scriptum

CANTO 81 / Ezra Pound fragmento

Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado


A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquin, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
"Domina-te e outros te suportarão"
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob o sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade,
Ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.


Mas ter feito em lugar de fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um Blunt abrisse
Ter colhido no ar a tradição mais viva
ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

A composição de uma obra aberta

 
 
 
Annita Costa Malufe
 
 
 
[...] será que a composição de um livro já é uma questão

de estilo? Acho que é sim. A composição de um livro é

algo que não se resolve previamente. Ela se faz ao mesmo

tempo em que o livro se faz. Por exemplo, vejo em livros

que eu escrevi, se me permite citar o que eu fi z... Há

dois livros meus que me parecem compostos. Sempre dei

importância à composição. Penso em um livro chamado


Lógica do sentido que é composto por séries. Para mim, é

verdadeiramente uma composição serial. E Mil platôs é


uma composição por platôs. Para mim, são duas composições

quase musicais, sim. A composição é um elemento

fundamental do estilo.

Em ambos os casos, a organização linear, hierárquica, sugerida

pela separação em capítulos, cede lugar a uma composição horizontalizada,

de partes que parecem correr em paralelo, quase como em

um "jogo da amarelinha" cortazeano. É como se cada série, ou cada

platô, funcionasse como uma peça independente, vinda cada uma de

um quebra-cabeças diferente; ao mesmo tempo, como se essas peças

fossem "violentamente inseridas" umas nas outras, forçando novos

encaixes (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p.51).

As séries e os platôs

podem ser lidos em diferentes ordens, criar diferentes trajetos entre

si e, a cada vez que um deles participa da leitura, a paisagem geral do

livro se modifi ca, ainda que se mantendo numa relativa independência

em relação a suas partes e vice-versa.

No caso do livro com Guattari, diz Deleuze, os platôs foram

concebidos como "anéis quebrados", penetrando uns nos outros,

sendo que: "Cada anel, ou cada platô, deveria ter seu clima próprio,

seu próprio tom ou seu timbre" (1992, p.37). Cada um dos platôs,

explica ele, seria uma espécie de mapa, traçando seu próprio trajeto:

"[...] os platôs são zonas de variação contínua, são como torres que

vigiam ou sobrevoam, cada uma, uma região, e que emitem signos

umas às outras" (1992, p.177). Para quem teve contato com a obra na

tradução brasileira, um elemento a mais participa dessa construção

fragmentária: por questões editoriais, a obra, formada por um único

tomo no original, foi dividida em cinco volumes. Assim, o leitor que

não teve contato com a obra em francês vive uma sensação ainda

mais concreta da independência entre os platôs e uma outra experiência

da leitura dos Mille plateaux: cada volume da edição brasileira


constitui um livro, um todo, cada um por sua vez com seu "timbre",

seu "tom", cada um constituindo um mapa (variando de dois a quatro

platôs), um plano de consistência próprio. O que aqui se coloca

em questão não é se as consequências dessa circunstância de publicação

são boas ou ruins, mas a observação do quanto ela pode acarretar

uma mudança na leitura da obra e o quanto o próprio formato da

obra, em platôs com uma autossufi ciência relativa, possibilitou que

essa divisão fosse realizada.

Há uma lição aprendida com Proust, que Deleuze e Guattari

não escondem. A ideia acerca do estilo proustiano aparece em O

anti-Édipo, em 1972, e é retomada por Deleuze em Proust e os signos,


de 1976, como a constituição de um todo da obra como efeito de

fragmentos que não se unifi cam nesse todo. Ou seja, partes que permanecem

com suas devidas autonomias, sem se dissolverem em uma

unidade comum, sem perderem sua independência, sua singularidade,

em prol de um unifi cador – seja ele de ordem simbólica, interpretativa

ou do signifi cante. As partes são peças rearranjáveis, que permitem

percursos diversos de leitura e, a cada percurso, um efeito de leitura

diferenciado. O todo é então um todo modulável, que se dá como

efeito "ao lado" das partes, é uma "pincelada fi nal", como diz Proust

acerca do estilo de Balzac (DELEUZE, 1987, p.165). Vale transcrever

o trecho em que Deleuze e Guattari narram o movimento dessas

peças:

E é notável, na máquina literária de Em busca do tempo perdido,


até que ponto todas as partes são produzidas como lados

dissimétricos, direções quebradas, caixas fechadas, vasos

não comunicantes, compartimentações, nas quais mesmo

as contiguidades são distâncias e as distâncias, afi rmações,

pedaços de quebra-cabeça que não são do mesmo mas de

diferentes quebra-cabeças, violentamente inseridos uns nos

outros, sempre locais e nunca específi cos, e com suas bordas

discordantes, sempre forçadas, profanadas, imbricadas umas

nas outras, e sempre com restos (1972, p.51).1


A autonomia relativa dessas partes – séries ou platôs, conceitos

ou imagens – não signifi ca que elas não se comuniquem, que não

constituam trânsitos diversos entre si, pelo contrário: o estilo proustiano,

que Deleuze e Guattari tanto admiram, seria justamente esta

possibilidade de criar um todo múltiplo, que é efeito de fragmentos

não totalizáveis, porém extremamente ressoantes entre si. Há linhas

que se tecem a todo momento, em direções diversas, entre elementos

que constituem um texto, um livro. Relações que se fazem necessárias,

ligando o que pareceria solto, criando uma fl uência entre

fragmentos, forçando trajetos intensivos. Dessa lição estilística com

Proust, tem-se a constituição de uma obra que retira sua possibilidade

de ser "uma" obra, de ter sua unidade, justamente por efeito de

ressonâncias internas entre suas peças. Há um fl uxo que se cria por

força das distâncias entre os elementos, pela ausência de relação dada

(preestabelecida, causal, extensiva, atual) entre eles.

Como vimos no trecho citado anteriormente de L’Abécédaire,


a composição do livro é um elemento importante na elaboração do

estilo para Deleuze e não é algo preconcebido, mas que se faz "ao

mesmo tempo em que o livro se faz". Deleuze cita pontualmente

Lógica do sentido e Mil platôs, como dois bons exemplos em que


se tem uma preocupação composicional, "duas composições quase

musicais". Mas, embora não seja em todas as obras de Deleuze que

a estruturação do livro atue assim tão ativa ou experimentalmente,

pode-se dizer que a composição, e portanto o trabalho com o estilo,

é muito presente no interior dos textos mesmos – em verdade, ele

nunca está ausente.

E, ainda que se fale em composição serial ou por platôs de

modo mais explícito nesses dois casos, mantém-se nos outros livros

de Deleuze, em geral, uma fragmentação bastante próxima à operação

que viemos descrevendo acerca de Proust. Além de capítulos

geralmente mais breves, nota-se uma relação entre eles não hierarquizada,

não linear, não centralizada. O que poderíamos traduzir, em

termos dessa fi losofi a, na opção por sistemas a-centrados, isto é, a recusa


de livros que seguiriam os modelos da árvore ou da raiz, com

um tronco principal, galhos derivados, apenas uma porta de entrada e

uma de saída, os capítulos servindo de organizadores a esta hierarquia

e linearidade que se dão sempre em vista de um Uno transcendente.


No lugar disto, pode-se notar a busca por livros com todo um outro

tipo de composição, mais horizontalizada, que opta por uma maior

mobilidade e trânsito entre os capítulos. O livro parece ir se montando

diante dos olhos do leitor, ao invés de oferecer uma unidade

pronta de antemão.

Essa constituição mais quebradiça seria um dos procedimentos

utilizados por Deleuze no seu esforço de tratar a escrita como um

fl uxo e não um código, tal vemos em suas falas em Conversações. A


fragmentação e o modo não hierarquizado de criar conexões entre

os fragmentos, no entanto, não se restringem à estruturação dos livros,

mas apontam para um movimento interiorizado em sua escrita

de forma generalizada, nos elementos e movimentos menores que a

compõem. A organização do livro é então somente um desdobramento

maior, uma reverberação de um movimento que já se dá nas

dimensões menores e mais subterrâneas de sua escrita

(...)

Anéis partidos ou "anéis quebrados", como se refere Deleuze

acerca dos platôs, em seus modos de se enganchar e se engatar uns

nos outros mantendo, no entanto, uma relativa autonomia. Ou ainda,

anéis abertos, como dizem ele e Guattari quando, ao falarem da escrita

de Kleist, parecem descrever a própria dinâmica que buscavam

em sua composição: "Kleist inventou uma escrita deste tipo, um encadeamento

quebradiço de afetos com velocidades variáveis, precipitações

e transformações, sempre em correlação com o fora. Anéis

abertos" (1995a, p.18, grifo meu). Cada fragmento do texto, conceito,


frase, oração, constitui uma espécie de todo que gira sobre si, mas

que sempre se mantém aberto em algum ponto, permitindo encaixes

múltiplos com outros elementos (sejam eles internos ou externos ao

texto). Não se trata de um acaso, pelo contrário: o esforço composicional

de Deleuze ao escrever parece ir neste sentido: "interessa-me

que uma frase fuja por todos os lados, e no entanto que esteja bem

fechada sobre si mesma, como um ovo" (DELEUZE, 1992, p.24).

Como criar uma frase que "fuja por todos os lados" e que, ao

mesmo tempo, se baste em si mesma? Problema de estilo. Uma frase

que fuja por todos os lados é uma frase, como a de Kleist, "sempre

em correlação com o fora", é uma frase-anel-aberto, conectada com

aquilo que não é apenas linguístico, não é apenas código e não se efetua

apenas ali, entre as palavras. É uma espécie de frase-isca: por um

lado, "a palavra pescando o que não é palavra", se roubarmos os termos

de Clarice Lispector (1999, p. 385); por outro, a palavra também

sendo pescada por este limite não linguageiro, sendo arrastada por ele

– sons e imagens "inomináveis", sopros, gritos, cantos, epifanias.

Assim, é como se, para fugir por todos os lados, para alcançar

ou ser alcançada por essas visões e audições que estão no limite da

língua, a frase precisasse possuir contornos e membranas bem delimitados,

como um ovo. Mas, notemos, o ovo aqui pode não ser apenas

o que está hermeticamente lacrado, mas ser simultaneamente este duplo

aspecto: estar fechado em si e, ainda, fugir por todos os lados. Isso

porque o ovo é energia potencial, condensação pura de intensidades,

a serem futuramente atualizadas, conectadas, formadas, desdobradas,

encarnadas. O ovo é "matéria intensa e não formada, não estratifi

cada, a matriz intensiva" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.13),

distinguindo apenas gradientes, tonalidades, migrações, zonas de vizinhança.

Ele é pré-formal, é anterior às formalizações, o que não

signifi ca ser indiferenciado, mas sim possuir um potencial de relações

ainda não atualizado.

Uma frase-ovo é então essa que possuiria uma perfeita autonomia,

estando muito bem fechada sobre si mesma, e ao mesmo tempo

uma abertura incontida ao fora, às conexões que poderiam se dar no

futuro das leituras – sendo no encontro da leitura que se dão as visões

e audições, que as palavras podem sussurrar, gritar, fazer ver. Aqui,

um ponto crucial: essas são conexões não previstas, não preestabelecidas,

embora delimitadas pelo campo intensivo da frase. A frase-ovo,

como matriz intensiva, possui sua plena distinção, sua singularidade,

e sua leitura não pode ser confundida com ideias aparentemente semelhantes,

tais como: de que o leitor criaria o texto que quisesse (o

equívoco da abertura plena, que recai no caos), ou de que ele decodifi

caria expectativas previstas, tal chaves de leitura deixadas pelo

autor (o equívoco da falsa abertura). É, antes,

como se a frase-ovo fosse constituída de fi os soltos, a serem ligados na

leitura. Ela se atualiza, ela acontece, na leitura; ou ainda, cada leitura

efetuaria uma atualização da frase, diferenciando-a a cada vez. "É do

tipo ligação elétrica" (DELEUZE, 1992, p.17).